O poder sancionador da Administração Pública em contratos administrativos no ordenamento jurídico português e brasileiro

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13/12/2022 às 14:14
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O presente artigo discute, sob a ótica do direito brasileiro e português, a obrigatoriedade de se aplicar de forma automática sanções ao contratado no caso de descumprimento contratual.

Resumo

A crise econômica que afeta as empresas e o poder público, bem como os constantes problemas na execução de contratos administrativos celebrados sob a égide da Lei federal n. 8.666, de 1993, implicam em uma releitura da concepção de não ser possível considerar como discricionário o poder de imposição de sanções, em especial após a alteração promovida pela Lei federal n. 13.655, de 2018, no regime jurídico administrativo. Em que pese o avanço promovido pela Lei federal n. 12.846, de 2013, temos que a possibilidade de celebração de Acordo de Leniência para a isenção ou atenuação de sanções previstas na Lei federal n. 8.666, de 1993 ainda está restrita ao caso de prática de atos ilícitos pelo contratado, além de possuir requisitos específicos que viabilizam a sua celebração em hipóteses excepcionais, mesmo com o advento da Lei federal n. 14.133, de 2021. O presente artigo discute, sob a ótica do direito brasileiro e português, a obrigatoriedade de se aplicar de forma automática sanções ao contratado no caso de descumprimento contratual, defendendo a possibilidade de celebração de compromisso entre a Administração Pública e o Contratado, com fundamento na Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro, quando for demonstrado ser a solução jurídica mais proporcional, equânime, eficiente e compatível com o interesse público.

 

Palavras-chave: Poder Sancionador. Vinculado. Discricionário. Contrato Administrativo. Descumprimento.

 

1. Introdução

A pesquisa desenvolvida neste trabalho busca analisar como tema principal a ideia de se entender como poder vinculado a prerrogativa da Administração Pública aplicar sanções quando da constatação de descumprimento contratual pelo contratado.

A obrigatoriedade de se aplicar sanções é um assunto polêmico e promove intenso debate, dado que existe manifesta tensão entre o interesse de reprimir condutas reprováveis, o de ampliar o universo de potenciais licitantes e o de incentivar a execução dos contratos administrativos. Outro fator determinante para o desenvolvimento deste tema é a importância que o assunto ocupa nas agendas dos governos e na própria sociedade, principalmente em razão de obras e serviços paralisados em decorrência de descumprimentos contratuais parciais das empresas.

O trabalho busca fazer uma releitura do entendimento que vigora no direito administrativo, em decorrência das alterações promovidas pela Lei federal n. 13.655, de 2018, no regime do direito público. Ademais, busca-se fazer um panorama desta questão no ordenamento jurídico português com o intuito de ampliar as discussões promovidas sobre este tema no direito comparado.

Para alcançar os objetivos aqui propostos, o presente trabalho encontra-se dividido em seis seções, sendo elas: O poder sancionador em contratos administrativos sob a ótica do Direito Brasileiro; O poder sancionador em contratos administrativos sob a ótica do Direito Português; A releitura da obrigatoriedade de se aplicar sanções no caso de descumprimento contratual; Conclusão e Referências.

Na seção de “O poder sancionador em contratos administrativos sob a ótica do Direito Brasileiro” discute-se o entendimento predominante na doutrina e jurisprudência sobre a discricionariedade ou não no exercício da prerrogativa do poder público de aplicar sanções quando constatar descumprimento contratual. Já na seção seguinte esta discussão abarca o direito português.

Com relação a seção “A releitura da obrigatoriedade de se aplicar sanções no caso de descumprimento contratual”, discute-se sobre a possibilidade de se permitir certa discricionariedade ao gestor público quando este avaliar no caso concreto que a aplicação de sanção contratual implicará em demasiado prejuízo ao interesse público, razão pela qual seria possível buscar uma solução consensual com o contratado a fim de alcançar interesses gerais. Após essa seção, apresenta-se as conclusões referentes a investigação e as referências utilizadas para subsidiar este estudo.

 

2. O poder sancionador em contratos administrativos sob a ótica do Direito Brasileiro

    

Como é sabido, a Lei federal n. 8.666, de 1993[1], atribui expressamente, no art. 58, inciso IV[2], como prerrogativa da Administração Pública o poder de aplicar sanções no caso de descumprimento parcial ou total do contrato. As sanções que poderão ser aplicadas em face do contratado estão elencadas no art. 87[3] da Lei n. 8.666, de 1993, que ora cita-se:

Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções:

I - advertência;

II - multa, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato;

III - suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos;

IV - declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior.

 

Por sua vez, a Lei federal n. 10.520[4], de 2002, prevê no seu art. 7º que no caso de descumprimento contratual, o contratado ficará, pelo prazo de até 5 (cinco) anos, “impedido de licitar e contratar com a União, Estados, Distrito Federal ou Municípios e, será descredenciado no Sicaf, ou nos sistemas de cadastramento de fornecedores a que se refere o inciso XIV do art. 4o da Lei”, sem prejuízo da aplicação de multas previstas no contrato e seus anexos.

A Nova Lei de Licitações e Contratos, a Lei federal n. 14.133, de 2021, mantém, no inciso IV do art. 104, a prerrogativa da Administração de aplicar sanções motivadas pela inexecução total ou parcial do ajuste, conforme se observa in verbis:

Art. 102. O regime jurídico dos contratos instituído por esta Lei confere à Administração, em relação a eles, as prerrogativas de:

(…)

IV – aplicar sanções motivadas pela inexecução total ou parcial do ajuste;

      

A respeito do regime sancionatório dos contratos administrativos, ensina César Augusto Guimarães Pereira[5]:

Um dos traços distintivos do regime jurídico dos contratos administrativos é precisamente a possibilidade de imposição de penalidades contratuais pela Administração Pública (art. 58, IV, da Lei nº 8.666/1993). O contratante público vale-se de suas competências próprias para apurar infrações e aplicar as sanções cabíveis. Os atos que materializam essa aplicação são dotados de executoriedade e afetam diretamente a esfera de direitos do particular contratado. A Administração aplica multas e, em certa medida, pode valer-se de certas formas de garantia (art. 86, § 2º) ou da retenção de pagamentos (art. 86, § 3º) para se apropriar dos recursos correspondentes. Aplica sanções de suspensão do direito de licitar ou de declaração de inidoneidade, eficazes para além do contrato ou do certame em questão, e com isto materialmente impede o prosseguimento de tais atividades pela pessoa privada atingida pela sanção.

           

No que tange à obrigatoriedade de aplicação de sanções quando da ocorrência de descumprimento contratual pelo contratado, a doutrina brasileira é uníssona no entendimento de que a aplicação de sanções constitui uma prerrogativa do tipo “dever-poder”, inerente ao Poder Disciplinar da Administração, ou seja, a Administração Pública não pode se furtar de tal obrigação quando constatado a inexecução contratual[6]. Assim, preceitua José Anacleto Abduch Santos[7]:

Não há faculdade para aplicação de sanção. Identificada uma infração administrativo-contratual, é obrigatório proceder à apuração da responsabilidade em processo administrativo regular, e, constatada a existência de fato típico, antijurídico e culpável atribuível ao contratado, deve obrigatoriamente ser aplicada a sanção.

           

Nessa linha de raciocínio, também se manifesta Carlos Pinto Coelho Motta[8] que entende que todas as prerrogativas previstas no art. 58 da Lei nº 8.666, de 1993, incluída a de aplicação de sanções, constituem poder-dever da Administração, visto que “não pode o agente dar-se à omissão ou à benevolência, porque exerce a curatela do interesse de outrem”. César Augusto Guimarães[9], quando trata da ausência de discricionariedade, reforça que “não há liberdade de escolha do administrador na aplicação de sanção, mas o dever de traduzir a determinação legal para o caso concreto”.

Marcos Juruena Villela Souto[10] ressalta que, no caso de descumprimento contratual, a discricionariedade prevista ao administrador abrange somente o tipo de pena elencada na norma.

O Tribunal de Contas da União também possui tal entendimento, conforme se depreende da afirmação abaixo:

A aplicação de multa a empresa pela Administração Pública, quando verificada a ocorrência de infração especificada em contrato, configura obrigação e não faculdade do gestor.

(Acórdão n. 2445/2012-Plenário, TC-012.106/2009-6, rel. Min. Valmir Campelo, julg. 11-9-2012)

 

Assim, nos termos apresentados, observa-se que no direito administrativo brasileiro impera o entendimento pela ausência de discricionariedade na aplicação das sanções previstas. Há que se consignar que também prevalece o entendimento de que o tipo de sanção a ser aplicada deverá respeitar os princípios da proporcionalidade e razoabilidade. Nesse sentido, é o entendimento de Marçal Justen Filho[11]:

(…) ainda quando se insista acerca da legalidade e da ausência de discricionariedade, é pacífico que o sancionamento ao infrator deve ser compatível com a gravidade e a reprovabilidade da infração. São inconstitucionais os preceitos normativos que imponham sanções excessivamente graves, tal como é dever do aplicador dimensionar a extensão e a intensidade da sanção aos pressupostos de antijuridicidade apurados. O tema traz a lume o princípio da proporcionalidade.

 

Também consta tal orientação no Acórdão TCU n. 1453/2009-Plenário[12], de relatoria do Ministro Marcos Bemquerer, no qual restou consignado que deve o gestor estipular “em atenção aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, penalidades específicas e proporcionais à gravidade dos eventuais descumprimentos contratuais”.

Ademais, a própria jurisprudência da Corte de Contas da União reforça que é possível que quando da análise do caso concreto, se houver justificativa plausível para o descumprimento pelo contratado, se afaste a aplicação de penalidades, conforme se observa abaixo:

9.6.26. aplique as penalidades previstas nos arts. 86 e 87 da Lei n.º 8.666/1993 nos casos de atraso na execução e de inadimplência contratual ou justifique no processo o motivo da não-aplicação de multa ou outra sanção;

(Acórdão n. 887/2010–Segunda Câmara, TC-021.535/2006-4, rel. Min. José Jorge, julg. 09-03-10)

 

Aplique, quando necessário, as penalidades previstas no termo contratual e no art. 87 da Lei nº 8.666/1993, quando omitidas obrigações pactuadas pela contratada. (Acórdão n. 1727/2006-Primeira Câmara, TC-016.873/2005-2, rel. Min. Guilherme Palmeira, julg. 28-06-2006)

 

Para César Augusto Guimarães Pereira[13] o afastamento concreto de sanções poderia se justificar pela própria aplicação do princípio da proporcionalidade, nos termos abaixo:

Tal como no direito europeu, o afastamento concreto de sanções também pode resultar do princípio da proporcionalidade, especialmente no que se refere ao critério da “necessidade”: uma sanção de afastamento de futuros certames pode até ser adequada à conduta pretérita de um infrator, mas não necessária para atingir os resultados pretendidos pela norma em questão. Esse enfoque exige do aplicador das sanções da Lei nº 8.666/1993 a utilização de um conjunto de princípios e critérios. Por um lado, cabe aplicar os princípios garantísticos do direito sancionatório no processo de apuração da infração. Por outro, apenas a noção de proporcionalidade será capaz de orientar o aplicador a não sacrificar, com a aplicação da sanção, os próprios valores que o sistema sancionatório da Lei nº 8.666/1993 busca proteger e realizar.

 

3. O poder sancionador em contratos administrativos sob a ótica do Direito Português

    

Em 2008, foi publicado o Decreto-Lei n. 18/2008, de 29 de janeiro, decorrente da transposição da disciplina jurídica dos procedimentos de contratação pública contida na Diretiva n.º 2004/17/CE e Diretiva n.º 2004/18/CE, que instituiu o Código dos Contratos Públicos - CCP. Com a edição das Diretivas 2014/23/UE, 2014/24/UE e 2014/25/UE, em 1 de janeiro de 2018, foi publicado o Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de agosto de 2017, que reviu o referido Código[14].

Pedro Gonçalves[15] ressalta que com o código o regime próprio do contrato administrativo deixou “de repousar num número limitado e marginal de disposições especiais, para se converter numa disciplina extensa e detalhada, que persegue o propósito de regular todos os momentos decisivos da relação contratual”. Já Jorge Andrade da Silva[16] ensina que “o CCP procede ainda a uma sistematização racional e a uma uniformização de regimes substantivos dos contratos administrativos”.

Referido Código elenca no seu artigo 302.º os poderes conferidos à Administração Pública no que tange aos contratos administrativos, in verbis:

Artigo 302.º

Poderes do contraente público

Salvo quando outra coisa resultar da natureza do contrato ou da lei, o contraente público pode, nos termos do disposto no contrato e no presente Código:

a) Dirigir o modo de execução das prestações; 

b) Fiscalizar o modo de execução do contrato;

c) Modificar unilateralmente as cláusulas respeitantes ao conteúdo e ao modo de execução das prestações previstas no contrato por razões de interesse público, com os limites previstos no presente Código;

d) Aplicar as sanções previstas para a inexecução do contrato;

e) Resolver unilateralmente o contrato;

f) Ordenar a cessão da posição contratual do cocontratante para terceiro.

 

Do dispositivo supracitado é possível observar que, nos termos colacionado por João Pinto Santos[17], o legislador português permitiu que no contrato público se complete e densifique “os poderes de conformação da relação contratual que o contraente público tem ao seu dispor”, contudo, “o CCP fixa claramente os poderes do contraente público no contrato administrativo regulando-os e, por vezes, com alguma minúcia”.

Especificamente sobre o poder de aplicar sanção em decorrência de descumprimento contratual, dispõe o artigo 329.º:

Artigo 329.º

Aplicação das sanções contratuais

1 - Nos termos previstos no presente Código, o contraente público pode, a título sancionatório, resolver o contrato e aplicar as sanções previstas no contrato ou na lei em caso de incumprimento pelo cocontratante.

2 - Quando as sanções a que se refere o número anterior revistam natureza pecuniária, o respetivo valor acumulado não pode exceder 20 /prct. do preço contratual, sem prejuízo do poder de resolução do contrato prevista no capítulo seguinte.

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3 - Nos casos em que seja atingido o limite previsto no número anterior e o contraente público decida não proceder à resolução do contrato, por dela resultar grave dano para o interesse público, aquele limite é elevado para 30 /prct..

4 - Para efeitos dos limites previstos nos nºs 2 e 3, quando o contrato previr prorrogações expressas ou tácitas, o valor das sanções a aplicar deve ter por referência o preço do seu período de vigência inicial.

    

Vale ressaltar que as declarações do contratante público que aplicam as sanções por inexecução contratual possuem natureza de ato administrativo (artigo 307.º, n. 2, c do CCP)[18], portanto, dotado de executividade, com supremacia do Poder Público sobre o privado (artigo 309.º do CCP)[19], sendo que, em certos casos, será dotado de autoexecutoriedade, ou seja, independe de prévia decisão judicial para sua aplicação (e.g. artigo 296.º do CCP[20]). A qualificação das declarações do contratante público sobre interpretação e validade do contrato ou sobre sua execução como ato administrativo configura uma exceção, visto que, em regra, estas configuram meras declarações negociais, o que, na falta de acordo com o contratado, obriga o Poder Público a recorrer ao Tribunal Administrativo[21] para que as possa fazer valer.

O autor português Pedro Gonçalves[22] ressalta o papel relevante das sanções contratuais, quais sejam, desenvolver, de forma indireta, “uma função coercitiva, de coerção ao cumprimento, constrangendo o co-contratante a cumprir as obrigações contratuais que assumiu”.

No mesmo sentido é o entendimento de João Pinto Santos[23]:

Estes poderes de conformação da relação contratual, designadamente, o poder de aplicar sanções, não consiste numa garantia de cumprimento da obrigação, mas antes, um forte incentivo para o mesmo, ou seja, acaba por representar uma forma de forçar o cocontratante a cumprir a sua obrigação, abrindo assim a possibilidade de responsabilização do cocontratante com o objetivo de proteger o interesse público que justificou o contrato.

    

Imperioso ressaltar que a legislação portuguesa exige prévia audiência do contratado (artigo 308, n. 2 do CCP)[24], com o intuito de permitir que este apresente os motivos de fato e de direito que deram causa ao incumprimento do contrato.

No que tange as sanções possíveis de serem aplicadas em face do contratado por descumprimento contratual, Pedro Gonçalves[25] elenca as seguintes: sanção pecuniária (artigo 329.º), resolução sancionatória (artigo 333.º)[26], realização coactiva da prestação (artigo 325.º)[27] e, no caso de contratos de concessão, o sequestro (artigo 421.º)[28].

Da análise dos dispositivos supracitados do Código dos Contratos Públicos, em especial do artigo 329.º, discute-se se o legislador português definiu que o poder de aplicação de sanção pela Administração Pública em decorrência de descumprimento de contrato administrativo é de caráter discricionário ou vinculado.

Imperioso ressaltar que o Tribunal Central Administrativo Sul[29] entendeu que o “pode” do artigo 329.º do Código dos Contratos Públicos tem um sentido autorizativo e criador de um dever legal, e não o sentido de estabelecer uma faculdade, um poder discricionário”. Inclusive, o Acórdão ressaltou que será possível a aplicação de multas pelo Tribunal de Contas português se constatado o “não acionamento dos mecanismos legais relativos ao exercício do direito de regresso, à efetivação de penalizações ou a restituições devidas ao erário público” (sic).             

Sobre a aplicação de sanções pelo contraente público, Pedro Gonçalves[30] ensina:

Considerando então as consequências jurídicas do incumprimento contractual, pode decerto dizer-se que a implicação decisiva se traduz no possível accionamento ou na efectivação da responsabilidade contractual do co-contratante.

Entende-se por responsabilidade contractual o dever jurídico que recai sobre alguém que outorgou um contrato e que consiste em ter de responder pelo incumprimento definitivo, pelo cumprimento defeituoso ou tardio das obrigações contratuais. O quid specificum da responsabilidade contractual reside no facto de pressupor uma infração ou uma violação de obrigações contratuais.

Para que um tal dever de responder seja efectivado, não se considera necessário que o incumprimento do contrato seja fonte de prejuízos ou de danos para o contraente público: eis o que resulta de, no direito administrativo, a responsabilidade contractual não se confundir com a responsabilidade civil, a qual, essa sim, depende de um dano, vindo, por isso, o dever de responder a consistir numa obrigação de reparar ou de indemnizar.

 

Em que pese a jurisprudência administrativa portuguesa, constata-se que há autores daquele país que questiona se de fato a intenção da norma é de vincular a Administração à aplicação de sanção quando da constatação de descumprimento contratual. Imperioso citar os apontamentos de Suhel Salém[31]:

Em nosso entender, parece-nos que efetivamente a Administração tem uma «discricionariedade de decisão» em matéria sancionatória contratual, i.e. tem o poder de aplicar ou não aplicar uma sanção contratual, mas também, se decidir aplicá-la, em modular a medida da sanção (desde que, obviamente, os aspetos vinculados do ato sejam respeitados, principalmente os princípios gerais da atividade administrativa).

Em defesa da nossa posição, repare-se que nos vários preceitos do CCP que se referem à aplicação de sanções – 302.º, 329.º/1, 403.º/1, 372.º/4/a – existe a utilização do operador deôntico permissivo “pode” como elemento de ligação entre a previsão e a estatuição.32.

(…) Se considerássemos que a Administração, sempre que se preenchessem os pressupostos da previsão legal (um incumprimento imputável ao cocontratante, quer este seja parcial ou total, temporário ou permanente) tinha o dever (poder vinculado) de aplicar sanções de forma matemática e fria, os princípios gerais da atividade administrativa, em especial, os princípios da proporcionalidade e da boa-fé, sairiam seriamente lesados.

    

Nesse sentido, também reforça Pedro Matias Pereira[32] que “a aplicação de uma sanção contractual que, abstratamente, serve o interesse público no cumprimento do contrato pode, a mercê de circunstâncias supervenientes a celebração do contrato (…) tornar-se contraproducente a obtenção desse cumprimento”.

No que tange a sanção de resolução sancionatória do contrato, Pedro Gonçalves[33] entende que esta sanção não é uma consequência automática do incumprimento definitivo, constituindo uma medida discricionária que o contraente público poderá aplicar, sendo que em determinados casos, ainda que obrigações essenciais tenham sido descumpridas, se esta medida for prejudicial ao interesse público, poderá ser afastada.

Jorge Andrade da Silva[34] fala que o artigo 329.º, n. 3 “sugere claramente que o contraente público não tem total discricionariedade na opção pela resolução do contrato, só podendo deixar de tomar essa medida se entender que dela resultar grave dano para o interesse público”.

 

4. A releitura da obrigatoriedade de se aplicar sanções no caso de descumprimento contratual

 

Deve-se ter em vista que o Poder Sancionador da Administração Pública em face de descumprimento parcial e total de contratos administrativos tem por fundamento único a proteção do interesse público. Em vista disso, ainda nas hipóteses em que o contratado não apresenta justificativa técnica razoável para o descumprimento, nem sempre configurará mais benéfico ao interesse público à aplicação de sanção em face do contratado, dado que este pode ficar inviabilizado de cumprir sua obrigação principal em decorrência das sanções aplicadas pelo Poder Público. Nesse sentido, em determinados casos, ainda que obrigações essenciais tenham sido descumpridas e, também, que não haja motivação excepcional do descumprimento pelo contratante, se a aplicação de sanção for prejudicial à prestação do serviço público, esta medida pode e deveria ser afastada.

Em sua tese de mestrado, Suhel Salém[35] reforça tal visão de que em determinados casos, “verificados determinados pressupostos, é possível que a não aplicação ou redução de uma sanção contratual seja a melhor solução para o interesse público, uma vez pesados e ponderados todos os interesses relevantes para o caso”.

É evidente que quando a Administração Pública, no caso da legislação brasileira, aplica a sanção, em especial multa, suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, e declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública, tal ação traz consequências para a empresa e, por sua vez, também ao próprio contrato administrativo que motivou o uso do poder sancionador. Quando, por exemplo, o Poder Público aplica a penalidade de multa à contratada, acaba diminuindo o montante financeiro disponível para a execução do contrato. Quando se aplica a sanção de “suspensão do direito de licitar” ou a “declaração de inidoneidade”, restringe-se o leque de contratos que a empresa poderá celebrar e, dessa forma, impacta nas opções de captação financeira da empresa, diminuindo sua capacidade de atuar, receber recursos e ter condições de investir, o que indiretamente poderá impactar no contrato administrativo que justificou a aplicação da sanção[36]. Sobre este ponto, didáticos são os apontamentos trazidos por César Augusto Guimarães Pereira[37]:

As sanções implicam ônus econômicos adicionais (multas) ou o afastamento direto de licitantes (suspensão ou inidoneidade) do mercado em que a Administração deve encontrar seus possíveis contratados. A aplicação de sanções deve ser pautada por critérios que favoreçam sua utilidade prática e necessidade real. A ampliação indevida da atividade punitiva, sob a justificativa de se suprimir a impunidade, pode destruir o bem que essa atividade se dispõe a defender.

(…)

A aplicação de sanção dessa natureza pode implicar graves danos aos interesses coletivos, especialmente na medida em que pode acarretar a redução da competitividade nas licitações futuras e a destruição econômica da empresa atingida pela penalidade.

    

Nesse sentido, também aponta a portuguesa Suhel Salém[38]:

Vimos supra que o contrato administrativo é utilizado pelo contraente público em ordem a prosseguir um específico interesse público e, nessa medida, existe efetivamente um interesse público no cumprimento pontual do contrato. Ora, em face de um incumprimento imputável ao cocontratante, a aplicação de uma sanção contratual pode não ser uma medida administrativamente interessada, na medida em que poderá colocar em causa a degradação econômico-financeira do cocontratante e, por via disso, o contrato administrativo, lesando o interesse público prosseguido pelo mesmo.  (g.n.)

           

Um exemplo interessante que demonstra maior sinergia da legislação portuguesa com a preocupação de se buscar o interesse público, em detrimento do dever de sancionar o contratado pela Administração Pública é o disposto no artigo 403 do CCP, que assim prevê:

Artigo 403.º

Atraso na execução da obra

1- Em caso de atraso no início ou na conclusão da execução da obra por facto imputável ao empreiteiro, o dono da obra pode aplicar uma sanção contratual, por cada dia de atraso, em valor mais elevado, até o dobro daquele valor.

2 – Em caso de incumprimento de prazos parciais de execução da obra por facto imputável ao empreiteiro, é aplicável o disposto no número anterior, sendo o montante da sanção contratual aí prevista reduzido a metade.

3 - O empreiteiro tem direito ao reembolso das quantias pagas a título de sanção contratual por incumprimento de prazos parciais de execução da obra quando recupere o atraso na execução dos trabalhos e a obra seja concluída dentro do prazo de execução do contrato. (g.n.)

 

Assim, temos que o poder sancionatório da Administração Pública não deve se sobrepor ao fim último que deve ser atendido, qual seja, o atendimento ao interesse público que consiste na prestação do serviço ao cidadão a tempo e a contento. Logo, permitir o reembolso de quantias pagas à título de sanção contratual por incumprimento de prazos parciais de execução da obra quando, ao final, se alcança o objetivo no prazo total acordado, traz incentivos para que o contratado busque o atendimento à obrigação principal, além de demonstrar a visão pelo resultado final em prol do cidadão.

É bem verdade que tal dispositivo se aplica tão somente aos contratos de empreitada de obra pública[39], contudo já configura um verdadeiro avanço na lógica de priorização de resultados que deve orientar a atuação da Administração Pública.

No Brasil, não há dispositivo semelhante na Nova Lei de Licitações e Contratos, sendo que esta norma também não incorporou interessante raciocínio apresentado pelo administrativista Marçal Justen Filho[40] acerca da sanção de suspensão, que na opinião desta autora incorpora o espírito da lógica de se visar o resultado quando do exercício do poder sancionador nos contratos administrativos e deveria ser expressamente consignado no texto legal:

Uma solução satisfatória seria reconhecer que a suspensão temporária seria uma medida destituída de cunho sancionatório em sentido próprio, orientando-se a agravar a situação jurídica do sujeito que se recusasse a executar a prestação a que se obrigara, no tempo e modo devidos. Assim, o sujeito teria duas alternativas de conduta a ponderar: poderia escolher entre adimplir ou não adimplir a prestação devida. O inadimplemento acarretar-lhe-ia a suspensão do direito de licitar, o que corresponderia a uma grave restrição a seus interesses. O adimplemento da prestação evitaria esse resultado gravoso. Ademais, a suspensão do direito de licitar poderia ser utilizada mesmo depois de consumado o inadimplemento. Uma vez o sujeito executando a prestação a que se obrigara, deixará de incidir a suspensão do direito de licitar.

Sob esse prisma, a suspensão do direito de licitar não se configuraria propriamente como uma sanção aflitiva ou retributiva, mas se trataria de uma medida orientada a constranger o sujeito a executar a prestação a que se obrigara. Adotado esse entendimento, promover-se-ia a imediata supressão da suspensão temporária tão logo o sujeito executasse a prestação a que se obrigara. Em suma, tratar-se-ia de providência de cunho cominatório, destinada a assegurar a execução específica de obrigação de fazer. (g.n.)

               

Ainda, partindo desta lógica, é a ideia apresentada por César Augusto Guimarães Pereira[41] que também deveria ser expressamente registrada na nova lei:

O sistema descrito corresponde à ideia de autossaneamento (“self-cleaning”) como um procedimento substitutivo da mera aplicação de sanções de afastamento de futuras licitações e contratos (PEREIRA; SCHWIND, 2015, passim). Se as medidas de suspensão e inidoneidade se referem ao futuro, não ao passado, faculta-se ao acusado ou ao apenado demonstrar que adotou medidas corretivas ou preventivas que atingem o “standard probatório” mencionado e permitem a supressão de tais sanções. Esta análise deve ser feita em cada situação concreta, sem prejuízo do estabelecimento de certos padrões mínimos de avaliação pela Administração Pública, sempre tendo em vista os parâmetros discutidos anteriormente.

           

De todo modo, de maneira geral há que se consignar que a visão tradicional que impera no direito administrativo brasileiro “acerca da legalidade e da ausência de discricionariedade” deverá ser revisitada em razão do disposto no artigo 26 da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro, inserido pela Lei federal nº 13.655, de 2018, que assim prevê:

Art. 26. Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial.                   (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)     (Regulamento)

§ 1º  O compromisso referido no caput deste artigo:                    (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)

I - buscará solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais;                    (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)

II – (VETADO);                       (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)

III - não poderá conferir desoneração permanente de dever ou condicionamento de direito reconhecidos por orientação geral;   (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)

IV - deverá prever com clareza as obrigações das partes, o prazo para seu cumprimento e as sanções aplicáveis em caso de descumprimento.   (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)

§ 2º  (VETADO). (g.n.)

    

Ou seja, o gestor público quando da constatação do descumprimento de obrigações contratuais, presentes razões de relevante interesse geral, poderá buscar a celebração de compromisso com o contratado com o intuito de aplicar uma solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais.

Vale ressaltar que com a inclusão do princípio da eficiência no caput do artigo 37 da Constituição Federal, a busca de uma solução consensual para evitar o prejuízo ao interesse público, no caso de descumprimento contratual pelo contratado, já poderia ter sido incorporada na gestão de contratos administrativos, visto que com a Emenda Constitucional nº 19, de 04 de junho de 1998, potencializou-se a necessidade de se buscar melhores práticas para a atuação da Administração Pública.

Nesse sentido, destaca Cristiana Fortini[42]:

“Impõe-se, diante do texto constitucional, a desburocratização da estrutura administrativa e dos procedimentos adotados no desempenho de tal atividade, liberando o administrador público do cumprimento de formalidades inúteis, inconciliáveis com o interesse da coletividade, porque nenhum benefício acrescenta, mas, ao contrário, retardam o fluir da ação administrativa.”

           

Sobre a irradiação das normas previstas na Lei de Introdução ao Direito Brasileiro (LINDB) no regime jurídico administrativo, imperioso indicar o enunciado 18 (dezoito) do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo - IBDA:

18. A LINDB é norma jurídica que impacta todas as regras de direito público, especialmente aquelas que tratam da responsabilização dos agentes públicos que decidem ou emitem opiniões técnicas. (g.n.)

 

Ademais, acerca da possibilidade de se celebrar compromisso com o contratado acerca de descumprimento contratual, traz o enunciado 21 (vinte e um) do IBDA:

21. Os artigos 26 e 27 da LINDB constituem cláusulas gerais autorizadoras de termos de ajustamento, acordos substitutivos, compromissos processuais e instrumentos afins, que permitem a solução consensual de controvérsias.

 

Importante ressaltar o disposto no art. 17 da Lei federal n. 12.846, de 2013, que trouxe a figura do Acordo de Leniência e que este pode abranger as sanções administrativas constantes na Lei nº 8.666, de 1993, com vistas a sua isenção ou atenuação:

Art. 17. A administração pública poderá também celebrar acordo de leniência com a pessoa jurídica responsável pela prática de ilícitos previstos na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, com vistas à isenção ou atenuação das sanções administrativas estabelecidas em seus arts. 86 a 88. (g.n.)

                       

Acerca dos requisitos para a celebração do Acordo de Leniência, ensina Rafael Oliveira[43]:

A  celebração  do  sobredito  acordo  dependerá  do  preenchimento  cumulativo  dos  seguintes  requisitos:  ( a)  a pessoa  jurídica  deve  ser  a  primeira  a  se  manifestar  sobre  seu  interesse  em  cooperar  para  a  apuração  do  ato ilícito;  (b)  a  pessoa  jurídica  deve  cessar  completamente  seu  envolvimento  na   infração  investigada  a  partir  da data  de  propositura  do  acordo;  e   (c)  a  pessoa  jurídica  deve  admitir  a  sua  participação  no  ilícito  e  cooperar plena  e  permanentemente  com  as  investigações  e  o  processo  administrativo,   comparecendo,   sob  suas expensas,   sempre  que  solicitada ,   a  todos  os  atos  processuais,   até  seu  encerramento  (art. 16, §1.º, da Lei 12. 846/2013).

           

Como se vê, a lei anticorrupção permitiu a celebração do Acordo de Leniência, no entanto, com requisitos para a sua celebração tão complexos, a sua utilização acaba se tornando algo excepcionalíssimo. Ainda, muitos descumprimentos contratuais não decorrem necessariamente de atos ilícitos do contratado, mas de questões rotineiras decorrentes do próprio dia-a-dia da gestão empresarial. Nesse sentido, a Nova Lei de Licitações não avançou nesta matéria, já que não prevê expressamente a possibilidade de celebração de um ajuste entre o contratante e o contratado para evitar de forma imediata a aplicação de sanção. De todo modo, é um avanço desta norma o de exigir da Administração Pública que se considere as peculiaridades do caso concreto, que pode implicar em demasiado prejuízo ao interesse público a aplicação de determinadas sanções, conforme dispositivo abaixo:

Art. 156. Serão aplicadas ao responsável pelas infrações administrativas previstas nesta Lei as seguintes sanções:

I - advertência;

II - multa;

III - impedimento de licitar e contratar;

IV - declaração de inidoneidade para licitar ou contratar.

§ 1º Na aplicação das sanções serão considerados:

I - a natureza e a gravidade da infração cometida;

II - as peculiaridades do caso concreto;

III - as circunstâncias agravantes ou atenuantes;

IV - os danos que dela provierem para a Administração Pública;

V - a implantação ou o aperfeiçoamento de programa de integridade, conforme normas e orientações dos órgãos de controle. (g.n.)

 

Assinala-se que, em conformidade com as alterações promovidas pela LINDB, a Nova Lei de Licitações traz avançada modificação quando trata das sanções administrativas, em especial ao estabelecer parâmetros para aplicação das sanções, deixando expresso que quando da sua aplicação deverão ser avaliados a natureza e a gravidade da infração cometida, as peculiaridades do caso concreto, as circunstâncias agravantes ou atenuantes, os danos que dela provierem para a Administração Pública e a implantação ou aperfeiçoamento de programa de integridade, conforme normas e orientações dos órgãos de controle.

De todo modo, em um contexto de crise econômica, agravado pela pandemia do COVID-19, com diversos contratos de obras públicas com cronogramas atrasados e paralisados, com contratos de prestação de serviço e fornecimento com atraso de pagamento de até 90 (noventa) dias (ou mais) pela Administração Pública brasileira, e com diversas empresas em dificuldade financeira, não é condizente com a ordem jurídica brasileira entender que o poder sancionador da Administração em virtude de descumprimento contratual se dê de forma automática e vinculada, sob pena de piorar o contexto do fornecimento e prestação de serviços públicos, inviabilizando a atuação e até recuperação das empresas contratadas pela Administração Pública. É necessário permitir e incentivar o gestor a avaliar no caso concreto se a aplicação de sanção, na forma prevista na lei e no contrato, implicará em demasiado prejuízo ao interesse público, permitindo que este busque uma solução consensual com o contratado a fim de alcançar o objetivo final, qual seja, a prestação eficiente do serviço público.

César Augusto Guimarães Pereira[44] ressalta que a “matéria de licitações e contratos está em um ponto de tensão entre o interesse de reprimir condutas reprováveis e o de ampliar o universo de potenciais licitantes”.

Nos termos trazidos por Suhel Salém[45], em Portugal se problematizou a questão do poder sancionatório e a execução dos contratos administrativos, em vista da crise financeira vivenciada pelo país, conforme se observa:

Como não podia deixar de ser, também a contratação pública foi afetada pela crise62, a vários níveis. Relativamente aos contratos administrativos celebrados antes da crise, e cuja execução se manteve nos anos em que aquela se fez sentir, aqueles experimentaram mudanças drásticas, designadamente: a contração geral do mercado e da procura, dificuldades de obtenção de crédito, flutuações das taxas de juro dos empréstimos bancários, revisão ou supressão de linhas de financiamento, eliminação de programas públicos e de linhas de apoio, aumento da carga fiscal, aumentos dos custos de produção63. Naturalmente, todas estas circunstâncias afetam a saúde financeira do cocontratante, tendo implicações diretas na sua performance contratual. A problemática reside, sobretudo, em sede de execução contratual, especialmente no que toca aos contratos administrativos complexos que reclamam uma colaboração ativa e séria entre as partes, sob pena de o interesse público prosseguido pelo contrato sair gravemente ferido.

Nesta linha, é evidente que a debilidade financeira do cocontratante poderá ser manifestada, por exemplo, através de um incumprimento contratual. Porém, com vista a evitar o extremo, isto é, a extinção do vínculo contratual, é necessário pensar em medidas de colaboração ou assistência ao cocontratante, para que este continue – se possível e respeitando certos parâmetros –, a execução dos objetivos contratuais a que se propôs de início, medidas essas que devem sempre ser tomadas dentro do quadro normativo em vigor, naturalmente. Assim, neste quadro de aperto financeiro, os poderes de conformação contratual atribuídos ao contraente público deverão ser exercidos atendendo a estas circunstâncias. De facto, a atribuição destes poderes de conformação contratual ao contraente público (cf. artigo 302.º do CCP) constitui uma marca distintiva do regime substantivo dos contratos administrativos, que tutelam especialmente dois interesses: por um lado, o interesse de atualização do contrato às exigências de cada momento e, por outro lado, o interesse em assegurar o cumprimento do contrato64.

Em especial no que respeita ao poder sancionatório (cf. alínea d) do artigo 302.º do CCP), exige-se alguma contenção e prudência no seu exercício. Como atrás já foi dito, o objetivo da aplicação de uma sanção contratual é compelir o cocontratante ao cumprimento do contrato, e não acelerar o seu processo de degradação económica65, pelo que se impõe ao contraente público um dever de ponderação, na tomada de decisões atinentes à gestão do contrato, atenta a situação específica do contraente privado e de como esta poderá evoluir com a efetiva tomada dessa decisão de gestão.

 

Ressalta-se que o que se defende aqui não é o fim da possibilidade de aplicação de sanções pela Administração Pública e a impunidade das contratadas, mas sim maior racionalidade quando da utilização do poder sancionador, permitindo que o gestor tenha condições de avaliar e escolher se, no caso concreto, diante de um incumprimento contratual injustificado, será mais benéfico ao interesse público a aplicação direta de sanções ou a celebração de um termo de compromisso com o contratado que “suspenda” os efeitos da sanção, quando esta se apresentar como uma solução jurídica mais proporcional, equânime, eficiente e compatível com o interesse público.

 

5. Conclusão

 

A forma de condução dos contratos administrativos e a relação entre as partes precisa ser atualizada. A ideia de uma Administração Pública com caráter punitivo e sancionadora precisa ser substituída por uma atuação conciliadora. O modelo atual já se mostrou exaurido e problemático, em que a atuação pautada pela aplicação automática de sanções aos contratados na hipótese de descumprimento contratual não resolveu os problemas no fornecimento e prestação de serviços públicos.        

A análise efetuada nas seções anteriores demonstra que esse problema é objeto de debate também no direito alienígena, tendo especial relevância em cenários de crise econômica que repercutem na administração pública.

É de se constatar que, no direito brasileiro, a Lei federal n. 12.846, de 2013, que trouxe a figura do acordo de leniência, permitindo que este abranja as penalidades dos arts. 86 a 88 da Lei nº 8.666, de 1993; a Lei federal nº 13.655, de 2018, que permitiu que a autoridade poderá, para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situações contenciosas na aplicação do direito público, celebrar compromisso com os interessados; e a Lei federal n. 14.133, de 2021, que prevê parâmetros para a aplicação de sanções, reforçando a necessidade de se observar as peculiaridades do caso concreto, já representam um avanço sobre a utilização do poder sancionador da Administração Pública. Nesse contexto, é necessário permitir e incentivar o gestor a avaliar no caso concreto se a aplicação de sanção, na forma prevista na lei e no contrato, implicará em demasiado prejuízo ao interesse público, permitindo que este busque uma solução consensual com o contratado a fim de alcançar o objetivo final, qual seja, a prestação eficiente do serviço público.

O presente trabalho introduz uma discussão sobre o tema e apresenta uma comparação entre o Direito Brasileiro e o Direito Português. No entanto, é preciso que outros estudos sejam realizados, com maior grau de aprofundamento, para estabelecer parâmetros e apresentar proposições que tragam segurança jurídica ao gestor público para incentivar a celebração de compromissos, na esteira do que foi preconizado na LINDB.  

 

REFERÊNCIAS

 

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Sobre a autora
Danuza Aparecida de Paiva

Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental no Estado de Minas Gerais. Mestre em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas (10/2022). Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (12/2013) e em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro (07/2011).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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