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Prisão civil, tratados de direitos humanos e as antinomias com a lei e com a Constituição

13/07/2007 às 00:00
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Os Tratados de Direitos Humanos poderiam ser incorporados no Direito interno brasileiro: (a) como Emenda Constitucional (CF, art. 5º, § 3º) ou (b) como Direito supralegal (voto do Min. Gilmar Mendes no RE 466.343-SP) ou (c) como Direito constitucional (essa é a posição doutrinária fundada no art. 5º, § 2º, da CF) ou, por último, (d) como Direito ordinário (antiga posição da jurisprudência do STF).

A primeira possibilidade vem disciplinada no parágrafo 3º, do artigo 5º, da CF, inserido pela Emenda Constitucional 45, que diz: "Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais". Mas, até agora, nenhum Tratado de Direitos Humanos foi introduzido no Brasil de acordo com o procedimento legislativo mencionado. Ou seja: no Brasil nenhum tratado (ainda) conta com status de emenda constitucional.

A segunda assertiva foi sustentada no voto supracitado do Min. Gilmar Mendes (RE 466.343-SP, rel. Min. Cezar Peluso, j. 22.11.06, ainda não concluído), que foi reiterado no HC 90.172-SP, Segunda Turma, votação unânime, j. 05.06.07, nos seguintes termos:

"A Turma deferiu habeas corpus (...) Em seguida, asseverou-se que o tema da legitimidade da prisão civil do depositário infiel, ressalvada a hipótese excepcional do devedor de alimentos, encontra-se em discussão no Plenário (RE 466343/SP, v. Informativos 449 e 450) e conta com 7 votos favoráveis ao reconhecimento da inconstitucionalidade da prisão civil do alienante fiduciário e do depositário infiel. Tendo isso em conta, entendeu-se presente a plausibilidade da tese da impetração. Reiterou-se, ainda, o que afirmado no mencionado RE 466343/SP no sentido de que os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil possuem status normativo supralegal, o que torna inaplicável a legislação infraconstitucional com eles conflitantes, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação e que, desde a ratificação, pelo Brasil, sem qualquer reserva, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), não há mais base legal para a prisão civil do depositário infiel. HC 90172/SP, rel. Min. Gilmar Mendes, 5.6.2007."

A terceira corrente acima referida emana de um consolidado entendimento doutrinário (Sylvia Steiner, A convenção americana, São Paulo: RT, 2000, Flávia Piovesan, Valério Mazzuoli, Ada Pelegrini Grinover, L. F. Gomes etc.), que já conta com várias décadas de existência no nosso país. Em consonância com essa linha de pensamento há, inclusive, algumas decisões do STF (RE 80.004, HC 72.131 e 82.424, rel. Min. Carlos Velloso), mas é certo que essa tese nunca foi inteiramente majoritária na nossa Suprema Corte de Justiça.

A quarta posição retrata a velha e provecta jurisprudência do STF, que tradicionalmente seguia a doutrina da paridade (entre os tratados e as leis ordinárias). Ou seja: enfocava tais tratados como lei ordinária. Essa clássica jurisprudência do STF não perdeu completamente sua validade: ela ainda tem pertinência no que se relaciona com os tratados internacionais que não versam sobre direitos humanos.

O ponto comum entre as três primeiras posições citadas reside no seguinte: os Tratados de Direitos Humanos contam com status supralegal, ou seja, acham-se hierarquicamente acima do Direito ordinário. Essa premissa nos parece totalmente acertada.

Acolhendo-se a doutrina mais recente do STF (a partir do RE 466.343-SP) e desde que não seja observado o procedimento do § 3º do art. 5º da CF, conclui-se que edifício do Direito passou a ter três andares: no patamar de baixo está a legalidade, no topo está a Constituição e no andar do meio encontram-se os Tratados de Direitos Humanos.

Se o tratado ingressa no Direito interno como Emenda constitucional (§ 3º do art. 5º da CF), derroga as disposições constitucionais em contrário ou, no mínimo, cria uma situação de "regra" e "exceção". Se ele se incorpora no Direito interno com o status de Direito supralegal, mas ao mesmo tempo infraconstitucional, nem revoga nem é revogado pela Constituição, posto que os direitos humanos não se excluem (§ 2º do art. 5º da CF e art. 29 da CADH). Deve sempre ser observada a regra interpretativa pro homini, que significa o seguinte: vale o Direito que mais tutela a liberdade, a vida etc. O aparente conflito resolve-se, portanto, pelo princípio pro homini, consagrado pela doutrina e jurisprudência internacionais, segundo o qual sempre prevalece a regra que melhor proteja os direitos da pessoa humana. A questão não implicaria, pois, negativa de vigência de norma constitucional, mas de recurso à hermenêutica para a interpretação, já que o conflito, em matéria de direitos e garantias fundamentais, seria sempre aparente (Sylvia Steiner, A convenção americana, São Paulo: RT, 2000).

Constituição e Tratados, destarte, em matéria de Direitos Humanos, somente se chocam "aparentemente", posto que constituem dois ordenamentos jurídicos superiores e independentes mas que se complementam. Toda legislação ordinária, desse modo, passa a se sujeitar a uma dupla compatibilidade vertical material. Estando em posição de antinomia com qualquer um deles, não vale.

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Quando a lei antinômica é anterior à Constituição, dá-se o fenômeno da não-recepção (perde a validade em razão disso). Quando é posterior a ela, é inconstitucional. É vigente mas não vale. Caso a lei entre em conflito com os Tratados de Direitos Humanos dá-se o seguinte: se anterior, é revogada ou derrogada; se posterior, não tem validade (é inválida) (veja STF, HC 88.420-SP, rel. Min. Ricardo Lewandowski; ainda: STF, HC 90.172-SP, rel. Min. Gilmar Mendes).

Com base no que acaba de ser afirmado, resulta patente que não subsiste no Direito brasileiro nenhuma hipótese de prisão civil relacionada com o depositário infiel. Toda legislação ordinária nesse sentido tem compatibilidade só aparente com a CF e conflita abertamente com o art. 7º, 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos. Falamos em compatibilidade "aparente" com a Constituição Federal pelo seguinte: a rigor, a previsão da prisão civil de depositário na CF (art. 5º, inc. LXVII) é inconstitucional por não ser razoável. Viola o princípio da razoabilidade. Há regras constitucionais inconstitucionais (Otto Bachof). No caso de alimentos, bens jurídicos muito relevantes acham-se por detrás da prisão: vida, integridade física, desenvolvimento da personalidade da pessoa (quando menor) etc. Esses bens jurídicos justificam a privação da liberdade. Uma dívida civil jamais.

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Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998), Advogado (1999 a 2001) e Deputado Federal (2019). Falecido em 2019.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. Prisão civil, tratados de direitos humanos e as antinomias com a lei e com a Constituição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1472, 13 jul. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10142. Acesso em: 23 dez. 2024.

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