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A imunidade absoluta de jurisdição de Estados.

"Sólida regra costumeira" ou mito?

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05/07/2007 às 00:00
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A Convenção Européia sobre Imunidade de Estado

A Convenção Européia sobre Imunidade de Estado resultou de discussões iniciadas em 1963. Foi finalizada em 1972, mas, decorridos mais de trinta anos, apenas sete países aderiram 36.

Registra-se que também a Convenção inclinou-se nitidamente para a relativização da imunidade de jurisdição.


A Comissão de Direito Internacional e a Imunidade de Estados

A comissão de Direito Internacional (CDI) foi estabelecida pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas 37, com a incumbência de cuidar do desenvolvimento e da codificação do Direito Internacional.

De reconhecida competência em Direito Internacional, é composta por 34 membros 38, eleitos pela Assembléia Geral 39.

Em 1977, a Assembléia solicitou à Comissão de Direito Internacional que considerasse a questão da "imunidade de Estados e sua propriedade". Em 1978, a Comissão iniciou estudos sobre o tema e designou como relator o professor Sompong Sucharitkul, da Tailândia. Entre 1979 e 1986, o professor Sucharitkul elaborou oito (extensos) relatórios 40. Submeteu-se uma versão à Assembléia Geral e, até 1988, vinte e três Estados haviam se pronunciado sobre a proposta de artigos da CDI.

Entre 1988 e 1991, o novo relator designado, professor Motoo Osigo, do Japão, preparou a versão final em três documentos, apresentando-os à Assembléia Geral da ONU no outono de 1991.

Observa-se que a versão final do "projeto de artigos sobre imunidade de Estados e sua propriedade" também consagrou a teoria da imunidade relativa.


A imunidade absoluta como "antiga e sólida regra costumeira": tudo que é sólido desmancha no ar

Em 1873 (e, portanto, mais de um século antes da decisão mencionada no início deste artigo), ao proferir lapidar voto no caso The Charkieh, em que se abordou a questão da imunidade, o juiz inglês Robert Phillimore afirmou:

Além daquele princípio [da independência] não há posição comum. Faculta-se a cada Estado aplicar, a seu modo, o princípio e cada um o aplicou de maneira distinta. Alguns adotaram uma regra de imunidade absoluta que, se levada às ultimas conseqüências, arriscaria tornar-se um instrumento de injustiça. Outros adotaram uma regra de imunidade para atos [de natureza] pública, mas não para atos [de natureza] privada, o que tem se mostrado uma distinção elusiva. Todos admitem exceções. Não há prática uniforme. Não há regra uniforme. 41

Para que se possa configurar uma norma costumeira de Direito Internacional, é necessário que se tenha uma "prática geral aceita como sendo o Direito", nos precisos termos do artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça 42.

Registra-se que, na primeira decisão proferida pela Corte Internacional de Justiça (CIJ) no caso Haya de la Torre, em que contendiam Peru e Colômbia, em questão concernente ao asilo diplomático, afirmou-se que a prática revelava "tantas incertezas e contradições", "flutuações e discordâncias" e "influências políticas" que se impossibilitava discernir um uso uniforme e uma aceitação constante, susceptível de servir de base ao costume 43.

Pelos fundamentos acima expendidos, resta patente que a imunidade absoluta de Estados não configurou costume, no sentido jus-internacionalista do termo, quanto mais uma "sólida regra costumeira". As "incertezas, contradições, flutuações e discordâncias" observadas pela CIJ na primeira decisão proferida do caso Haya de la Torre são também inferíveis da prática dos Estados atinente à imunidade absoluta de jurisdição.

Destarte, pelo zelo a uma "sólida regra costumeira" que não resistiria a uma análise mais detida, indenizações e verbas trabalhistas deixaram de ser pagas ou, pelo menos, judicialmente discutidas. A suposta norma consuetudinária era, na verdade, um mito - uma crença equivocada que custou a vários indivíduos a adequada prestação jurisdicional.


Notas

1 Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Apelação Cível nº 9696-3/SP, Pleno, Relator: Min. Sydney Sanches, julgada em 31.5.1989, com publicação no DJ de 12.10.1990.

2 Idem.

3 Idem.

4 Idem.

5 MAGALHÃES, José Carlos de. O Supremo Tribunal Federal e o direito internacional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 136.

6 Neste sentido, BENADAVA, Santiago. Derecho internacional público. 7ª ed. Santiago: LexisNexis, 2001, p. 27, assevera: "El derecho internacional consuetudinario conserva su importancia como parte del orden jurídico internacional. Sectores tales como la responsabilidad internacional, las inmunidades del Estado y la práctica arbitral continúan regidos por la costumbre."

7 BOSON, Gerson de Britto Mello. Imunidade Jurisdicional dos Estados. Revista de Direito Público. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 22, p. 9, 1972.

8 Neste sentido preceituam REMIRO BROTÓNS et alli: "Conforme al [principio de la inmunidad del Estado extranjero] (...), un Estado debe abstenerse, en ciertos supuestos, de ejercer jurisdicción en un proceso incoado ante sus tribunales contra otro Estado (inmunidad de jurisdicción) y de adoptar medidas de ejecución contra sus bienes (inmunidad de ejecución)."

9 Os trechos relevantes de ambas as decisões aparecem em artigo do professor Michael Ramsey, que apresenta conceituação própria: "a teoria dos atos de Estado estipula que, sujeito a exceções, as cortes dos Estados Unidos não julgarão a validade de atos oficiais de governos estrangeiros realizados em seu próprio território." RAMSEY, Michael D. Acts of State and Foreign Sovereign Obligations. Harvard International Law Journal, Cambridge, v. 39, n. 1, p. 1, inver. 1998.

10 CAPLAN, Lee M.. State immunity, human rights and jus cogens: a critique of the normative hierarchy theory. American Journal of International Law. Washington, v. 97, n.4, p. 745. October 2003.

11 The Australian Law Reform Comission. Disponível em: < https://www.austlii.edu.au/au/other/alrc/publications/reports/24>. Acesso em: 15 jan. 2005.

12 Neste sentido, ver AKEHURST, Michael. Modern introduction to International Law. 7.ed. rev. por MALANCZUK, Peter. Londres: Routledge, 1997, pp. 118-119; REMIRO-BROTÓNS, Antonio et al. Derecho Internacional. Madri: McGraw-Hill, 1997. p. 799; CARTER, Barry E.; TRIMBLE, Phillip R.. International law. New York; Aspen Law e Business, 1999. 3.ed. pp. 595-599; SHAW, Malcolm M. International law. Cambridge: Cambridge University Press, 1997. p. 494; BLAKESLEY, Christopher L. et al. The international legal system. New York: Foundation Press, 2001. p. 505-507; HEß, Burkhard. The international law comission’s draft convention on the jurisdictional immunities of states and their property. European Journal of International Law, Oxford, v.4, n.2, p. 269, 1993; DEAK, Francis. Órganos del estado en sus relaciones exteriores: inmunidades y privilegios del estado y de sus órganos. In: SORENSEN, Max. Manual de derecho internacional publico, México: Fondo de Cultura Económica, 1994. p. 413-414.

13 Entre pares não há superior.

14 REMIRO-BROTÓNS, op.cit., p. 793, nota 12.

15 MAGALHÃES, op.cit., pp. 128-129, nota 6 e DEAK, op.cit., p. 414, nota 12.

16 BYERS, Michael. Custom, power and the power of rules. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. pp. 110-111. Nesse sentido, ver também The Australian Law Reform Comission, op. cit.

17 BYERS, op.cit., p. 110, nota 16.

18 CAPLAN, op.cit., p. 753, nota 10.

19 BYERS, op.cit., pp. 110-111, nota 16. Tradução do autor. A versão original é a seguinte: [However], an examination of the history of State immunity, which is primarily a history of national court judgments and national legislation, indicates that absolute immunity was not an established rule. Rather, history suggests that there was no general rule regulating State immunity from jurisdiction prior to restrictive immunity becoming a rule of customary international law, and that a mistaken belief in such a pre-existing rule served to retard that later development.

20 BYERS, op.cit., p. 111, nota 16. Também o professor Joseph W. Dellapenna, da Villanova University, informa a existência de julgados, ainda no século XIX, adotando restrições à imunidade de Estado. Ver DELLAPENNA, Joseph W.. Foreign State Imunnity in Europe. New York International Law Review, New York,especialmente p. 56, Summer, 1992.

21 MURRAY, Michael D. Jurisdiction under the foreign sovereign immunities act for nazi war crimes of plunder and expropriation. New York University Journal of Legislation and Public Policy, New York, p. 225, 2003-2004. Tradução do autor. A versão original é a seguinte: "It is my position that the principles of the restrictive theory were adopted and applied by the united States courts early in the nineteenth century, starting with three landmark decisions of the Marshall court, and that only for a brief period from 1926 to 1938 did the United States Supreme Court send a mixed message concerning the absolute theory of sovereign immunity that contrasted with the more restrictive message being espoused by the State Department and executive branch during the same period."

22 A decisão pode ser encontrada na íntegra em <https://press-pubs.uchicago.edu/founders/documents/a1_8_11s14.html>

23 Neste sentido, ver: Australian Law Reform Comission (1984) Report No.24: Foreign State Immunity, Canberra: Australian Government Printing Office, 1984. Disponível em: < https://www.austlii.edu.au/au/other/alrc/publications/reports/24>. Acesso em: 15 jan. 2005; REMIRO-BROTÓNS, op.cit., p. 797, nota 11; CAPLAN, op.cit., p. 745, nota 9; SHAW, op.cit., p. 492, nota; BROWNLIE, Ian. Principles of public international law. 5.ed. New York: Oxford University Press, 1998. p.328; BUERGENTHAL, Thomas; MAIER, Harold M. Public international law in a nutshell. St. Paul: West Publishing Co., 1990. p. 222; GAILLARD, Emmanuel; PINGEL-LENUZZA, Isabelle. International organisations and imunnity from jurisdiction: to restrict or to bypass. International e Comparative Law Quarterly, Oxford, v.51, part 1, p. 1, jan. 2002; BLAKESLEY, op.cit., p. 506-507.

24 Cf. HARRIS, D. J. Cases and materials on international law. 5. ed. Londres: Sweet e Maxwell, 1998. p. 308. e CAPLAN, op.cit., pp. 745-746, nota 10.

25 The world being composed of distinct sovereignties, possessing equal rights and equal independence, whose mutual benefit is promoted by intercourse with each other, and by an interchange of those good offices which humanity dictates and its wants require, all sovereigns have consented to a relaxation in practice, in cases under certain peculiar circumstances, of that absolute and complete jurisdiction within their respective territories which sovereignty confers.

26 This full and absolute territorial jurisdiction being alike the attribute of every sovereign, and being incapable of conferring extra-territorial power, would not seem to contemplate foreign sovereigns nor their sovereign rights as its objects. One sovereign being in no respect amenable to another; and being bound by obligations of the highest character not to degrade the dignity of his nation, by placing himself or its sovereign rights within the jurisdiction of another, can be supposed to enter a foreign territory only under an express license, or in the confidence that the immunities belonging to his independent sovereign station, though not expressly stipulated, are reserved by implication, and will be extended to him.

27 "This perfect equality and absolute independence of sovereigns, and this common interest impelling them to mutual intercourse, and an interchange of good offices with each other, has given rise to a class of cases in which every sovereign is understood to wa[i]ve the exercise of a part of that complete exclusive territorial jurisdiction, which has been stated to be the attribute of every nation."

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28 "(…) there is a manifest distinction between the private property of the person who happens to be a prince, and that military force which supports the sovereign power, and maintains the dignity and the independence of a nation. A prince, by acquiring private property in a foreign country, may possibly be considered as subjecting that property to the territorial jurisdiction, he may be considered as so far laying down the prince, and assuming the character of a private individual, but this he cannot be presumed to do with respect to any portion of that armed force, which upholds his crown, and the nation he is entrusted to govern."

29 "It is, we think, a sound principle, that when a government becomes a partner in any trading company, it divests itself, so far as concerns the transactions of that company, of its sovereign character, and takes that of a private citizen. Instead of communicating to the company its privileges and its prerogatives, it descends to a level with those with whom it associates itself, and takes the character which belongs to its associates, and to the business which is to be transacted. (. . .) The State of Georgia, by giving to the Bank the capacity to sue and be sued, voluntarily strips itself of its sovereign character, so far as respects the transactions of the Bank, and waives all the privileges of that character. As a member of a corporation, a government never exercises its sovereignty". Disponível em <https://press-pubs.uchicago.edu/founders/documents/amendXIs5.html > Acesso em 15/01/05.

30 Cf. MURRAY, op.cit., p. 246, nota 21.

31 MURRAY, op.cit., p. 252, nota 21

32 MURRAY, op.cit., pp. 251-252, nota 21. Tradução do autor. A versão original, em inglês, é a seguinte: "In cases where it appeared that a vessel was possessed and operated by a foreign government directly, and where extension of the immunity would serve its ends, the State Department tended to make a direct suggestion of immunity.

In cases where the circumstances did not indicate that the foreign sovereign directly possessed and operated a vessel, or where extension of immunity would not serve its purposes, the State Department tended not to take a position in the matter. This was also true in cases where the foreign sovereign was not considered to be "friendly," or in situations where the U.S. government had broken off relations with the foreign sovereign."

33 O ofício está transcrito, na íntegra, em CARTER e TRIMBLE, op. cit., pp. 601-603.

34 "The Department of State has for some time had under consideration the question whether the practice of the Government in granting immunity from suit to foreign governments made parties defendant in the courts of the United States without their consent should be changed. The Department has now reached the conclusion that such immunity should no longer be granted in certain types of cases".

35 "It is thus evident that with the possible exception of the United Kingdom little support has been found except on the part of the Soviet Union and its satellites for continued full acceptance of the absolute theory of sovereign immunity. There are evidences that British authorities are aware of its deficiencies and ready for a change".

36 Os países são Áustria, Bélgica, Chipre, Holanda, Luxemburgo, Reino Unido e Suíça.

37 General Assembly Resolution 174(II) of November 21, 1947. G.A. Res. 174(II), U.N. Doc. A/519, at 105 (1948).

38 G.A. Res. 36/39, 36 U.N. GAOR Supp. (No. 51) at 18, U.N. Doc. A/36/51 (1982)

39 Para maiores informações sobre a Comissão de Direito Internacional (CDI), sugerem-se as obras de SINCLAIR, Ian. The international law commission. Cambridge: CUP, 1993 e MORTON, Jeffrey S. The international law commission of the United Nations. Columbia: University of South Carolina Carolina Press, 2000, bem como o acesso à página da CDI: https://www.un.org/law/ilc/index.htm

40 Cf. HEß, Burkhard, op.cit., p. 270, nota 11.

41 "Beyond that principle there is no common ground. It is left to each State to apply the principle in its own way and each has applied it differently. Some have adopted a rule of absolute immunity which, if carried to he logical extreme, is in danger of becoming an instrument of injustice. Others have adopted a rule of immunity for public acts but not for private acts, which has turned out to be an elusive test. All admit exceptions. There is no uniform practice. There is no uniform rule". A decisão aparece em FOX, Hazel. The law of state immunity. Oxford: OUP, 2002, p. 36.

42 O Estatuto da CIJ pode ser encontrado na página daquela corte: <https://www.icj-cij.org/icjwww/ibasicdocuments/ibasictext/ibasicstatute.htm > Acesso em 16/01/2005.

43 Partes relevantes da decisão aparecem na obra de HARRIS, D.J. op cit., pp. 24-25, nota 24.

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Sobre o autor
Aziz Tuffi Saliba

advogado, professor de Direito Internacional, mestre em Direito Internacional pela Universidade do Arizona (EUA), doutorando em Direito Internacional pela UFMG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SALIBA, Aziz Tuffi. A imunidade absoluta de jurisdição de Estados.: "Sólida regra costumeira" ou mito?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1464, 5 jul. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10107. Acesso em: 22 nov. 2024.

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