A JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA COMO UMA DAS PORTAS NA RESOLUÇÃO DAS QUESTÕES LEVADAS AO JUDICIÁRIO BRASILEIRO

Exibindo página 1 de 2
19/12/2022 às 10:50
Leia nesta página:

Ingrid Paula Gonzaga e Castro[1]

RESUMO

O presente estudo tem por escopo a análise da jurisdição voluntária e dos impactos da mediação no ordenamento jurídico brasileiro, principalmente após o advento do Novo Código de Processo. A importância desta pesquisa manifesta-se pela necessidade do operador do Direito em desenvolver um olhar prospectivo do conflito, visto como vetor de transformação social, a partir do reestabelecimento do diálogo entre as partes envolvidas em uma dada controvérsia. Se de um lado, visualiza-se uma crise jurídica do Poder Judiciário, noutro viés, é mister tecer uma releitura do conceito de acesso à justiça, com a valorização dos meios consensuais de resolução de conflitos. Dessa feita, a regulamentação legal da temática abordada, impõe novos desafios que transpõem o conceito de lide jurídica, ao apontar caminhos para a superação da chamada lide sociológica. No intuito de se atingir os objetivos perquiridos, este estudo optou pelo método de pesquisa bibliográfico, à luz da opinião de vários doutrinadores sobre o assunto, bem como das diretrizes traçadas pela legislação pátria. Os resultados obtidos reportam à conclusão de que, não obstante ainda existam críticas e desconfianças por parte da comunidade jurídica, bem como dos cidadãos, diante do incentivo às soluções consensuais, é preciso uma nova mentalidade para o rompimento da enraizada cultura do litígio, tendo-se a letra da lei apenas como ponto de partida para a criação de mudanças.

Palavras-chave: Acesso à justiça. Cultura do litígio. Mediação. Conciliação.

ABSTRACT

This study aims to analyze the voluntary jurisdiction and the impacts of mediation on the Brazilian legal system, mainly after the advent of the New Process Code. The importance of this research is manifested by the need for the Law operator to develop a prospective view of the conflict, seen as a vector of social transformation, from the reestablishment of the dialogue between the parties involved in a given controversy. If, on the one hand, there is a legal crisis in the Judiciary, on the other hand, it is necessary to reinterpret the concept of access to justice, with the enhancement of consensual means of conflict resolution. This time, the legal regulation of the subject addressed, imposes new challenges that transpose the concept of legal action, pointing out ways to overcome the so-called sociological action. In order to achieve the objectives pursued, this study opted for the bibliographic research method, in the light of the opinion of several scholars on the subject, as well as the guidelines drawn up by the national legislation. The results obtained refer to the conclusion that, despite the criticism and mistrust on the part of the legal community, as well as citizens, despite the incentive to consensual solutions, a new mentality is needed to break the rooted culture of litigation, taking the letter of the law only as a starting point for creating changes.

Keywords: Access to justice. Litigation culture. Mediation. Conciliation.

INTRODUÇÃO

Os conflitos de interesses sempre estiveram presentes nas relações humanas, calcadas na busca incessante pela obtenção dos bens da vida pretendidos, sejam de cunho material ou imaterial.

Todavia, a visão institucionalizada do conflito perpassa por uma análise crítica e ao mesmo tempo redireciona os mecanismos para a obtenção do acesso à ordem jurídica justa.

Nesse passo, a visão do conflito construída sob a égide do Estado de Direito encampou as diretrizes da jurisdição clássica, sob a influência do seu maior expoente: o Poder Judiciário. À luz da inafastabilidade de jurisdição, a tutela jurisdicional tornou-se a panaceia da crise jurídica, contudo, tapou os olhos para a chamada crise sociológica.

Partindo desta reflexão, o tema em destaque é de grande relevância sob o ponto de vista prático, tendo em vista que a mudança de mentalidade sobre os conflitos de interesse e o seu alcance na esfera social, atingem diretamente a realidade jurídico-acadêmica, no sentido de se repensar o modelo de fazer justiça, a partir da consolidação dos métodos consensuais de resolução de conflitos.

Logo, compreender o uso dos mecanismos autocompositivos, requer uma análise jurídica que transcende o enquadramento destes institutos como meras vias alternativas de solução de controvérsias. Dessa feita, apoiando-se em tais diretrizes, o tema em estudo perfilha uma abordagem legal e doutrinária que desafia o leitor a reformular o verdadeiro conceito de acesso à justiça previsto no art. 5o, XXXV, da Constituição Federal Brasileira.

Neste sentido, o objetivo desta parte da pesquisa é demonstrar como as mudanças de perspectivas de um Estado liberal de caráter individualista, para um Estado Democrático de Direito, provocaram a reestruturação na prestação jurisdicional, levando-se em conta a garantia constitucional da inafastabilidade de jurisdição, a fim de compreender a utilização dos métodos consensuais de solução de conflitos, sob uma visão sociológica da lide.

Ao se fazer a opção de estudar a jurisdição voluntária, o que se busca expor são as manifestações dessa modelo de exercício de jurisdição na atuação do juiz, como maneira de alcançar o provimento buscado pelas partes. Como será destacado ao longo da pesquisa, a jurisdição voluntária sempre foi tema avesso a sistematizações.

Em razão de suas características híbridas, ora assemelhando-se ao exercício de função jurisdicional e, por vezes à atividade administrativa, os doutrinadores via de regra encontraram dificuldade em sistematizá-la e, notadamente, em situar, de forma exata, certos provimentos que ora se aproximavam do exercício de jurisdição contenciosa, ora do de jurisdição voluntária.

Para exemplificar tal dificuldade, insta destacar que conforme será estudado adiante, o processualista italiano Francesco Carnelutti (1951), após longo processo de transformação de seu pensamento, terminou por incluir, na jurisdição voluntária, um rol vastíssimo de procedimentos, alargando a noção dessa espécie de jurisdição como toda aquela tendente à prevenção de uma lide[2].

A fim de se atingir os objetivos perquiridos, o desenvolvimento do tema proposto será realizado com suporte no método bibliográfico, por meio do levantamento de dados e informações pertinentes à melhor compreensão do assunto em debate. Destarte, a pesquisa fará o uso de doutrinas de Direito Processual Civil e obras específicas sobre o tema, das quais, três se destacam, ante a profundidade das reflexões angariadas.

1 A REINTERPRETAÇÃO DA GARANTIA CONSTITUCIONAL DA INAFASTABILIDADE DE JURISDIÇÃO SOB A MUDANÇA DE PARADIGMAS DO ACESSO À JUSTIÇA

  • 1.1 A reconstrução do acesso à justiça a partir do redirecionamento da visão do conflito

Preambularmente, no direito europeu em matéria de direitos humanos, a noção de acesso à justiça encontra-se consagrada nos artigos 6.º e 13.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) e no artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE, que garante o direito a um processo equitativo e a um recurso efetivo, conforme interpretados pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) e pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), respetivamente.

Tais direitos encontram-se também previstos em instrumentos internacionais, tais como o artigo 2.º, n.º 3, e o artigo 14.º, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP) da Organização das Nações Unidas (ONU) e nos artigos 8.º e 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH) da Organização das Nações Unidas.

Os elementos centrais destes direitos incluem o acesso efetivo a um organismo de resolução de litígios, o direito a um processo equitativo e à resolução tempestiva de litígios, o direito a uma reparação adequada, bem como a aplicação geral dos princípios da eficiência e eficácia à oferta da justiça (AGÊNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA UNIÃO EUROPEIA, 2011, p.9).

Por conseguinte, os órgãos jurisdicionais nacionais são os principais garantes do direito da União, mas a fim de garantirem a sua aplicação coerente podem solicitar ao TJUE que se pronuncie sobre questões de interpretação através do processo prejudicial[3].

Isso cria um diálogo entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o TJUE. O TJUE é o guardião do ordenamento jurídico único da União, o que inclui obrigações inequívocas em matéria de direitos fundamentais (AGÊNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA UNIÃO EUROPEIA, 2016, p. 19).

Noutro vértice, no Brasil o acesso à justiça compõe o rol de direitos fundamentais dos cidadãos e está expresso no inciso LXXIV do art. 5º da Constituição de 1988 (BRASIL, 1988).

A análise fenomenológica da tão difundida cultura do litígio, desafia um olhar atento do intérprete da norma, no que tange às dimensões estruturantes de um ordenamento que passa por uma releitura, considerando-se os avanços do neoprocessualismo[4] e os princípios da celeridade e efetividade exarados na Carta Magna brasileira.

Logo, tem-se por certo que as diretrizes procedimentais da administração da justiça refletem uma crescente tendência de se observar o operador do direito como um pacificador mesmo em processos heterocompositivos (BRASIL, 2015, p. 37), uma vez que a composição dos conflitos exige a busca por mecanismos que permitam compreender o litígio para além de sua dimensão processual.

Na visão de Humberto Dalla Bernardina de Pinho, e Michele Pedrosa Paumgartten[5], a cobrança por uma postura estatal mais ativa, quanto à renovação da prestação da tutela jurisdicional, ganhou novos contornos durante o final do século XIX, tendo-se em vista o caráter social desenvolvido pelo Estado, em contraponto aos valores liberais e a própria visão dos conflitos de interesse consubstanciada nos séculos XVIII e XIX, cuja solução calcava-se unicamente na aplicação da literalidade da lei (PINHO; PAUMGARTTEN, 2016, p. 4-5).

Nina Beatriz Ranieri, ao descrever o papel do jurista no Estado liberal, aponta que a lei abstrata era o único parâmetro de solução dos conflitos submetidos ao poder normativo estatal, tendo em vista a obediência restrita à sua exegese e sistematização. Veja-se:

É evidente que nesse cenário, em razão dos pressupostos axiológicos do Estado de direito de tipo liberal, individualista, a lei não poderia ter por objeto senão o enquadramento da administração (princípio da legalidade da administração) e a delimitação da esfera de livre ação dos cidadãos, na qual somente ela poderia autorizar a intervenção (princípio da reserva legal). O jurista, portanto, deveria circunscrever-se à sua exegese e sistematização; e o juiz não poderia ir além do confronto dos fatos aos textos legais, sob pena de infringir o princípio da divisão dos poderes (RANIERI, 2001, p. 144) (grifou-se).

Notoriamente, o próprio conceito de acesso à justiça restava limitado ao direito de ação ou mesmo ao direito invocado pelo autor, guarnecido por uma feição privatista, o que, de antemão, apontava para uma postura passiva do Estado, diante do caráter multifacetado dos conflitos sociais.

Ademais, senão outra é a crítica aventada por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, ao tratarem do acesso formal ao Judiciário num contexto liberal, como sinônimo de igualdade formal, desprovida de efetividade de justiça, o que se infere do seguinte fragmento:

Nos Estados liberais burgueses dos séculos dezoito e dezenove, os procedimentos adotados para solução dos litígios civis refletiam a filosofia essencialmente individualista dos direitos, então vigorante. Direito ao acesso à proteção judicial significava essencialmente o direito formal do indivíduo agravado propor ou contestar uma ação. A teoria era a de que, embora o acesso à justiça pudesse ser um direito natural, os direitos naturais não necessitavam de uma ação do Estado para sua proteção. Esses direitos eram considerados anteriores ao Estado; sua preservação exigia apenas que o Estado não permitisse que eles fossem infringidos por outros. O Estado, portanto, permanecia passivo, com relação a problemas tais como a aptidão de uma pessoa para reconhecer seus direitos e defende-los adequadamente, na prática.

Afastar a pobreza no sentido legal a incapacidade que muitas pessoas têm de utilizar a justiça e as instituições não era preocupação do Estado. A justiça, como outros bens; no sistema do laissez faire só podia ser obtida por aqueles que pudessem arcar com os seus custos aqueles que não pudessem fazê-lo eram condenados por sua sorte o acesso formal, mas não efetivo de justiça, correspondia à igualdade, apenas formal, não material (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 4) (grifou-se)

De outro lado, sabe-se que a visão processualista redefinida a partir de 1988, com o advento da Constituição Democrática, visa a satisfação do direito material, sobretudo, sob a ótica da valorização dos direitos fundamentais.

Neste ínterim, conforme observa Daniel Amorim Assumpção Neves, percebe-se uma clarividente superação do positivismo acrítico e da supremacia da lei, que traduziam o modelo clássico de jurisdição (NEVES, 2016, p. 2).

Destarte, com a influência dos valores advindos do constitucionalismo contemporâneo, a nova carga valorativa ou axiológica do processo, revestida das diretrizes normativas da Constituição Federal, passou a encampar a efetividade processual, na medida em que o processo deixou de ser apenas um instrumento de cunho técnico ou formal para alavancar a eficácia da prestação jurisdicional.

Acerca do tema, a professora Ada Pellegrini Grinover assim pondera:

O processualista moderno sabe que, pelo aspecto técnico-dogmático, a sua ciência já atingiu níveis muito expressivos de desenvolvimento, mas o sistema continua falho na sua missão de produzir justiça entre os membros da sociedade. É preciso agora deslocar o ponto-de-vista e passar a ver o processo a partir de um ângulo externo, isto é, examiná-lo nos seus resultados práticos. Como tem sido dito, já não basta encarar o sistema do ponto-de-vista dos produtores do serviço processual (juízes, advogados, promotores de justiça): é preciso levar em conta o modo como os seus resultados chegam aos consumidores desse serviço, ou seja, à população destinatária (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2004, p. 45) (grifou-se).

Comumente, o acesso ao Judiciário tem se tornado a válvula de escape de um modelo normativo que visa atribuir à inafastabilidade de jurisdição, estampada no art. 5º, inciso XXXV, da Lei Maior Brasileira[6], uma capacidade de reação aos conflitos sociais, contudo, tão somente sob o ponto de vista da crise jurídica, representada pelas agruras de um processo.

Esta é a realidade do sistema jurídico brasileiro. O direito à tutela jurisdicional, sob o crivo da segurança jurídica, esboça o cenário de um ordenamento que prima pela solução dos conflitos de direito, mas que não se aprofunda, eficazmente, nos reais interesses envolvidos nas demandas que assolam corriqueiramente os Tribunais pátrios.

Se por um lado, visualiza-se um sistema jurídico que prioriza garantias constitucionais, com destaque para o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, a motivação das decisões, a imparcialidade do julgador e a duração razoável dos processos, noutro viés, a solução de controvérsias sob a ótica processual, encontra óbices nos limites impostos pela consolidação da própria lide formal.

Outrossim, a solução adjudicada das controvérsias como resposta do Estado ao cidadão que exerce o seu direito de ação, visa tão somente à satisfação do pedido e da causa de pedir exarados na petição inicial, sem, contudo, identificar as verdadeiras causas do conflito que, se mal dirimido, será no futuro submetido novamente ao espeque do Judiciário.

No âmbito processual civil, a temática do acesso à justiça foi tratada com bastante destaque pelo italiano Mauro Cappelletti. Na obra Mediação nos Conflitos Civis, elaborada por Fernanda Tartuce, a autora aponta o notável trabalho do referido jurista que, juntamente com Bryant Garth, desenvolveu o Projeto Florença[7], na década de 1970, visando a identificação dos obstáculos que caracterizam a ineficiência da Justiça.

Acerca do tema, assim pondera Fernanda Tartuce:

O notável estudo de Mauro Cappelletti e Bryant Garth, desenvolvido principalmente no Projeto Florença, propiciou tanto um diagnóstico do panorama existente sobre o acesso à justiça como as possibilidades de superação dos obstáculos observados por meio das denominadas ondas renovatórias de universalização do acesso à justiça (TARTUCE, 2015, p. 78).

Denota-se que o referido Projeto propiciou dentre as linhas de pesquisa voltadas para a superação dos entraves quanto ao acesso à justiça, a adoção de movimentos tradicionalmente conhecidos como as ondas renovatórias de universalização do acesso à justiça.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Apenas abrindo um parêntese, dada a importância do tema em destaque, frise-se que a terceira onda renovatória, na qual se identifica a criação dos meios alternativos de resolução de controvérsias, encontra-se inserida no objeto do estudo em comento, principalmente considerando os aspectos positivos das soluções consensuais de conflitos.

Contudo, fato é que se identifica um Estado de Direito que jurisdiciona quase todos os aspectos da vida social, como bem leciona Antoine Garapon, na obra O juiz e a democracia. O guardião de promessas, traduzida por Maria Luíza de Carvalho:

A justiça se coloca de maneira mais cotidiana como instância moral à revelia, e o direito como a última moral comum. A longa história da justiça é aquela de sua interferência nas relações cada vez mais íntimas, das quais quase nenhuma foge à sua jurisdição, como nas relações familiares, amorosas, políticas, comerciais, médico-paciente. Não se trata tanto de controlá-las socialmente o que seria francamente impossível ao juiz -, mas de moralizá-las, ditando a norma. O direito é a última moral num mundo desprovido de preceitos elementares (GARAPON, 2001, p. 183).

1.2 ESCOPO SOCIAL DO PROCESSO CIVIL

Tecidas estas considerações, verifica-se que, na verdade, o que se persegue é a verdadeira a pacificação social. Esse é o objetivo social principal do processo (DINAMARCO, 2005, p. 196).

Tem-se que a constante insatisfação do jurisdicionado não deve se protrair no tempo sem uma efetiva solução, pois isso geraria incerteza e caos social. Deve o Estado colocar fim aos conflitos, com a atuação do processo, emitindo comando final, a sentença, que decidirá quem tem naquela contenda.

Importante frisar que, além do procedimento, também é essencial para a pacificação social que as partes não se sintam injustiçadas[8]. Cabe ao magistrado analisar e julgar as comoverias colocadas para a sua apreciação, sempre com base naqueles fins buscados pelo Estado Social, em vista do bem comum. Ademais, mister que se utilize a técnica processual mais adequada para garantir o cumprimento das decisões judiciais.

A função social do processo civil identifica-o com a característica que ora se pretende acentuar, a saber, a busca do interesse público.

Em coletânea específica sobre o assunto, coordenada por Carlos Alberto de Salles, ele ressalta que o público, nessa concepção, é definido não em contraposição ao privado, mas ao individual, indicando aqueles interesses pertencentes à generalidade das pessoas. (SALLES, 2003. p. 40).

Deve-se fazer menção, desta feita, à função educadora do processo, nos termos supracitados. A propagação da ideia de que os conflitos devem ser resolvidos pela via legítima e a facilitação do acesso à justiça com a eliminação dos chamados óbices ilegítimos[9], de caráter jurídico e cultural trazem a noção da existência de direitos e obrigações de cada cidadão.

Quanto mais acessível a justiça parecer aos cidadãos lembrando-se, sempre, que, para acesso à justiça, pressupõe-se a igualdade de chances aos litigantes e a facilitação dessa abertura , maior será a sua legitimidade.

A linguagem simples dos operadores do direito, a veiculação de notícias pela imprensa, o contato com pessoas que já consumiram os serviços jurisdicionais, tudo contribuirá para que a população mude a ideia que não rara as vezes se apresenta na sociedade de que o Judiciário seria um Poder ineficiente, moroso e com altos custos. Uma vez educado, pelo contínuo exercício dos próprios direitos, o povo saberá cobrá-los e respeitar os de seus concidadãos.

Como bem ressaltado por Kazuo Watanabe:

A par das vantagens mais evidentes, que são a maior celeridade e maior aderência da justiça à realidade social, a participação da comunidade traz, ainda, o benefício da maior credibilidade da Justiça e principalmente o do sentido pedagógico da administração da justiça, propiciando o espírito de colaboração. Os que têm a oportunidade de participar conhecerão melhor a justiça e cuidarão de divulgá-la ao seguimento social a que pertencem. Demais disso, a organização de uma justiça com essas características, organizada para pessoas mais humildes, tem a virtude de gerar, pela própria peculiaridade do serviço que presta e pela exigência das pessoas que a procuram, ordinariamente pouco instruídas, umserviço paralelo, que é o de informação e orientação. (WATANABE, In: DINAMARCO;GRINOVER; WATANABE, 1988, p. 133).

Destarte, se reconhecer legitimidade à solução judicial dos conflitos, percebendo sua efetividade e facilidade de acesso, dará grande passo para exercer mais esse importante instrumento de participação social.

Não se trata, aqui, da defesa de que o juiz deixe para segundo plano o seu poder de julgar, mas sim que o julgador incentive as partes a chegarem, por si só, na resolução de suas questões, conduta esta que estimula o empoderamento dos envolvidos e os torna mais propensos a resolverem sozinhos futuros conflitos que eventualmente possam surgir.

2 JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA

José Frederico Marques conceitua jurisdição voluntária da seguinte forma: é atividade resultante de negócio jurídico que se exige um ato do Estado, para que o negócio se realize ou complete (MARQUES, 2000, p. 61.)

Ernani Fidélis (SANTOS, 2003, p. 369.) entende que na jurisdição voluntária, o juiz não aje para solucionar o conflito, tampouco para efetivar direito, nem para acautelar outro processo. Ele apenas integra-se ao negócio jurídico ou ao ato de interesse dos particulares, para verificação de sua conveniência ou de sua validade formal, quando devidamente exigida sua participação. No caso, não ocorre litígio nem execução, consequentemente, não pode haver processo no sentido jurídico, ocorrendo assim, simples procedimento que permite ao magistrado, na sua função integrativo-administrativa, avaliar a conveniência do ato, ou sua validade formal.

Desses dois conceitos podemos verificar que na jurisdição voluntária não há lide, mas somente administração pública de interesses privados. Trata-se de uma das funções do Estado, destinada ao Judiciário, em razão da imparcialidade, responsabilidade e independência dos magistrados perante a sociedade, buscando evitar litígios futuros, ou irregularidades e defeitos na formação do ato ou negócio jurídico.

Assim, pode-se conceituar jurisdição voluntária como atividade do Judiciário que visa tutelar os interesses privados por meio de um procedimento da qual a sentença não cabe ação rescisória, pois não faz coisa julgada material[10], não apresentando lide, nem polarização na relação jurídica existente.

Sabe-se que o conceito da jurisdição voluntária está longe de ser algo pacificado na doutrina, existindo correntes que procuram explicar sua natureza sobre três atividades: a administrativa, a jurisdicional e a autônoma.

E é sobre isso que o presente estudo se destinará doravante.

2.1 Breve estudo sobre a natureza jurídica da jurisdição voluntária

A polêmica acerca da presente temática centra-se sobre o exame da natureza jurídica da jurisdição voluntária e sua adequação à jurisdição. As análises doutrinarias sobre o assunto perduram décadas, sendo, ainda hoje, a principal fonte de consulta a respeito do tema.

Tal divergência inclusive vai além das fronteira brasileiras, estando presente também no âmbito europeu:

Ciertamente, constituye un tema polémico en la actual doctrina europea, ladeterminación de cuál sea el concepto, la naturaleza jurídica, la función, y el con-tenido de la denominada jurisdicción voluntaria. En relación con la misma se hanmantenido las más diversas posiciones, y ha sido analizada desde los más contra-puestos puntos de vista, sin que se haya llegado a una orientación mayoritaria entrelos estudiosos, lo que ha hecho afirmar algún autor que «la jurisdicción voluntariaes un tema por todos repudiado y sin sede científica propia». Desde posiciones opuestas, se ha considerado a la jurisdicción voluntaria comouna actividad jurisdiccional y se ha sostenido su naturaleza administrativa (FERNANDEZ DE BUJÁN, 2001 p. 91).

A palavra voluntária pode levar as pessoas a crerem que o instituto não se liga ao exercício da jurisdição que não é voluntário , mas às partes que, de comum acordo, dirigem-se espontaneamente ao Estado-juiz, na busca de um resultado ao qual aderem de antemão. A voluntariedade, ou espontaneidade, respeita aos agentes, não ao julgador[11].

No sentido oposto da jurisdição voluntária está a contenciosa, sendo que a primeira se dá inter volentes ou seja, entre pessoas que voluntariamente reclamam a participação do magistrado , ao passo que a última ocorre inter nolentes, ou inter contendentes entre pessoas que litigam, quando a participação do magistrado, para resolução da controvérsia, é impositiva.

Das lições de Antonio Fernandez de Bujan (1986, p. 23) extrai-se que:

el vocablo voluntaria no alude en el caso presente a que el magistrado, por propia voluntad, pueda conceder o negar su participación, porque esta constituye, en los casos en que está prevista, un deber, un officium, sino que apunta a que la participación del magistrado se ejerce inter volentes, es decir, entre personas que espontáneamente, voluntariamente, reclaman o solicitan su intervención, y que están de acuerdo de antemano sobre el resultado de la misma, con la particularidad de que tal acuerdo debe persistir hasta el momento de la resolución del magistrado y en caso contrario, cabría la via de la jurisdicción contenciosa -, sin que del mismo se derive un perjuicio para los derechos de terceras personas.

Noutro giro, não obstante as diferenças práticas entre as duas espécies de jurisdição tenham se alargado apenas ao longo do tempo, já no direito romano clássico algumas características próprias podem ser notadas, principalmente no que concerne às formalidades.

2.1.1 Jurisdição voluntária no direito romano

Sobre as mencionadas formalidades como ponto de divergência da jurisdição voluntária e contenciosa, Bujan (ob. cit., p. 29/36) aponta, dentre as de mais destaque, diferenças relativas à titularidade do exercício de cada espécie de jurisdição; às regras referentes ao lugar e ao tempo desse exercício; à competência territorial dos magistrados que as exerciam.

Ainda defende o autor que enquanto a jurisdição contenciosa se desenrola, em regra, conforme o procedimento formular, os atos de jurisdição voluntária permaneceram seguindo o sistema das ações da lei, fazendo com que sua aplicação se protraia no tempo (ob. cit. p. 36).

Na doutrina de Frederico Marques destaca-se que os romanos já conheciam a tutela administrativa de direitos privados e que o magistrado, em colaboração com as partes, constituía novas relações jurídicas

através de conhecidos institutos, como a in iure cessio, a adoptio, a emancipatio e a manumissio. E, como não se tratava de procedimento litigioso, puderam permanecer em vigor, para tais casos, as antigas formas orais de legis actiones, ainda depois de se terem tornado inúteis, no processo contencioso das fórmulas escritas, tanto que alguns autores acham que a expressão legis actios pode ser aplicada com o significado de jurisdição voluntária. (ob. cit., p. 149).

Chiovenda (1998, p. 23.) destaca que se qualificou

com o nome romano iurisdictio voluntaria, na doutrina e na prática do processo italiano medieval, aquele complexo de atos que os órgãos judiciais realizavam em face de um único interessado, ou sob acordo de vários interessados, in volentes; e o nome passou a designar também aqueles dentre tais atos que vieram, com o tempo, a transferir-se da competência dos juízes ordinários para a dos notários

Na primeira metade do século passado, a doutrina italiana debruçou-se sobre o tema, formando-se, em resumo, as duas escolas a serem estudadas a seguir.

2.1.2 Escola administrativista

Sem delongas, segundo entendimento doutrinário que entende que a jurisdição voluntária tem natureza administrativa, não há litígio, não existe processo, não há partes, havendo somente uma medida judicial de caráter administrativo entre interessados, inter volentes.

Assim, a jurisdição graciosa não tem, na ótica da doutrina tradicional, e cuja orientação vem refletida nos artigos do Código de Processo Civil que dela cuidam, característica jurisdicional, recebendo tal nomenclatura apenas em razão da inexistência de outra mais adequada.

Nesse sentido, traço característico da essência da jurisdição, para Chiovenda (ob. cit., p. 23.), é seu caráter substitutivo. Cuida-se de uma atividade de substituição, a substituição de uma atividade pública a uma atividade privada.

Segundo ele:

opera-se essa substituição por dois modos correspondentes aos dois estágios do processo, cognição e execução. a) Na cognição, a jurisdição consiste na substituição definitiva e obrigatória da atividade intelectiva do juiz à atividade intelectiva, não só das partes, mas de todos os cidadãos, no afirmar existente ou não existente uma vontade concreta da lei concernente às partes. Pelos lábios do juiz a vontade concreta da lei se afirma tal e se atua como se isso acontecesse por força sua própria, automaticamente...b) E quanto à atuação definitiva da vontade verificada, se se trata de uma vontade só exequível pelos órgãos públicos, tal execução em si não é jurisdição; assim, não é jurisdição a execução da sentença penal. Quando, porém, se trata de uma vontade de lei exequível pela parte em causa, a jurisdição consiste na substituição, pela atividade material dos órgãos do Estado, da atividade devida, seja que a atividade pública tenha por fim constranger o obrigado a agir, seja que vise ao resultado da atividade. Em qualquer caso, portanto, é uma atividade pública exercida em lugar de outrem (não, entendamos, em representação de outros).

Ainda na visão do referido doutrinador (ob. cit., p. 24.), a jurisdição voluntária não representaria verdadeira jurisdição, mas

() uma forma especial de atividade do Estado, exercitada em parte pelos órgãos judiciários, em parte pelos administrativos, e pertence à função administrativa, embora distinta da massa dos atos administrativos, por certos caracteres particulares.

No que toca às diferenças apontadas em relação à jurisdição contenciosa, acentua-se, para o ele, a inexistência de coisa julgada, mesmo que, também em relação à sentença transitada em julgado, possa haver mudanças, ditadas pela própria alteração das circunstâncias.

Desta feita, na jurisdição contenciosa haverá sempre duas partes, ainda que o contraditório, eventualmente, não se verifique. Noutro giro, na jurisdição voluntária notam-se dois ou mais requerentes ou interessados, não partes.

Chiovenda agrupa os atos mais importantes da jurisdição voluntária em diversas categorias: intervenção do Estado na formação de sujeitos jurídicos; na integração da capacidade jurídica; na formação do estado das pessoas; participação no comércio jurídico; e a conciliação (ob. cit., p. 28/33.).

Por derradeiro, a dificuldade de definição dos provimentos de jurisdição voluntária decorre, na verdade, do grande campo em que eles se espraiam, daí sua classificação tornar-se muito difícil. Não obstante, possuem natureza materialmente administrativa, embora emanados de órgãos investidos de poder jurisdicional, o que lhes confere natureza formalmente mas apenas formalmente - jurisdicional[12].

2.1.2 Escola jurisdicionalista

Em síntese, a linha doutrinária que entende que a jurisdição voluntária tem natureza jurisdicional, justifica-se ao argumento de que toda atividade jurisdicional é precedida da iniciativa de uma das partes interessadas, e é feita por meio do ajuizamento de uma ação. Assim, existindo ação, existirá, via de consequência, processo e jurisdição.

Inicialmente, pode diferenciar a influência que teve Chiovenda nos autores que entendiam como presente a natureza administrativa no exercício da jurisdição voluntária e aquela que teve Carnelutti sobre os que enxergaram a sua natureza jurisdicional.

Destaque-se, todavia, que a obra de Carnelutti sofreu mudanças ao longo do empo, vindo a chegar, ao final, na definição de affare e na caracterização da jurisdição voluntária como função jurisdicional preventiva das lides.

Foi na quarta edição das Istituzioni, todavia, que o autor amadureceu o seu conceito próprio sobre a jurisdição voluntária e destacou o que lhe foi relevante o seu pressuposto e a sua função (CARNELUTTI, 1951, p. 132/133).

Asseverou que a atividade do juiz pode se dar para finalidade diferente da composição da lide. Pode se dar também para prevenir o surgimento de um litígio.

Segundo o autor, desta feita, a prevenção da lide é o fim específico do processo voluntário, que está para o contencioso assim como a higiene está para a cura da doença.

Tal prevenção, segundo as lições Carnelutti, é alcançada regulando-se com justiça e determinando-se com certeza as relações jurídicas nos casos em que o perigo da injustiça ou da incerteza é mais grave (ob. cit., p. 19.).

O juiz, em colaboração com as partes, intervém, no âmbito da jurisdição voluntária, a fim de constituir um efeito jurídico que não se daria sem a sua participação. Previne, dessa maneira, a ocorrência de lide futura. Atua, nas palavras do autor, como meio de higiene social, dado que a prevenção da lide contribuirá para a pacificação social. A lide na verdade, a possibilidade de sua ocorrência será cortada na raiz. Pressuposto da jurisdição voluntária é o affare, qualificado como interesse ou grupo de interesses, a respeito do qual se coloca, no conflito com um ou mais interesses de terceiros, a exigência do cumprimento de um ato para a sua tutela segundo o direito. O sujeito do affare é o sujeito do interesse, a cuja tutela ele se refere; o elemento material do affare é um interesse, ao passo que seu objeto é um bem ou seja, qualquer ente que possa ser objeto de relação jurídica. Já a causa do affare é o interesse ou grupo de interesses que, mediante o ato a ser cumprido, virá a ser tutelado (OLIVEIRA, 2011, p. 28).

Um exemplo trazido pelo doutrinador é o processo de estado[13]. As relações de estado, tal como o casamento, geram não somente entre dois sujeitos, mas também um composto de relações com terceiros, que são afetados quer pela sua formação, seja pelo seu encerramento.

Por essa razão, imperiosa a intervenção estatal em ambos os momentos. No caso específico do matrimônio, seja por conta da separação, seja em razão de um pedido de anulação, o processo servirá não somente para compor a lide entre marido e esposa, mas para prevenir eventuais demandas que daí possam se formar em relação a terceiros (para administrar o affare relativo ao status).

Desta feita, nesses casos, a lide será apenas um dos componentes. E nos casos de separação consensual, sequer haverá lide, sendo o processo absolutamente dotado de caráter voluntário (OLIVEIRA, ob. cit., p. 28).

Tecidas tais considerações, no presente estudo opta-se pela corrente jurisdicionalista, justificando tal essa opção à luz da teoria geral do processo civil e da instrumentalidade que o ilumina.

Não se verifica da análise dos institutos de teoria geral, salvo melhor juízo, justificativa plausível para afastar a jurisdição voluntária do gênero jurisdição, seja localizando-a no campo da administração, seja como um gênero à parte.

Isso porque as tradicionais distinções entre os conceitos de litigante e interessados, processo e procedimento, coisa julgada, assim como a existência de lide, elementos esses que serviriam para diferenciar a jurisdição contenciosa e a jurisdição voluntária não são, em tempos atuais, de intensidade tal que a última se desloque do campo jurisdicional.

Ademais, importante se atendar não apenas para o objetivo jurídico da jurisdição, mas também para seus escopos social e político, razão pela qual o exame tornará ainda mais nítida a unidade da jurisdição, embora dividida em duas espécies.

2.2 ABRANGÊNCIA DA JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA DO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO

Em relação ao campo de abrangência da jurisdição voluntária busca-se neste tópico, de forma sucinta, dizer que ela se fixa nos limites do Código de Processo Civil, a partir do artigo 719 e no Código Civil Brasileiro, com as seguintes matérias relativas ao nascituro; testamentos; herança jacente; descoberta; poder familiar; busca e apreensão de incapaz; guarda, tutela e adoção; curatela; ausência; alienação, arrendamento e oneração de imóveis de incapazes; emancipação; casamento de menores; fundações; casamento em geral; alienação de imóveis de casados; extinção de usufruto e de fideicomisso, separação e divórcio consensuais; separação de corpos; alienação de quinhão em coisa comum; especialização de hipoteca legal (DIAS, 2010, página única).

Insta destacar, por exemplo, que há certos casos em que a jurisdição voluntária se destina a tutelar pessoas incertas, englobando-se os nascituro, testamentos de um modo geral, herança jacente e coisas vagas, em que não há lide.

Em casos outros a jurisdição voluntária se encarregará de tutelar os incapazes, abarcando o poder familiar, a busca e apreensão de incapaz, família substituta, curatela, ausência, alienação de imóveis de incapazes, emancipação e casamento de menores, em que não se visa à tutela de direito subjetivo e em que, de regra, tampouco nos deparamos com lide.

Além disso,

(...) numa terceira categoria compreenderá os casos em que a jurisdição voluntária se apresenta como participação do juiz em atos privados que constituem exercício de faculdades jurídicas ou manifestações da capacidade de agir, bem como a atividade judicial dirigida à documentação ou publicidade de fatos jurídicos. Enquadrando- se, aí, os casos dos registros públicos, das fundações, do casamento, da alienação de imóveis do cônjuge, da extinção do usufruto, dos protestos, da separação e divórcio consensuais, da alienação de quinhão em coisa comum e da especialização de hipoteca legal, em que falta o elemento lide . A separação de corpos, conforme a concepção que dela se tenha, entra nessa categoria, por ausência de direito subjetivo, podendo ou não haver lide (DIAS, 2010, página única).

Uma quarta categoria compreenderá os casos em que a jurisdição se volta à tutela da prova de fatos jurídicos, abarcando a produção antecipada de provas, quando preparatória de processo de jurisdição voluntária, e a exibição de documento para apropriação de dados, esta por inexistência de direito subjetivo à exibição.

Por derradeiro, insta destacar que ao submeterem uma situação processualmente classificada como de jurisdição voluntária, os interessados manifestam a sua confiança na lei, mas também confiam no julgador, quanto ao conteúdo da decisão, que se espera ser justa, além de dotada de eficácia e de exequibilidade.

Todavia, isso não significa que, na jurisdição voluntária, se negue totalmente a juricidade da decisão já que a prevalência da equidade sobre a legalidade estreita, nas providências que o tribunal tome, não vai obviamente ao ponto de se permitir a postergação de normas imperativas aplicáveis à situação (VARELA; BEZERRA; NORA, 1985, p.131).

É bom frisar também que o julgador pode adotar uma solução mais conveniente e oportuna nas providências a tomar na jurisdição voluntária, o que é usualmente qualificado pela doutrina como configurando uma situação de prevalência da equidade sobre a legalidade estrita[14].

3 JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA E FORMAS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS: O sistema multiportas de resolução de conflitos

O incentivo à utilização dos meios alternativos de solução de conflitos, com destaque para a conciliação e a mediação, ganhou maior visibilidade no ordenamento nacional, principalmente após o advento do Código de Processo Civil brasileiro de 2015.

Todavia, embora sejam técnicas autocompositivas relativamente recentes no sistema jurídico brasileiro, é possível identificar as raízes da mediação em várias civilizações distintas, desde os tempos mais remotos.

Consoante os ensinos de Fernanda Tartuce, há centenas de anos a mediação era usada na China e no Japão como forma primária de resolução de conflitos; por ser considerada a primeira escolha [...]. a abordagem ganha-perde não era aceitável (TARTUCE, 2015, p. 180).

De outro lado, os mecanismos consensuais, centrados no diálogo e na participação das partes envolvidas no litígio, apresentaram novos contornos a partir da difusão do chamado Fórum de Múltiplas Portas (Multidoor Courthouse System), uma política pública de solução de conflitos oriunda da experiência das Cortes de justiça norte-americanas, desde o final da década de 1970.

Nesse contexto, ganharam destaque os estudos do professor americano Frank Sender, da Universidade de Harvard, conhecido pelo importante discurso Variedades de Processos de Resolução de Disputas[15] proferido na Conferência Roscoe Pound, o que mais tarde influenciaria as bases para o desenvolvimento de um programa de mediação e conciliação de conflitos, no Brasil, através do Conselho Nacional de Justiça, por meio da Resolução nº 125/2010.

Ao expor sobre o tema, Fernanda Tartuce assim explana:

A institucionalização mais intensa de tais instrumentos nos tempos recentes iniciou-se no sistema americano no fim da década de 1970. Em 1976, foi realizada nos Estados Unidos a Conferência Pound, encontro de teóricos e profissionais do direito para discutir a insatisfação com o sistema tradicional de distribuição estatal de justiça. Nessa oportunidade, o professor Frank Sander propugnou que as cortes americanas tivessem várias portas, algumas conduzindo ao processo e outras, a vias alternativas[16] (TARTUCE, 2015, p. 146) (grifou-se).

Na mesma linha, Valéria Feriolo Lagastra Luchiari (2011, p. 308-309) preleciona:

O Fórum de Múltiplas Portas ou Tribunal Multiportas constitui uma forma de organização judiciária na qual o Poder Judiciário funciona como um centro de resolução de disputas, com vários e diversos procedimentos, cada qual com suas vantagens e desvantagens, que devem ser levadas em consideração, no momento da escolha, em função das características específicas de cada conflito e das pessoas nele envolvidas. Em outras palavras, o sistema de uma única porta, que é a do processo judicial, é substituído por um sistema composto de vários tipos de procedimento, que integram um centro de resolução de disputas, organizado pelo Estado, comporto de pessoas treinadas para receber as partes e direcioná-las ao procedimento mais adequado para o seu tipo de conflito. Nesse sentido, considerando que a orientação ao público é feita por um funcionário do Judiciário, ao magistrado cabe, além da função jurisdicional, que lhe é inerente, a fiscalização e o acompanhamento desse trabalho (função gerencial), a fim de assegurar a efetiva realização dos escopos do ordenamento jurídico e a correta atuação dos terceiros facilitadores, com a observância dos princípios constitucionais (LUCHIARI, 2011, p. 308-309) (grifou-se).

O referido sistema multiportas consiste na utilização de mecanismos adequados e propícios às peculiaridades dos conflitos debatidos, ao propor soluções plausíveis de acordo com o caso concreto, por meio de um olhar sistematizado do conflito, considerando-se um perfil societário pluralista e democrático.

Noutros termos, a busca pela pacificação social exige uma visão multidisciplinar que ultrapassa os limites da atuação jurisdicional, como bem expressa Fernanda Trentin e Giordani Alexandre Colvara Pereira (2017, página única) em artigo intitulado Desafios para implantação do fórum múltiplas portas no Brasil:

Segundo Ivan Machado Barbosa, membro do grupo de pesquisa e trabalho em arbitragem, mediação e negociação da Faculdade de Direito da UNB, o Fórum Multiportas tem como grande princípio a adaptabilidade, de forma que o procedimento seja realizado de acordo com a causa, partindo da ideia de que cada método resolutivo, mesmo o tradicional, possui vantagens e desvantagens, e que deve ser aproveitado o melhor do melhor, otimizando as características de todos os métodos de resolução de disputas. (grifou-se)

Embora a experiência norte-americana não seja a mesma experimentada no ordenamento brasileiro, suas influências não deixaram de ser observadas, ganhando maior enfoque, principalmente, a partir da terceira onda renovatória de acesso à justiça, encampada por Mauro Cappelletti, consoante já mencionado no tópico anterior.

O referido movimento ganhou notório respaldo no cenário jurídico, pela facilitação do acesso à justiça das classes menos favorecidas, com destaque para a criação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, regidos pela Lei nº 9.099/95.

Salienta-se que o próprio procedimento simplificado, com a predominância dos princípios da informalidade, oralidade, celeridade e economia processual, característicos dos Juizados, inseriu um ambiente propício para a autocomposição das partes litigantes.

Ou seja, o estímulo à adoção de formas consensuais de resolução de conflitos não visa a deslegitimar o Judiciário como órgão competente para o exercício da função jurisdicional que lhe é cabível, nem mesmo desqualificar o seu papel na composição dos conflitos.

De acordo com a visão do processualista Cassio Scarpinella Bueno, em referência às ondas renovatórias propostas por Mauro Cappelletti, a ideia de acesso à justiça, deve ser interligada com as reais necessidades da sociedade. Veja-se

(...) não sucedem, diferentemente do que se dá com as ondas do mar, umas às outras. Elas não vão sozinhas ter com a areia da praia e de lá desaparecer. Elas convivem umas com as outras, relacionam-se umas com as outras, dependem umas das outras, avançam e se desenvolvem sempre juntas em direção a uma praia. Elas coexistem e interagem. E não há nada de errado, partindo do raciocínio do saudoso processualista, em que novas ondas de acesso à justiça possam ser identificadas e sistematizadas para melhor atender a novas necessidades da sociedade (BUENO, 2006, p. 448).

É bom ressaltar que

(...) todos os litígios são susceptíveis de resolução por via de mediação, independentemente da natureza das situações jurídicas em causa, uma vez que o resultado deste processo pode não corresponder ao ponto de partida, encontrando-se uma solução adequada aos interesses e não às posições das partes (CARVALHO, 2011, 290).

Os métodos alternativos de solução de controvérsias, mais do que desafogar a máquina judiciária da enxurrada de processos que a sobrecarrega diariamente, têm por condão auxiliar o Estado a desestimular a jurisdicionalização exacerbada de conflitos de somenos, cujas soluções, muitas vezes, dependem unicamente da iniciativa das partes.

3.1 Breves considerações acerca do instituto da mediação no contexto jurídico luso-brasileiro

Neste derradeiro tópico propõe-se analisar, de forma sintética e não exauriente, o instituto da mediação nos sistemas jurídicos de Portugal, bem como no do Brasil.

Inicialmente, A União Europeia promove ativamente os modos de resolução alternativa de litígios (RAL), nomeadamente a mediação. A Diretiva é aplicável em todos os países da UE e abrange a matéria civil e comercial, conforme se infere do próprio site do Portal Europeu da Justiça. Convém destacar que um grupo de partes interessadas elaborou, com a ajuda da Comissão Europeia, um Código Deontológico Europeu Dos Mediadores, que estabelece uma série de princípios a que os mediadores podem decidir aderir voluntariamente. (UNIÃO EUROPÉIA, 2020).

Pois bem. Na Lei portuguesa nº 29/2013[17], de 19 de abril, artigo 2.º, temos as seguintes definições:

Para efeitos do disposto na presente lei, entende-se por: a) Mediação a forma de resolução alternativa de litígios, realizada por entidades públicas ou privadas, através da qual duas ou mais partes em litígio procuram voluntariamente alcançar um acordo com assistência de um mediador de conflitos; b) Mediador de conflitos um terceiro, imparcial e independente, desprovido de poderes de imposição aos mediados, que os auxilia na tentativa de construção de um acordo final sobre o objeto do litígio (PORTUGAL, 2013).

A Lei brasileira nº 13.140, de 26 de junho de 2015, conhecida como Lei da Mediação, dispõe em seu art. 1º que ela tratará (...)sobre a mediação como meio de solução de controvérsias entre particulares e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública, conceituando, em seu parágrafo único, que c.roclama-se sao )m a participaa temantoversa stado em que se encontra, uma vez que as provas sao onsidera-se mediação a atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia (BRASIL, 2015).

Segundo os ensinamento do Professor Doutor, a mediação consiste na forma de resolução alternativa de litígios, realizada por entidades públicas ou privadas, através do qual duas ou mais partes em litígio procuram voluntariamente alcançar um acordo com assistência de um mediador de conflitos. Ele acrescenta, ainda, que a metodologia empregue pelo mediador consiste em levar as partes a colaborar na resolução do problema, ajudando-as a harmonizar os seus interesses conflituantes e em detrimento das posições iniciais das partes, procurando superar intransigências (PEREIRA, 2016, p. 120).

Na Constituição lusa, os meios não judiciais de resolução de litígios têm previsão no artigo 202.º, nº 4: A lei poderá institucionalizar instrumentos e formas de composição não jurisdicional de conflitos (PORTUGAL, 1976).

Já no âmbito brasileiro, verifica-se a constitucionalidade da mediação logo no preâmbulo da Carta Magna, que proclama, dentre outras diretrizes políticas, filosóficas e ideológicas, a mensagem de solução pacífica das controvérsias.

Essas conceituações estão em consonância com as previsões legais portuguesa e brasileira, na medida em que no artigo 2.º, a, da Lei nº 29/2013 (PORTUGAL, 2013) e no art. 1º, parágrafo único, da Lei brasileira nº 13.140/2015 (BRASIL, 2015) constam os três elementos estruturantes do instituto em pauta, a saber: a) um mecanismo de resolução alternativa (adequada) do conflito; b) voluntariedade dos interessados; e c) presença de um mediador imparcial e desprovido de poderes decisórios que auxilia as partes na obtenção de um acordo.

A partir desses três eixos é possível deduzir que as mencionadas legislações coincidem nas suas finalidades precípuas, pois

(...) ambas preveem que a mediação é um meio extrajudicial de resolução de litígios intermediada por um terceiro (mediador) sem poderes impositivos sobre os mediados, cuja tarefa é a de auxiliá-los na tentativa de chegarem a uma composição. Os princípios da mediação na lei portuguesa estão assentados no artigo 3.º e discriminados nos artigos 4.º até o 9.º, designadamente a voluntariedade (4.º), confidencialidade (5.º), igualdade e imparcialidade (6.º), independência (7.º), competência e responsabilidade (8.º) e executoriedade (9.º). Na legislação do Brasil estão elencados no art. 2º, I a VIII: imparcialidade do mediador, isonomia entre as partes, oralidade, informalidade, autonomia da vontade das partes, busca do consenso, confidencialidade e boa-fé (ALMEIDA FILHO, 2019, p. 54).

Por oportuno, ressaltamos uma relevante diferença entre a legislação portuguesa que exclui do seu âmbito de aplicação a apreciação das causas de natureza administrativa e fiscal e a congênere brasileira (Lei nº 13.140/2015), que dedicou o Capítulo II, Seções I e II, arts. 32 a 40 para disciplinar as condições que regem a autocomposição de conflitos em que for parte pessoa jurídica de direito público (BRASIL, 2015).

Convém salientar, ainda, que

(...) na legislação adjetiva lusa também encontramos a previsão de suspensão de instância, por ordem do juiz, em qualquer estado da causa, nas situações em que ele julgar mais conveniente, a não ser que haja oposição de uma das partes; caso não haja, o acordo alcançado será homologado em consonância com os termos do artigo 273.º, nºs 1 a 5, do Código de Processo Civil lusitano. No sistema brasileiro, à semelhança do português, nas disposições comuns do procedimento de mediação a suspensão da instância está prevista no caput do art. 16 da Lei nº 13.140/2015, inclusive com suspensão do prazo prescricional: Ainda que haja processo arbitral ou judicial em curso, as partes poderão submeter-se à mediação, hipótese em que requererão ao juiz ou árbitro a suspensão do processo por prazo suficiente para a solução consensual do litígio (ALMEIDA FILHO, 2019, p. 62).

Passamos, doravante, a tratar da homologação de acordo, a pedido das partes, hipótese versada no artigo 14º da Lei nº 29/2013 da lei portuguesa (PORTUGAL, 2013).

Muito embora o artigo 9.º da referida legislação dispense a homologação judicial para imprimir efeito executivo aos acordos de mediação (desde que observados os requisitos das suas alíneas de
n.º 4, ﷽ versada no artigo 14.a-se participaa temantoversa stado em que se encontra, uma vez que as provas sao " a a e e n.º 4), as partes têm a faculdade de pedir conjuntamente a chancela judicial em qualquer tribunal competente em razão da matéria, preferencialmente por via eletrônica, nos termos de portaria governamental originária da área da justiça (conforme redação do n.º 2 do artigo 14.º).

Por sua vez, o art. 20 da Lei brasileira nº 13.140/2015 regula o encerramento do procedimento de mediação, sobrevindo a lavratura do seu termo final em decorrência de acordo ou quando não subsistirem mais justificativas para se continuar a busca do consenso, fato que deverá ser certificado pelo mediador ou por manifestação de qualquer das partes (BRASIL, 2015).

No ordenamento lusitano, a finalização da mediação ocorrerá nos termos do artigo 19.º, em virtude dos seguintes fatos: com a celebração de acordo entre as partes; na hipótese de desistência de qualquer delas, por decisão fundamentada do mediador, no caso de se verificar a impossibilidade de obtenção de acordo e, derradeiramente, pelo exaurimento do prazo máximo de duração do procedimento, inclusive as suas eventuais prorrogações (ALMEIDA FILHO, 2019, p. 65).

Diante das premissas mais relevantes nos contextos jurídicos luso-brasileiros, sua noção comum é de que o procedimento será conduzido por terceiro imparcial, que goze da confiança das partes, desprovido de poder decisório e detentor de capacidades suficientes para auxiliar, facilitar e incentivar os envolvidos a solucionarem voluntariamente a questão, da forma que melhor atenda seus interesses.

O objetivo das legislações em pauta não é só resolver a crise de eficácia da justiça, alimentada pelo crescente e contínuo acervo processual dos tribunais, mas, primordialmente, disponibilizar aos interessados um tratamento adequado do que é levado ao Judiciário de cada um dos países.

CONCLUSÃO

Compreender a importância dos equivalentes jurisdicionais como instrumentos de transformação social, exige do operador do Direito uma visão panorâmica e prospectiva do conflito, de sorte a alcançar o reestabelecimento do diálogo e da comunicação entre as partes envolvidas em uma dada controvérsia.

Consoante a análise do tema explanado, denota-se que as implicações práticas do estudo da mediação como ferramenta de combate à judicialização exasperada dos conflitos de interesses, transpassam os limites da lide jurídica, ao mesmo tempo que impõem uma reformulação do conceito de acesso à justiça.

Como visto, ao longo de tempos o Poder Judiciário tem sido o protagonista de uma avalanche de demandas que tramitam pelos órgãos jurisdicionais de primeira e segunda instâncias, sem quaisquer soluções definitivas. Certamente, a quantidade de recursos e instrumentos legais oferecidos pelo ordenamento jurídico, contribuem de maneira significativa para a instauração do que se denomina crise jurídica.

Tribunais abarrotados de processos, estrutura funcional defasada, déficit de servidores e colaboradores da Justiça, são apenas uma das facetas de um debate que não se circunscreve tão somente à esfera jurídica. É nesse contexto, que o caminho percorrido por esta pesquisa, pautou-se, inicialmente, na descrição de um sistema jurídico que passa por uma releitura.

Sobre a autora
Ingrid Paula Gonzaga e Castro

Servidora do TJ-GO, Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela UCAM/RJ, Mestre em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento pela PUC/GO, Doutora em Função Social do Direito pela FADISP, Pós-Doutora em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade de Coimbra-PT, Instrutora em técnicas autocompositivas, Professora na graduação e pós-graduações em Direito.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos