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A imunidade absoluta de jurisdição de Estados:

"sólida regra costumeira" ou mito?

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05/07/2007 às 00:00
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Pelo zelo a uma suposta norma consuetudinária que não resistiria a uma análise mais detida, indenizações e verbas trabalhistas deixaram de ser pagas ou, pelo menos, judicialmente discutidas.

"Uma boa sentença é demasiado dura para a mandíbula do tempo e milhares de anos não lograriam devorá-la, ainda que todas as épocas dela se alimentem". (Cartaz afixado na entrada da Defensoria Penal Pública de Valparaíso, Chile).


Introdução

            Em 1976, na cidade de São Paulo, a Srª Geny de Oliveira propôs reclamação trabalhista contra a Representação Comercial da República Democrática Alemã (RDA), pleiteando a anotação na carteira profissional de seu falecido marido dos dados relativos ao contrato de trabalho entre o de cujus e a mencionada representação [01]. A Representação Comercial da RDA contestou e, preliminarmente, invocou a imunidade de jurisdição.

            Em sede recursal, o feito foi remetido ao Supremo Tribunal Federal, sendo julgado em 1989. Após o pedido de vistas, o ilustre internacionalista e então ministro do STF, Francisco Rezek, proferiu voto que foi acatado por todos os demais julgadores. O voto do Ministro Rezek sepultou a aplicação da teoria da imunidade a todos os casos em que Estados estrangeiros estavam envolvidos (teoria da imunidade absoluta), restringindo-a a hipóteses em que o país estivesse agindo como "ente soberano" (teoria da imunidade relativa).

            Em síntese, argumentou o ministro Rezek que a imunidade de jurisdição de Estados resultava de uma "antiga e sólida regra costumeira" [02], que "deixou de existir na década de setenta" [03]. Desse modo, haveria ruído "o nosso único suporte para a afirmação da imunidade numa causa trabalhista contra Estado estrangeiro, em razão da insubsistência da regra costumeira que se dizia sólida – quando ela o era -, e que assegurava a imunidade em termos absolutos". [04]

            Nas decisões subseqüentes do STF e do STJ, consolidou-se, a partir de então, a aplicação da teoria da imunidade relativa de jurisdição dos Estados, revertendo posicionamento anterior, que consagrava a imunidade absoluta, não apenas em decisões, mas também em pareceres da procuradoria-geral da República. O próprio Rezek, na década de setenta, em parecer que proferiu na condição de Procurador-Geral da República (cargo que ocupou antes de ser nomeado Ministro do STF) defendeu, incisivamente, a imunidade absoluta:

            Tem-se, pois, que a imunidade daquele Estado soberano (Japão) à jurisdição doméstica não resulta da convenção de Viena, mas de uma das mais sólidas regras costumeiras de Direito das Gentes. Nenhum estado ignora a impossibilidade de submeter outra Nação, contra a sua vontade, à condição de parte perante o Judiciário local. Nem poderia fazê-lo a menos que disposto – e apto – a garantir pela força bélica a execução da eventual e esdrúxula sentença condenatória, o que repugna substancialmente ao moderno Direito Internacional, que nossa república ajudou a construir e consolidar [05].

            Normas consuetudinárias têm fundamental importância para a construção do Direito Internacional – mormente, se constituírem uma "sólida regra costumeira de Direito das Gentes". Há setores do Direito Internacional que, ainda hoje, são inteiramente regidos por costumes – por exemplo, a imunidade de jurisdição de Estados [06].

            Assim sendo, pretende-se, neste artigo, investigar a configuração da imunidade absoluta como norma consuetudinária.


Delimitação do tema: imunidade de jurisdição de Estados

            A imunidade jurisdicional dos Estados, na feliz asserção do professor Boson, "consubstancia problemática extensa, complexa e apaixonante" [07]. Por ser vasto e intrincado, o tema reclama delimitação.

            Destarte, inicialmente, cumpre propor uma conceituação de imunidade de jurisdição e distingui-la de outras figuras. A imunidade de jurisdição cuida da possibilidade e medida em que Estados, seus órgãos ou empresas podem ser submetidos às cortes de outros países. Já a imunidade de execução concerne à possibilidade de adoção de medidas executórias contra os bens do Estado. [08] Embora a distinção se afigure evidente, nota-se que o mencionado parecer do então procurador-geral da República baralhou os dois institutos, ao afirmar:

            Nenhum estado ignora a impossibilidade de submeter outra Nação, contra a sua vontade, à condição de parte perante o Judiciário local. Nem poderia fazê-lo a menos que disposto – e apto – a garantir pela força bélica a execução da eventual e esdrúxula sentença condenatória (...)

            A imunidade de jurisdição não deve ser confundida com a teoria do ato de Estado (act of State doctrine), uma criação do common law anglo-americano. A primeira e mais sucinta noção na jurisprudência dos Estados Unidos está formulada na decisão da Suprema Corte Americana, no caso Underhill v. Hernandez, de 1897: "as cortes de um país não julgarão os atos executados [alhures] por outro governo no seu próprio território". Mais recentemente, em 1990, no caso W.S. Kirkpatrick & Co., Inc. v. Environmental Tectonics Corp., a Suprema Corte apresentou a teoria como uma regra decisória: "a teoria do ato de Estado (...) requer que (...) os atos de soberanos estrangeiros por eles praticados no âmbito de suas respectivas soberanias deverão ser considerados válidos" [09].

            Em síntese, a "teoria de ato do Estado" concerne a atos praticados por outros países em outras (suas respectivas) jurisdições.

            Também não se deve confundir a imunidade de jurisdição estatal com as imunidades e privilégios diplomáticos e consulares. Tais garantias são conferidas, respectivamente, aos agentes diplomáticos e consulares e, hodiernamente, regulamentadas nas Convenções de Viena de 1961 e 1963, enquanto a imunidade de jurisdição de Estados se arrima, primordialmente, em costume.

            A imunidade de Estados perante cortes estrangeiras irrompe do conflito entre dois princípios basilares de Direito Internacional: a igualdade entre os Estados e a jurisdição territorial exclusiva [10].


A imunidade absoluta precedeu a relativa?

            A origem da imunidade jurisdicional é objeto de controvérsia [11]. Parte considerável da doutrina assevera que a imunidade teria suas raízes na independência e na igualdade dos Estados e que, em princípio, seria absoluta [12]. Se os países são independentes e iguais, um Estado não poderia submeter, às suas cortes, outro país: par in parem non habet imperium [13]. Atentaria-se contra "sua soberania, sua independência, sua dignidade vê-lo como demandado" [14]. A imunidade cobriria toda a atuação estatal, o que lhe conferiria caráter absoluto.

            Contudo, a maior participação do Estado em setores que haviam sido, até então, alocados primordialmente para a iniciativa privada, teria levado a um abrandamento da imunidade, já na primeira metade do século XX [15]. Passou-se a distinguir entre os atos de império e os de gestão. Os atos de império seriam os próprios do ente soberano, enquanto os de gestão seriam aqueles de natureza comercial ou de direito privado.

            A dissonância desta versão é mais bem formulada [16] pelo professor Michael Byers, da Duke University. Segundo Byers, é uma crença geral que quando a doutrina de imunidade relativa se tornou uma norma consuetudinária de Direito Internacional, na metade do século XX, alterou-se o costume preexistente em que se garantia imunidade absoluta de jurisdição aos Estados [17]. No entanto, tal crença seria errônea e a existência de imunidade absoluta não passaria de um mito [18]. Afirma Byers [19]:

            (...) um exame da história da imunidade estatal, que é basicamente uma história de julgados de cortes nacionais e de legislação interna, indica que imunidade absoluta não era uma regra estabelecida. Mais propriamente, a história sugere que não havia qualquer norma geral regulando a imunidade de jurisdição antes da imunidade relativa se tornar uma norma de Direito Internacional e uma crença equivocada em tal regra pré-existente serviu para retardar o desenvolvimento [da imunidade relativa].

            Como esteio à sua tese, Byers aponta casos anteriores em que já se aplicava a teoria relativa de imunidade: os tribunais belgas utilizaram-na já em 1857, os italianos em 1886, os suíços em 1918. Além disso, cortes argentinas e francesas, em 1924, egípcias, a partir de 1926, gregas, desde 1928, irlandesas, a datar de 1941 e alemãs, a partir de 1949, distinguiam atos de império dos de gestão [20].

            Byers aponta que nos países do sistema common law é que se consolidou a prática de garantir imunidade absoluta, mormente nos Estados Unidos, onde tal práxis estaria "entrincheirada" a partir da célebre decisão de autoria do presidente da Suprema Corte Americana, John Marshall no caso Schooner Exchange v. McFaddon.

            Mas mesmo tal enraizamento da imunidade jurisdicional absoluta de Estados nos E.E.U.U. é, no mínimo, dubitável. No estudo que mais minuciosamente analisou o desdobramento da imunidade jurisdicional nos Estados Unidos, o professor Murray, da Universidade de Illinois, apresentou conclusão distinta, que transcrevemos [21]:

            Meu entendimento é que a teoria da imunidade relativa de jurisdição foi adotada e aplicada pelas cortes dos Estados Unidos já no início do século XIX, começando com três marcantes decisões da corte (presidida pelo juiz Marshall) e que somente por breve período, de 1926 a 1938, é que a Suprema Corte americana adotou posição ambígua concernente à teoria da imunidade absoluta, que contrastava com o posicionamento esposado pelo Departamento de Estado e pelo Executivo, na mesma época.

            As três decisões da Suprema Corte a que se refere o professor Murray são a já mencionada Schooner Exchange v. McFaddon, mais Santíssima Trinidad e, por fim, o decisum no caso Bank of the United States v. Planters´´ Bank of Georgia. Abordaremos o primeiro e o último, tendo em vista a maior atenção que receberam da jurisprudência subseqüente.


O caso Schooner Exchange v. McFaddon

            O decisum do juiz Marshall no caso Schooner Exchange v. McFaddon [22] é apontado por substancial número de doutrinadores como o primeiro ou, ao menos, a mais clara formulação da doutrina da imunidade de Estados até então [23].

            Em 1810, a escuna Exchange, até então utilizada para fins comerciais e de propriedade de dois nacionais norte-americanos, foi aprisionada pela marinha francesa. Por ordem de Napoleão Bonaparte, foi transformada em navio de guerra - o "Balaou". Dois anos depois, forçada a aportar em Filadélfia, nos Estados Unidos, para que se realizassem reparos em decorrência de uma tempestade, os ex-proprietários americanos moveram ação possessória para reaver a escuna. O governo francês contestou, argumentando que, como navio de guerra, a Exchange constituía-se em longa manus do imperador e tinha direito à imunidade, tal como o próprio Napoleão Bonaparte [24].

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            Merecem transcrição alguns pontos do mencionado decisum:

            A jurisdição de uma nação em seu território é necessariamente exclusiva e absoluta. É insusceptível de qualquer limitação que não seja imposta por si mesma. (...)

            Sendo o mundo composto de soberanias distintas, possuidoras de iguais direitos e independência, cujo mútuo benefício é promovido pela relação com o outro e por troca daqueles bons ofícios que a humanidade dita e seus desejos requerem, todos os soberanos consentiram, na prática, em certos casos em circunstâncias peculiares, com um relaxamento daquela jurisdição absoluta e completa no âmbito de seus respectivos territórios, que a soberania lhes confere [25].

            Essa plena e absoluta jurisdição territorial, sendo igualmente um atributo de cada soberano e sendo incapaz de conferir poderes extraterritoriais, não sendo um soberano em qualquer aspecto submisso a outro e estando compelido por obrigações da mais alta natureza a não degradar a dignidade de sua nação, ao colocar a si mesmo ou a seus direitos soberanos sob a jurisdição de um outro, se presumirá que só entrará em território estrangeiro sob uma licença expressa ou na confiança que as imunidades pertinentes à sua posição de soberano independente, embora não expressamente estipuladas, estão reservadas por decorrência e serão estendidas a ele [26].

            Essa perfeita igualdade e absoluta independência de soberanias e esse interesse comum, que as impele a manter relações mútuas e a trocar bons ofícios umas com outras, fez surgir uma classe de casos em que se entende que cada soberania renuncia ao exercício de parte daquela complexa jurisdição exclusivamente territorial, que se declara ser um atributo de cada nação [27].

            Como se vê, Marshall não fez referência à imunidade absoluta. Aliás, em outro trecho, deixou entrever distinção entre a propriedade privada de um soberano e a propriedade pública a serviço do Estado estrangeiro, ao afirmar que:

            (…) há manifesta distinção entre a propriedade privada de uma pessoa que porventura é príncipe e a força militar que apóia o poder soberano e mantém a dignidade de uma nação. Pode-se considerar que um príncipe, ao adquirir propriedade privada em país estrangeiro, sujeita-a à jurisdição territorial; pode-se considerar que até aquele ponto se põe de lado o príncipe e se assume um caráter de pessoa individual privada, mas isso não pode ser presumido relativamente a nenhuma porção de suas forças armadas, que sustentam sua coroa e a nação que lhe confia o governo. [28]


Caso Bank of the United States v. Planters´´ Bank of Georgia

            A emenda n. XI à constituição americana veda "qualquer demanda baseada na lei ou na eqüidade, iniciada ou processada contra um dos Estados Unidos por cidadãos de outro Estado, ou por cidadãos ou súditos de qualquer potência estrangeira". Destarte, garante-se aos estados-membros da federação americana, bem como a seus órgãos, a imunidade de jurisdição.

            O Caso do Planters´Bank envolveu um banco que tinha como um de seus acionistas o estado de Geórgia. Diante da invocação de imunidade de jurisdição, o juiz Marshall, em 1824, pronunciou-se nos seguintes termos:

            Pensamos ser um sólido princípio que quando um governo se torna sócio de qualquer companhia comercial, ele renuncia de seu caráter soberano, no que concerne às transações daquela companhia, e assume a posição de um ente privado. Em vez de comunicar à companhia seus privilégios e prerrogativas, desce ao nível daqueles com quem se associou e assume o caráter pertinente aos seus sócios e à atividade comercial em que transacionará. (...) Ao conferir ao Banco capacidade de processar e ser processado, o estado de Georgia voluntariamente se despe de seu caráter soberano, no que diz respeito às transações do Banco, e abdica de todos os privilégios relativos a tal caráter. Como sócio de uma empresa, um governo nunca exerce sua soberania. (...) [29]

            Da análise da tríade, chega-se à mesma conclusão do Prof. Murray: a Suprema Corte Americana , já no início do século XIX, adotava a teoria da imunidade de jurisdição relativa.

            A orientação da corte só mudaria no caso Berizzi Bros. Co. v. SS Pesaro, em que o juiz da Suprema Corte Americana, Van Devanter, entendeu que um navio realizando comércio para o benefício da nação estava tanto a serviço público do Estado quanto um navio de guerra, devendo ser concedidas a ele as mesmas imunidades [30].


O Departamento de Estado e o ofício de Jack B. Tate (The Tate Letter)

            Observa Murray que o Departamento de Estado americano acatou os princípios mais relevantes da teoria da imunidade relativa e teve atuação bastante consistente no século XX [31]. Ainda de acordo com Murray:

            Nos casos em que se afigurava que um navio era de propriedade de um governo estrangeiro, operado diretamente por ele, e cuja extensão da imunidade serviria à sua finalidade, o Departamento de Estado tendia a fazer uma clara sugestão de imunidade. Em casos em que as circunstâncias não indicavam que o governo estrangeiro possuía e operava um navio ou onde a extensão da imunidade não fosse cumprir sua finalidade, o Departamento de Estado tendia a não tomar uma posição na questão. Isso também valia para casos em que a soberania estrangeira não era considerada "amistosa" ou em situações em que o governo dos E.E.U.U. tivesse rompido relações com o outro Estado [32].

            Em 1952, o Departamento de Estado divulgou um ofício (the Tate Letter) [33] em que explicitou de forma inequívoca sua adesão à teoria da imunidade relativa:

            O Departamento de Estado, já há algum tempo, tem considerado a questão se a prática do Governo [americano] em conceder imunidade de jurisdição a governos estrangeiros, acionados nas cortes dos Estados Unidos sem seu respectivo consentimento deveria ser mudada. O Departamento, agora, concluiu que tal imunidade não mais deveria ser concedida em alguns tipos de casos [34]. (...)

            Assim, resta evidente que, excetuando-se a União Soviética e seus satélites e, possivelmente, o Reino Unido, encontra-se pouco amparo para uma continuidade de aceitação integral da teoria da imunidade absoluta. Há evidências que as autoridades britânicas estão conscientes de suas deficiências e prontas para mudar [35].

            Dois pontos merecem particular atenção. O primeiro é o fato de a questão da relativização de imunidade estar sob análise "já há algum tempo". Segundo, é o expresso reconhecimento de pouco apoio, no cenário internacional, para a regra da imunidade absoluta.


A Convenção Européia sobre Imunidade de Estado

            A Convenção Européia sobre Imunidade de Estado resultou de discussões iniciadas em 1963. Foi finalizada em 1972, mas, decorridos mais de trinta anos, apenas sete países aderiram [36].

            Registra-se que também a Convenção inclinou-se nitidamente para a relativização da imunidade de jurisdição.

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Sobre o autor
Aziz Tuffi Saliba

advogado, professor de Direito Internacional, mestre em Direito Internacional pela Universidade do Arizona (EUA), doutorando em Direito Internacional pela UFMG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SALIBA, Aziz Tuffi. A imunidade absoluta de jurisdição de Estados:: "sólida regra costumeira" ou mito?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1464, 5 jul. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10107. Acesso em: 19 abr. 2024.

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