A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB88) instituiu, por meio do seu artigo 40, o Regime Próprio de Previdência Social (RGPS) dos servidores titulares de cargos efetivos. O fundamento central para esse regime previdenciário é o seu caráter contributivo e solidário, mediante contribuição previdenciária do respectivo ente federativo e do próprio servidor, sendo incluso, também, a dos aposentados e pensionistas. Tais vetores visam ao respeito do equilíbrio financeiro e atuarial, a fim de tornar o sistema previdenciário dos servidores públicos hígido.
Na mesma linha, mediante a previsão de peculiaridades próprias, o artigo 201 da CRFB88 institui o Regime Geral de Previdência Social (RGPS) e possui, também, o caráter contributivo como parte central desse sistema, visando à preservação do equilíbrio financeiro e atuarial do sistema.
Aliado a esses vetores, os quais devem servir de norte para toda e qualquer concessão de benefício relacionado ao exercício de cargo público (RPPS) ou profissão (RGPS), é importante tecer comentários acerca do princípio republicano. O aludido princípio é decorrência da evolução histórica da organização política do Estado, estabelecendo que a coisa pública pertence a todos do povo e não aos governantes, com a separação entre o público e o privado, em primazia ao princípio da impessoalidade na Administração Pública[1].
Ainda a fim de robustecer a importância desse princípio, cujo vetor principiológico irradia para todo o ordenamento jurídico, vale trazer o seguinte entendimento doutrinário[2]:
(...) Ribeiro escreve que a maior parte do mundo aceita o regime republicano, mas que há repúblicas de fachada e as monarquias da Europa têm governos mais respeitosos de seus cidadãos e do bem comum do que a maioria das repúblicas americanas, africanas e asiáticas, numa referência à deturpação do conceito de República24.
Ao desconhecer o verdadeiro sentido de República e seu conceito, as sociedades, ditas republicanas, chancelam as mais variadas aberrações políticas. Na República, a idéia é que há um bem comum superior ao particular, condenando aqueles cuja tendência é a de apropriar-se do bem público25. O interesse de todos ou da maioria determina o quanto de individualismo poderá ser exercido por cada um.
(...)
O Princípio Republicano foi a opção feita pelos constituintes brasileiros originários de 1988, que o estabeleceram como o fundamento de todo sistema normativo e como balizador da criação do espaço público ou da Coisa Pública.
O Princípio Republicano matiza os demais valores jurídicos nos ordenamentos nos quais é adotado e isso acontece inclusive naqueles países nos quais ele não é expressamente previsto. As monarquias republicanas européias são os melhores exemplos.
Dando vazão e interligando-se ao princípio republicano, a CRFB88, em seu célebre artigo 37, dispõe que a Administração Pública deverá obedecer, entre outros, aos princípios da impessoalidade e da moralidade.
Sobre o princípio da impessoalidade, Celso Antônio Bandeira de Melo assim preceitua[3]:
Nele se traduz a idéia de que a Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismo nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoas, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie. O princípio em causa não é senão o próprio princípio da igualdade ou isonomia. Está consagrado explicitamente no art. 37, caput, da Constituição. Além disso, assim como todos são iguais perante a lei (art. 5º, caput), a fortiori teriam de sê-lo perante a Administração.
Com relação ao princípio da moralidade, o Ministro Relator Celso de Mello, ao julgar RTJ nº 182/525-526, assim pontuou:
(...)
O princípio da moralidade administrativa, enquanto valor constitucional revestido de caráter ético-jurídico, condiciona a legitimidade e a validade dos atos estatais.
A atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional de sua incidência, está necessariamente subordinada à observância de parâmetros ético-jurídicos que se refletem na consagração constitucional do princípio da moralidade administrativa. Esse postulado fundamental, que rege a atuação do Poder Público, confere substância e dá expressão a uma pauta de valores éticos sobre os quais se funda a ordem positiva do Estado.
O princípio constitucional da moralidade administrativa, ao impor limitações ao exercício do poder estatal, legitima o controle jurisdicional de todos os atos do Poder Público que transgridam os valores éticos que devem pautar o comportamento dos agentes e órgãos governamentais. (...).
Sob a linha hermenêutica dos princípios acima colacionados, cabe trazer para o debate que o STF, ao julgar a ADPF 764/CE, declarando a não recepção de lei do município de Nova Russas/CE, apresentou os seguintes argumentos:
(...)
A concessão de pensão vitalícia à viúva, à companheira e a dependentes de prefeito, vice-prefeito e vereador, falecidos no exercício do mandato (1), não é compatível com a Constituição Federal (CF).
Os cargos políticos do Poder Legislativo e do Poder Executivo municipal têm caráter temporário e transitório, motivo pelo qual não se justifica a concessão de qualquer benefício a ex-ocupante do cargo de forma permanente, sob pena de afronta aos princípios da impessoalidade, da moralidade pública e da responsabilidade com gastos públicos. Ademais, desrespeita o princípio republicano e o princípio da igualdade a outorga de tratamento diferenciado a determinado indivíduo, sem que esteja presente o fator de diferenciação que justificou sua concessão na origem.
Diante de todos os argumentos perfilados neste artigo técnico-jurídico, exemplifica-se que, no Rio Grande do Sul, a Lei estadual nº 7.285/1979, por meio do texto original do seu artigo 1º, concedia ao Ex-Governador do Estado, pensão vitalícia, no valor igual ao vencimento do Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado. Em 2015, contudo, por meio da Lei estadual nº 14.800/2015 foi extinta a vitaliciedade dessa pensão, mas assegurando o recebimento desse valor de acordo com a proporcionalidade temporal em que o Governador exerceu efetivamente o cargo (art. 1º, §1º). Por exemplo, se o governador cumprisse, integralmente, o seu mandato, receberia o valor da aludida pensão pelo prazo de 04 anos. Contudo, em 15.678/2021, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, por meio da lei estadual nº 15.678/2021, extinguiu a pensão em referência.
Diante desse cenário, considerando que não há mais a previsão desse instituto no ordenamento jurídico, o qual não guarda correspondência com a principiologia do sistema previdenciário, com os princípios constitucionais e valores republicanos, indaga-se se seria legal e legítimo que a autoridade política, a qual sancionou a lei estadual nº 15.678/21, solicitasse, após renunciar ao cargo eletivo, a concessão desse benefício, ainda que, posteriormente, tenha abdicado de receber esse subsídio mensal?
Independente de existir, ou não, algum argumento jurídico-legal, no qual possibilitasse a Ex-Governador receber esse subsídio mensal, ainda que proporcional ao exercício do seu mandato eletivo, considerando a principiologia relacionada à Previdência Social, ao princípio republicano, aos princípios constitucionais relativos à Administração Pública, especialmente ao da impessoalidade e ao da moralidade, e rememorando as palavras do célebre Ministro Celso de Mello, mais uma vez, indaga-se: o recebimento de subsídio mensal, embasado em legislação não mais vigente no ordenamento jurídico, respeita os parâmetros ético-jurídicos do atual Estado Democrático de Direito?