A liberdade de expressão nos tempos do discurso de ódio

06/09/2022 às 09:03

Resumo:


  • A liberdade de expressão é um direito fundamental na Constituição Brasileira, mas não é absoluto e encontra limites quando conflita com outros direitos, aplicando-se a ponderação de interesses.

  • O Supremo Tribunal Federal (STF) tende a decidir favoravelmente à liberdade de expressão, como demonstrado no julgamento da ADPF 130, que reforçou a posição preferencial desse direito.

  • Apesar de sua importância, o direito à liberdade de expressão não abrange o discurso de ódio, que é expressamente vedado e pode ser punido quando incita à discriminação, hostilidade ou violência.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O presente artigo aborda os limites à liberdade de expressão, que, como qualquer direito fundamental, não é absoluto.

A liberdade de expressão é um direito fundamental previsto no artigo 5º, incisos IV e IX, da Constituição Federal de 1988.

A norma da constituição que protege a manifestação do pensamento (inciso IV do artigo 5º da CF/88), têm como núcleo de proteção a manifestação de opiniões, o que não significa, todavia, que qualquer manifestação é protegida.

Contudo, como todo direito fundamental, o direito à liberdade de expressão não é absoluto, encontrando limites quando, porventura, colidir com outro direito fundamental, aplicando-se ao conflito a técnica da ponderação de interesses.

A ponderação de interesses consiste no método necessário ao equacionamento das colisões entre princípios da Lei maior, onde se busca alcançar um ponto ótimo, em que a restrição a cada um dos bens jurídicos de estatura constitucional envolvidos seja a menor possível, na medida exata necessária à salvaguarda do bem jurídico contraposto[1].

Cumpre ressaltar, que em relação ao direito à liberdade de expressão há uma peculiaridade no Brasil, pois se exige um ônus argumentativo maior para restringi-lo[2], justamente em razão das atrocidades a direitos fundamentais ocorridas durante a ditadura.

Em casos em que há a colidência do direito à liberdade de expressão e outro direito fundamental, o STF costuma decidir pró-liberdade de expressão, como decidiu, por exemplo, na ADPF 130.

Na ADPF 130[3] o Supremo Tribunal Federal entendeu pela não recepção da Lei de Imprensa frente à Constituição de 1988. No julgamento, a Corte proibiu a censura de publicações jornalísticas, bem como tornou excepcional qualquer tipo de intervenção estatal na divulgação de notícias. No referido julgamento[4], o STF assim fundamentou:

Noutros termos, primeiramente, assegura-se o gozo dos sobredireitos de personalidade em que se traduz a "livre" e "plena" manifestação do pensamento, da criação e da informação. Somente depois é que se passa a cobrar do titular de tais situações jurídicas ativas um eventual desrespeito a direitos constitucionais alheios, ainda que também densificadores da personalidade humana.

É possível verificar que foi firmada, no aludido julgamento, a doutrina da posição preferencial, a qual está amparada, segundo Martel[5], pelo devido processo legal substantivo, que confere a alguns deles uma posição preferencial em detrimento de outros e que admite, enfim, a imposição de um peso maior de per si a determinados direitos fundamentais. Daí porque a Suprema Corte, por qualificar a liberdade de expressão como pressuposto essencial e necessário à prática da democracia, confere a ela uma posição preferencial.

O direito à liberdade de expressão é importante, ainda, por ser um instrumento para concretização de outros direitos fundamentais. Em um Estado Democrático de Direito, como é o Brasil, ter liberdade de opinião e pensamento é essencial, devendo o pluralismo de ideias e opiniões ser respeitado, como respeitosa convivência dos contrários.

Não é possível, contudo, tolerar abuso no exercício desse direito de liberdade de expressão. Como exemplo, vale citar o Caso Ellwanger[6], em que o Supremo Tribunal Federal, no HC 82.424/RS, manteve uma condenação imposta ao escritor Ellwanger por crime de racismo contra os judeus, pois entendeu que a incitação à prática de racismo não é liberdade de expressão, conforme trecho do julgamento abaixo transcrito:

[...] 13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestação de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal.

No julgamento do HC, o STF estabeleceu uma ponderação entre os princípios supostamente incidentes no caso concreto, quais sejam: de um lado, a dignidade da pessoa humana (representada pela proteção ao povo judeu) e, de outro, a liberdade de expressão (representada pela proteção à livre manifestação do pensamento do paciente). Ao final da operação, decidiu-se que o direito com prevalência seria o da dignidade da pessoa humana.

O discurso de ódio, portanto, ultrapassa o limite ao direito à liberdade de expressão, como bem pontua Anderson Schreiber[7]:

Por mais que se considere, portanto, a diferença como elemento essencial da própria concretização da liberdade de expressão e formação do Estado Democrático, sempre que esta for veiculada publicamente no intuito de exprimir de forma violenta as convicções do interlocutor e tangenciar a própria noção genérica do preconceito, estar-se-á diante de um hate speech.

O discurso de ódio, que pode ser conceituado como manifestações de ódio, desprezo ou intolerância contra determinados grupos, motivadas por preconceitos ligados à etnia, religião, gênero, deficiência física ou mental e orientação sexual, dentre outros fatores[8], não se confunde com proselitismo religioso. O Supremo Tribunal Federal entende que é, sim, possível que os líderes religiosos façam suas interpretações sobre os textos de sua respectiva religião, desde que tais interpretações não configurem discurso de ódio.

Nesse sentido, a Suprema Corte, no julgamento do RHC 134682/BA[9], absolveu um líder religioso da imputação do crime de racismo por falta de dolo, sob a seguinte fundamentação:

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[...]Proselitismo religioso significa empreender esforços para convencer outras pessoas a também se converterem à sua religião. Desse modo, a prática do proselitismo, ainda que feita por meio de comparações entre as religiões (dizendo que uma é melhor que a outra) não configura, por si só, crime de racismo. Só haverá racismo se o discurso dessa religião supostamente superior for de dominação, opressão, restrição de direitos ou violação da dignidade humana das pessoas integrantes dos demais grupos. Por outro lado, se essa religião supostamente superior pregar que tem o dever de ajudar os "inferiores" para que estes alcancem um nível mais alto de bem-estar e de salvação espiritual e, neste caso não haverá conduta criminosa.

Importante ressaltar, ainda, que a Convenção Americana de Direitos Humanos veda expressamente o discurso de ódio em seu artigo 13.5: a lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.

É possível concluir, portanto, que o direito à liberdade de expressão, apesar de não ser absoluto, possui um peso maior que outros direitos, prima facie, devendo a decisão, no caso concreto, fundamentar a razão de se afastar determinado valor e dar preferência àquele direito, sem prejuízo, contudo, de eventual responsabilização, por meio de retificação, direito de resposta ou indenização. Não havendo espaço, em nenhuma hipótese, de legitimação do discurso de ódio, sob os auspícios de liberdade de expressão, uma vez que nenhum direito pode ser invocado para a prática de crimes.

[1] SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. 1. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2003.

[2] Daniel Sarmento, a liberdade de expressão e o problema do “hate speech”, in: Livres e Iguais: estudos de direito constitucional.

[3] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Cabe reclamação contra decisão judicial que determina retirada de matéria jornalística de site. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/add5aebfcb33a2206b6497d53bc4f309>. Acesso em: 02/09/2022

[4] https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=605411

[5] MARTEL, Letícia de Campos Velho. Hierarquização de direitos fundamentais: a doutrina da posição preferencial na jurisprudência da Suprema Corte Norte-Americana. Revista Sequência, n. 48, p. 91-117, jul. de 2004.

[6] STF. Plenário. HC 82424, Relator p/ Acórdão Min. Maurício Corrêa, julgado em 17/09/2003

[7] SCHREIBER, Anderson (Cood.). Direito e Mídia. Atlas, São Paulo. 2013. p. 282-298.

[8] Daniel Sarmento: A liberdade de expressão e o discurso de ódio.

[9] https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=312556698&ext=.pdf

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