INTRODUÇÃO
O direito fundamental social à moradia está positivado na Constituição de 1988, via Emenda Constitucional 26, de 14 de fevereiro de 2000, pelo qual tem-se que o imóvel próprio que serve de residência é uma de suas facetas.
No plano infraconstitucional, o bem de família é um instituto jurídico que ampara o imóvel destinado à residência de um determinado núcleo familiar, de maneira a preservá-lo de eventuais ônus decorrentes de atos negociais que venham ocorrer em sua órbita, mantendo a salvo à moradia como corolário da dignidade humana.
É o instituto do bem de família, via de regra, impenhorável por força de lei, admitindo o Direito Civil duas modalidades de afetação, a saber, convencional e legal.
O trato do imóvel como bem de família convencional possui previsão no art. 1.711, do Código Civil, de forma que podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial. Sendo que a impenhorabilidade decorre da vontade do interessado e registrada junto à matrícula do imóvel no Cartório que se encontra depositada.
Ao passo que o bem o imóvel considerado bem de família legal encontra seu arrimo na Lei nº 8.009/1990, assim lecionando seu art. 1º, o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei, e seus efeitos jurídicos independem de inscrição no cartório de registro de imóveis.
Os efeitos da instituição do bem família surte impenhorabilidade do imóvel, isentando-o de execuções por eventuais dívidas, assim como torna ineficaz sua indicação como garantia, em algumas ocasiões, por parte do próprio devedor ora beneficiário do instituto.
A mesma Lei nº 8.009/1990, também assegura aos objetos e utensílios que guarnecem a vida doméstica os efeitos da impenhorabilidade, bem como elenca as exceções que retiram do bem de família a proteção frente as dívidas contraídas em benefício da entidade familiar.
Diante da dinâmica social a exegese teleológica dos Tribunais pautada no direito fundamental de moradia (art. 6º, da CR), presentemente com atenção voltada ao Superior Tribunal de Justiça, vem ampliando a esfera protetiva, de maneira que as Casas Legislativas, ante a sedimentação de alguns entendimentos jurisprudenciais, e noutras situações pelo clamor público e insurgência doutrinária, trabalham a revisão e aprimoramento dos dispositivos da Lei nº 8009/1990, com o fim de alargar a proteção do bem de família, restringindo ainda mais as possibilidades de constrição elencadas no art. 3º da norma ora abordada.
O cerne deste trabalho, portanto, é mensurar, ao lume da jurisprudência se de fato as exceções à impenhorabilidade do bem família de família se sobrepõem ao direito à moradia.
1 DIREITOS FUNDAMENTAIS
Os direitos fundamentais são garantias conquistadas no decorrer do tempo, fruto de algum fato social, dessa maneira entendido como um conjunto de direitos e garantias dos indivíduos, com a finalidade de respeito à dignidade, proteção frente ao poder estatal e condições mínimas de vida e desenvolvimento humano, institucionalizados formal e materialmente por cada ordenamento jurídico, sendo que nesse o constituinte histórico elege quais posicionamentos jurídicos alçam à condição de direitos fundamentais, que passam ao patamar de garantias assecuratórias de um regime jurídico específico e diferenciado na estrutura constitucional.
1.1 - Direitos Humanos x Direitos Fundamentais
Tanto os direitos humanos quanto os direitos fundamentais possuem caráter histórico e se equivalem quanto ao conteúdo, a saber, proteger os bens jurídicos sensíveis à dignidade humana. Sendo que os segundos passam a se distinguir dos primeiros quando constitucionalmente assegurados.
Os direitos humanos sedimentam-se nos discursos morais justificados ao longo da história, e possuem uma postura bidimensional de conciliar os direitos do indivíduo e os ditames estatais, e de outra banda, assegurar os alicerces democráticos. Cabendo aos direitos humanos o zelo pelas integridades física e psicológica dos indivíduos perante seus semelhantes e ao poder estatal, restringindo os poderes das autoridades e ao mesmo tempo garantindo o bem-estar social via igualdade, fraternidade, e a rechaça às várias formas de discriminação.
Já os direitos fundamentais são os direitos humanos constitucionalizados à imagem dos contextos histórico e cultural de uma sociedade e se relacionam com situações jurídicas existenciais de sobrevivência, convivência e realização plena, inerentes a todos os seres humanos, não bastando apenas o reconhecimento, mas também a efetivação de tais direitos, que permanecem em constante construção a cada mudança da ordem constitucional.
1.1.1 - Direitos Fundamentais x Garantias Fundamentais
Os direitos fundamentais, como dito anteriormente, são enunciados constitucionais de cunho declaratório, cujo objetivo é reconhecer no plano jurídico a existência de prerrogativas fundamentais do indivíduo.
Já as garantias fundamentais são enunciadas de conteúdo assecuratório, com o escopo de fornecer instrumentos de proteção, reparação ou reingresso, caso exista a violação de um direito fundamental.
1.2 - Características dos Direitos Fundamentais
A doutrina constitucionalista relaciona várias características dos direitos fundamentais, dentre as quais se destacam:
a) Historicidade: emergem a partir de um processo histórico e cultural, se adequando as mudanças de paradigmas para edificação da dignidade da pessoa humana na ordem constitucional vigente.
b) Universalidade: são dirigidos sem restrições a todos os seres humanos, independente de raça, credo, nacionalidade, convicção política ou religiosa.
c) Inviolabilidade: limites a atuação estatal à observância e não violação dos direitos e garantias fundamentais.
d) Irrenunciabilidade: os direitos existenciais são, em regra, irrenunciáveis.
Porém, imperioso esclarecer que não se trata de renúncia ao direito propriamente dito, mas ao seu exercício, e desde que a mitigação não viole o núcleo do direito fundamental.
e) Imprescritibilidade: os direitos existenciais não perecem pelo decurso do tempo, estando sempre à disposição do indivíduo.
f) Inalienabilidade: os direitos fundamentais são inerentes aos indivíduos, não podendo se transferir de uma para outra pessoa.
g) Efetividade: obrigatoriedade da efetivação dos direitos e garantias fundamentais, com a utilização de meios coercitivos se necessário pelo Poder Público
h) Complementariedade: a interpretação do elenco de direitos fundamentais é feita de forma conjunta.
i) Relatividade: havendo conflito entre os direitos fundamentais, necessário avaliar a situação em si, pois não há preponderância entre os preceitos relacionados pelo constituinte.
1.3 Dimensões dos Direitos Fundamentais
A formação dos direitos fundamentais prossegue gradual e ampliativa com o passar do tempo. Modernamente já se gere seis dimensões de direitos existenciais.
As três primeiras dimensões são inspiradas no lema Revolução Francesa, "Liberdade, Igualdade e Fraternidade", transformando-se num marco para afirmação dos direitos fundamentais nos textos constitucionais.
Dessa forma, tem-se associados à Liberdade a primeira dimensão dos direitos fundamentais que tratam dos direitos individuais e políticos.
Na Igualdade se infere a segunda dimensão dos direitos fundamentais, a saber, os direitos sociais, econômicos e culturais.
Já a Fraternidade, também dita solidariedade, perfaz a terceira dimensão dos direitos fundamentais, e se liga às formações sociais na proteção dos interesses difusos e coletivos.
Não menos importante tratar, os direitos de quarta, e quinta e sexta dimensões os quais emanam da globalização, da informação e da água potável, respectivamente.
A sucessão, ou evolução, das dimensões dos direitos existenciais amplia o catálogo não só de direitos, mas também de garantias, possibilitando a modificação e o modo de interpretação - sempre extensivos - dos preceitos.
1.4 - Direitos Fundamentais na Constituição Federal
A Carta Republicana delineia de modo geral em seu Título II os Direitos e Garantias Fundamentais, subdivididos em cinco capítulos:
a) Direitos e deveres individuais e coletivos, art. 5º;
b) Direitos sociais e econômicos, art. 6º até o art. 11;
c) Direitos de nacionalidade, art. 12 e art. 13;
d) Direitos políticos, art. 14 até o art.16;
e) Direito de organização partidária, art. 17.
Depreende-se, portanto, da leitura do Texto Constitucional que o Estado e sua organização são meios para realização dos direitos fundamentais, cujo fim é o pilar fundamental da dignidade da pessoa humana (Art. 1º, inciso III, CF), possuindo aplicabilidade imediata, mormente a eficácia depender do planejamento de políticas públicas.
No que concerne ao presente trabalho, os direitos sociais merecem especial destaque, o que se passa a discorrer:
2 - DIREITOS SOCIAIS
Num breve histórico sobre os direitos fundamentais sociais, diz-se que surgiram a partir das lutas de classe pós-Revolução Industrial ocorridas principalmente nos séculos XIX e meados do século XX.
Nesse contexto político que fez surgir a Doutrina Social da Igreja, sendo a Encíclica Rerum Novarum, elaborada pelo Papa Leão XIII, a Igreja Católica responde ao fortalecimento do liberalismo e do capitalismo monopolista na Europa, e também ao Manifesto Comunista de 1848, escrito por Marx.
Aliás, junto à Encíclica das Coisas Novas, O Capital, obra do mesmo autor do Manifesto Comunista, Karl Marx - primeiro volume em 1867, seguido dos outros dois volumes até 1883 publicados por Friedrich Engels -, constituem as maiores influências do pós-revolução industrial.
Os primeiros direitos sociais injetados numa Constituição aconteceram no México, em 1917, e diziam respeito aos direitos trabalhistas naquele país. Ao passo que os direitos sociais suficientes à inauguração do Estado do Bem-Estar Social, fincou consagrado na Alemanha, Constituição de Weimar de 1919.
Também em 1919, o surgimento da Organização Internacional do Trabalho (OIT), notadamente influenciada pela Revolução Russa de 1917 e os movimentos constitucionais em comento alicerçaram os direitos sociais como fundamentais. E com o fim da Segunda Guerra Mundial e a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, a então estrangulada Constituição de Weimar retorna ao centro do debate dos movimentos constitucionalistas, reconhecendo-se a partir daí os direitos sociais como fundamentais à formação do Estado Democrático de Direito entendida a aplicação desses direitos como imediata e obrigatória.
2.1 Enquadramento Constitucional dos Direitos Sociais
No Brasil, a Constituição Federal promulgada em 5 de outubro de 1988, trouxe o elenco base de direitos fundamentais sociais no art.6º, assim descrito:
"São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição".
Com a Emenda Constitucional 26 de 14 de fevereiro de 2000 foi acrescentando ao rol o direito de moradia, passado a seguinte redação:
"Art. 6º - São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição."
mais adiante a Emenda Constitucional 90, de 15 de outubro de 2015, a alimentação passou a integrar a base dos diretos existenciais, verbis:
"Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição."
Presentemente, a EC 114/2021 acrescentou um parágrafo ao dispositivo, tratando da renda básica familiar, sem alterar a redação do caput, assumindo desde então o seguinte formato:
"Art. 6º
São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição."
Parágrafo único. Todo brasileiro em situação de vulnerabilidade social terá direito a uma renda básica familiar, garantida pelo poder público em programa permanente de transferência de renda, cujas normas e requisitos de acesso serão determinados em lei, observada a legislação fiscal e orçamentária.
Do aqui demonstrado, percebe-se que a construção dos direitos fundamentais - notadamente em segunda dimensão - é permanente, além do constante aperfeiçoamento dos elementos originariamente estabilizados.
2.1.1. Normas Programáticas
São normas programáticas o conjunto de objetivos dispostos na Constituição a serem perseguidas pelo Estado, com o fito de edição de políticas públicas tendentes à consecução de tais fins.
No ordenamento jurídico pátrio as metas fundamentais de políticas públicas objetivando a implementação dos direitos sociais se encontram, primariamente, elencadas no art. 3º da Carta Constitucional, da seguinte forma:
''Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação."
Ainda são normas constitucionais de implementação de políticas de governo no plano infraconstitucional, os fins sociais previstos, por exemplo, no art.196, que trata da saúde; e art. 205 que cuida da educação em todos os níveis.
2.2 Direitos Sociais e o Mínimo Existencial
Sucintamente, é o mínimo existencial um conjunto base de direitos fundamentais dos indivíduos capaz de assegurar-lhes uma vida digna, tais como trabalho, moradia, saúde e educação, ao mesmo tempo que impõe ao Estado e à Sociedade subsidiar todo aquele que não consiga por si só o sustento próprio e dos que estejam sob sua responsabilidade.
A ideia de mínimo existencial como condição para a realização dos direitos e liberdades fundamentais aparece no primeiro princípio de justiça do filósofo americano John Rawls e sua publicação primária numa decisão de cunho pragmático do Tribunal Federal Administrativo alemão, em 1954, que determinava o Estado prestar auxílio material aos desprovidos por se tratar o mínimo existencial da manutenção de um direito subjetivo.
A primeira vez que se utilizou o conceito de mínimo existencial no Brasil foi em 2004, pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de medida cautelar, na ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental do Distrito Federal - ADPF 45/2004 -DF, a qual findou prejudicada por perda de objeto -, onde se debatia a constitucionalidade do veto presidencial na fixação de diretrizes de elaboração da lei orçamentária anual daquele ano [1].
Uma vez condicionadas as políticas públicas e econômicas às prestações mínimas necessárias à preservação do núcleo essencial e intangível da vida digna dos indivíduos, deduz-se que tanto a dignidade da pessoa humana quanto os direitos sociais constituem os elementos delineadores do mínimo existencial.
3 DIREITO SOCIAL DE MORADIA
Um lugar para "chamar de seu", isto é, um local para permanecer e se desenvolver. A moradia compreende uma necessidade básica e imprescindível para a vida plena do indivíduo.
Nos primórdios tudo que a natureza produzia e protegesse do sol, da chuva, do vento, do frio, tais como árvores frondosas, cavernas, locas, serviam de abrigo. À medida que a civilização evoluía, a formação social se desenvolvia, as habitações se aperfeiçoavam até chegarmos ao surgimento das cidades.
Porém, à busca por emprego e renda ocasionada pela incessante industrialização, fez com que as gentes se acumulassem nas urbes, ocasionando a redução de espaços livres e áreas verdes, bem como afastando a maior parte da população para as zonas periféricas e com pouca ou nenhuma infraestrutura, quer pelas edificações precárias, quer pela falta de saneamento básico.
A moradia foi elevada a direito humano porque o local adequado para se habitar viabiliza a própria dignidade do indivíduo, permitindo o gozo de tantos outros benefícios, como por exemplo o abastecimento de água potável, o saneamento básico, a eletricidade, a energia para cozinhar e a segurança. Evidenciando-se que o caráter de necessidade vital e básica da canalização e distribuição da água potável e rede de esgotos e tratamento dos dejetos; fornecimento de energia elétrica e gás de cozinha; além da segurança pública, está diretamente relacionada à habitação digna.
3.1 Moradia Adequada x Habitação Digna
Com a finalidade de melhor compreensão, distingue-se moradia adequada da habitação digna por exprimir a moradia elemento essencial e bem extrapatrimonial do ser humano, ao passo que a habitação é a consumação do pleno do exercício da moradia sobre o imóvel.
No texto, que ora se desenvolve, as expressões serão utilizadas como sinônimas, tal como feito pelo Comitê de Direitos Sociais, Econômicos e Civis da ONU ao analisar o art. 11.1 do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas e logo mais detalhado.
3.2 Moradia como Direito Humano
O direito de moradia adequada encontra respaldo no âmbito internacional como um direito humano através de três instrumentos denominados de a Carta Internacional dos Direitos Humanos, a saber, a Declaração Universal dos Direitos do Humanos (DHDU,1948); o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas (PIDESC,1966) e o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas (PIDCP, 1966), compondo o Documento o piso de tantos outros tratados, convenções, declarações e princípios adotados pela Organização das Nações Unidas, via ONU-Habitat, cujo objetivo é salvaguardar a moradia digna para todos.
Para melhor ilustrar, a moradia se encontra assegurada em alguns instrumentos internacionais ratificados pelo Brasil da seguinte forma:
- Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948
"Artigo 25°
1. Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade"
- Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas de1966 - PIDESC (promulgado no Brasil em1992, Decreto nº 591):
"Art. 11
§1. Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados-partes tomarão medida apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento"
- Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas - PIDCP:
"Artigo 17
parágrafo 1º: Ninguém poderá ser objeto de ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra e reputação".
- A Declaração americana de direitos e deveres do homem Organização dos Estados Americanos - OEA, 1948:
"Artigo XI
Toda pessoa tem direito a que sua saúde seja resguardada por medidas sanitárias e sociais relativas à alimentação, roupas, habitação e cuidados médicos correspondentes ao nível permitido pelos recursos públicos e os da coletividade".
- A Convenção sobre Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 18 de dezembro de 1979 e ratificada pelo Brasil em primeiro de fevereiro de 1984, Decreto 4.377/2002:
"Artigo 14
2 Os Estados-Partes adotarão todas as medias apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher nas zonas rurais a fim de assegurar, em condições de igualdade entre homens e mulheres, que elas participem no desenvolvimento rural e dele se beneficiem, e em particular as segurar-lhes-ão o direito a:
h) gozar de condições de vida adequadas, particularmente nas esferas da habitação, dos serviços sanitários, da eletricidade e do abastecimento de água, do transporte e das comunicações."
- A Convenção Internacional sobre Todas as Formas de Discriminação Racial, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 21 de dezembro de 1965, sendo ratificada pelo Brasil em 27 de março de 1968, Decreto 65.810/1969:
"Artigo 5º
De conformidade com as obrigações fundamentais enunciadas no artigo 2, os Estados-Parte comprometem-se a proibir e eliminar todas as formas e a garantir o direito de cada um à igualdade perante a lei sem distinção de raça, de cor ou de origem nacional ou étnica, principalmente no gozo dos seguintes direitos:
e) direitos econômicos, sociais e culturais, principalmente:
iii - direito a habitação"
- A Convenção sobre os Direitos da Criança, convenção adotada pela Assembleia Geral da ONU em 20 de novembro de 1989 e o Brasil a ratificou em 20 de setembro de 1990, Decreto 99.710:
"Artigo 16
1: Nenhuma criança será objeto de interferências arbitrárias ou ilegais em sua vida particular, sua família, seu domicílio ou sua correspondência, nem de atentados ilegais a sua honra e a sua reputação".
"Artigo 27
3 - De acordo com as condições nacionais e dentro de suas possibilidades, os Estados-Partes devem adotar as medidas apropriadas para ajudar os pais e outras pessoas responsáveis pela criança a tornar efetivo esse direito; e caso necessário, devem proporcionar assistência material e programas de apoio, especialmente no que diz respeito à nutrição, ao vestuário e à habitação."
Em tempo mais aproximado ao século vigente, o direito à moradia também foi instituído como direito básico do homem, na Agenda 21 da Rio 1992, e da Agenda Habitat da Conferência do Habitat II, em Istambul - 1996 -, e já no fim da primeira década do século XXI a Habitat III-2010.
É que como os demais direitos econômicos, sociais e culturais, o direito à moradia adequada impõe aos Estados uma série de obrigações, cabendo aos governos a adoção de medidas que efetivem o que se encontra juridicamente assegurado [2]. Todavia, necessário observar que a adoção de medidas legislativas não esgota as obrigações governamentais, havendo necessidade de formulação de planos de ação compatíveis com o pacto no território nacional.
3.3 Moradia como Direito Fundamental
Com a promulgação da Carta Republicana de 1988, em que pese no seu texto inicial não relacionar a moradia como direito social no elenco do artigo 6º, a mesma já se encontrava mencionada em alguns de seus dispositivos aqui destacados:
"Art. 7º
São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
IV - Salário-mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim "
Note-se que no dispositivo em comento cuida da moradia como mínimo existencial à vida digna do trabalhador e daqueles sob sua responsabilidade, gravando à habitação digna não só como direito social, mas também um direito personalíssimo, humano e fundamental diante da evidente necessidade da residência para a sobrevivência do indivíduo, invocando outro princípio basilar da República, que é o valor social do trabalho (art. 1º, inciso IV, da CR).
Art. 23.
É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
IX - Promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico"
O Sistema Financeiro de Habitação, SFH, instituído pela Lei nº 4380, de 21 de agosto de 1964, recepcionada pela Constituição Cidadã, diz em seu art. 1º:
"Art. 1º O Governo Federal, através do Ministério de Planejamento, formulará a política nacional de habitação e de planejamento territorial, coordenando a ação dos órgãos públicos e orientando a iniciativa privada no sentido de estimular a construção de habitações de interesse social e o financiamento da aquisição da casa própria, especialmente pelas classes da população de menor renda."
Mais recente, a Política Nacional da Habitação (PNH) segue princípios e diretrizes que têm como principal objetivo garantir à população, especialmente a de baixa renda, o acesso à habitação digna, e considera fundamental para atingir seus objetivos a integração entre a política habitacional e a política nacional de desenvolvimento urbano. Foi instituída pelo Ministério das Cidades desde 2004, e traz um conjunto de instrumentos que possibilitam a viabilização de sua implementação, a saber: o Sistema 13 140 Estudos Técnicos CNM Volume 3 Nacional de Habitação; o Desenvolvimento Institucional; o Sistema de Informação, Avaliação e Monitoramento da Habitação; e o Plano Nacional de Habitação.
O dever de construir moradias ser de competência comum aos entes federados está intimamente ligado ao fundamento da dignidade da pessoa humana (art. 2º, III, da CR), bem como os objetivos de "construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza, e "promover o bem de todos, mencionados no art. 3º, incisos I e III, da Carta Republicana.
Art. 4º
A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
III- prevalência dos direitos humanos "
O Brasil como signatário de tratados que cuidam do direito de moradia adequada a exemplo do Decreto nº 591/1992, Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, já se encontrava a partir da inserção do acordo no ordenamento jurídico brasileiro obrigado a atender ao direito de moradia, sob pena de descumprimento de compromisso assumido perante a Comunidade Internacional.
O direito à moradia, como mencionado antes, alçou o rol dos direitos sociais fundamentais em 14 de fevereiro de 2000, através da emenda constitucional nº 26, passando o art. 6º, da Constituição Federal a afirmar que: São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
A inclusão da moradia como direito social nasce do entendimento universal de que o indivíduo é merecedor de uma vida digna, sendo o direito à moradia adequada, como todo o elenco do artigo 6º, da CR, requisito para a vida plena, estando, portanto, a moradia conectada ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da CR).
3.4 Moradia Adequada
Para o pleno exercício da habitação digna traçou-se um conteúdo universalmente reconhecido no Comentário Geral nº 4 do Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU [3], que ao interpretar o artigo 11.1 do PIDESC listou seguintes componentes do direito à moradia adequada:
- Segurança da posse:
A moradia só é adequada se seus ocupantes possuírem segurança de posse com vista a garantir-lhes legalmente atos contra despejos forçados, perseguição e demais ameaças.
- Disponibilidade de serviços, materiais, instalações e infraestrutura:
A moradia adequada possui fornecimento de água potável, saneamento básico, eletricidade, energia para cozinhar, local para armazenamento e coleta de resíduos (lixo doméstico).
- Economicidade:
A moradia é adequada se o seu custo de manutenção do imóvel não ameaça ou compromete o exercício de outros direitos humanos dos ocupantes.
- Habitabilidade:
A moradia é adequada desde que garanta segurança física e estrutural, espaço adequado, e proteção contra o frio, umidade, calor, chuva, vento, e outras ameaças à saúde dos ocupantes.
- Acessibilidade:
A moradia é inadequada se as necessidades específicas dos grupos desfavorecidos e marginalizados não são levadas em conta.
- Localização:
A moradia é inadequada quando isolada de oportunidades de trabalho, serviços de saúde, escolas, creches e outras instalações sociais, ou se localizados em áreas poluídas e zonas perigosas.
- Adequação cultural:
A moradia adequada tanto respeita quanto leva em conta a expressão da identidade cultural.
Todos esses elementos conjugados constituem o direito a uma moradia adequada, e estão os Estados juridicamente obrigados a atuar em diversas frentes para assegurar o exercício desse direito à habitação digna.
3.5 Direito de Moradia x Direito de Propriedade
O direito de propriedade também encontra agasalho no elenco de direitos fundamentais da Carta da Primavera de 1988, que afirma:
"Artigo 5º
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;
XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;
XXV - no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;
XXVI - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento"
No plano infraconstitucional legislação anterior a promulgação da Carta Maior restou moldada à nova realidade constitucional, passando o direito de propriedade ser trabalhado nos limites de cumprimento de sua função social, conforme se apercebe da leitura do art. 1.228, §§1º e 2º do Código Civil, qual seja:
"Art. 1.228.
O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido
em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
§ 2o São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem"
Entende-se por direito de propriedade o poder jurídico legalmente concedido a alguém para o uso, gozo, disposição de um determinado bem como de reavê-lo de quem quer que esteja injustamente possuindo. Cuida a propriedade de um direito sensível ao ser humano, e que remonta à sua própria natureza.
Por óbvio, o direito a moradia não se confunde com o direito de propriedade, entretanto, é sim a propriedade do imóvel uma forma de habitação, sendo por sua vez o direito de moradia mais amplo que o direito de propriedade, por suscitar direitos e garantias não só relacionados à propriedade, mas com o escopo de assegurar a todos, proprietários ou não do imóvel, um lugar adequado para viver com segurança e dignidade.
Nessa senda, a propriedade garante ao indivíduo a aquisição de bens imóveis, logo, toda pessoa detém o direito fundamental de patrimonialização do imóvel destinado à sua moradia.
4 - O BEM DE FAMÍLIA
Até o momento tudo o que foi apresentado edifica a ideia da casa própria como elemento do patamar mínimo da existência digna. Assim sendo, o mínimo existencial significa a garantia do atendimento das necessidades vitais à sobrevivência plena do indivíduo. e nessa linha de raciocínio é possível refletir acerca de quais são os bens, valorativos e materiais, indispensáveis às referidas necessidades essenciais das pessoas, estando, pois, inserido nesse contexto, a aquisição da casa própria, compondo o patrimônio mínimo de bens materiais inerentes à dignidade humana.
Extrai-se da obra de Luís Edson Facchin:
"Em certa medida, a elevação protetiva conferida pela Constituição à propriedade privada pode, também, comportar tutela do patrimônio mínimo, vale dizer, sendo regra de base desse sistema a garantia ao direito de propriedade não é incoerente pois, que nele se garanta um mínimo patrimonial. Sob o estatuto da propriedade agasalha-se, também, a defesa dos bens indispensáveis à subsistência. Sendo a opção eleita assegurá-lo, a congruência sistemática não permite abolir os meios que, na titularidade, podem garantir a subsistência." [4]
Certo que a propriedade do imóvel residencial é uma das faces do direito à moradia, o ordenamento pátrio confere a essa propriedade a salvaguarda do bem de família, antes previsto nos artigos 70 a 73, do Código Civil de 1916, hodiernamente tratado nos artigos 1.711 a 1.722 do Código Civil de 2002, e Lei nº 8.009 de 1990 - cerne da pesquisa.
É o bem de família um instituto jurídico que aparta o imóvel residencial dos negócios jurídicos com o intuito de resguardá-lo de execuções judiciais de dívidas futuras e anteriores à sua aquisição.
Deriva a garantia do direito norte-americano - homestead act -, o qual incentivava a imigração para os Estados Unidos da América por meio da cessão de pequenas propriedades
rurais e que tinham como característica de garantia de impenhorabilidade por dívidas após decorrido certo lapso temporal.
Imperioso asseverar que a regra é do cumprimento das obrigações financeiras, inteligência do art. 304, do Código Civil, porém, o instituto do bem de família isenta, mediante alguns requisitos, que o imóvel de moradia da unidade familiar sofra expropriação judicial - penhora -, para pagamentos de dívidas, embora o mesmo texto normativo elenque situações excepcionais que permitam a constrição do imóvel, e que são alvo de controvérsia no meio jurídico, e maciço questionamento judicial, doravante mapeado.
Sem pretensão de esgotar as pendengas judiciais, encontra-se a pesquisa delimitada a situações enfrentadas pelo Superior Tribunal de Justiça, uma vez ser o Colegiado responsável pela uniformização da interpretação da lei federal - que não envolva as atribuições das justiças especializadas -, e também por entender a relevância do tema nos termos do § 2º, do art. 105 da CR.
4.1 Conceito de Família
Todavia, antes de adentrar o estudo do instituto do bem de família como corolário do direito fundamental de moradia, e à luz da jurisprudência do Tribunal da Cidadania, importante observar a entidade familiar estampada no art. 226 da Carta da Magna, e sua conformação pelo STF, como ora segue:
Estabelece o Texto Constitucional que:
"Art. 226.
A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º O casamento é civil e gratuito a celebração.
§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes".
Com a dinâmica social pós promulgação da Carta Magna de 1988, findou a exigência por parte do legislador e dos tribunais a ampliação do conceito de entidade familiar. Dessa forma, coube ao STF no julgamento da ADPF 132 e ADI 4277, aprimorar a interpretação do art. 1723 do Código Civil considerando a união estável aos casais homoafetivos [5].
Uma vez grifada a decisão, é, portanto, a entidade familiar um núcleo social formado a partir do matrimônio ou união estável, ou por vivência comunitária entre descendentes e ascendentes em uma mesma habitação e via de consequência, é o bem de família um direito de impenhorabilidade por dívidas, instituído pelo Estado, por norma de ordem pública, que incide sobre o imóvel, urbano ou rural, com os móveis que guarnecem a subsistência da entidade familiar que detém sua propriedade e posse.
4.2 Bem de Família Voluntário
O bem de família na modalidade convencional ou voluntária encontra cobertura nos artigos 1711 a 1722, do CC, e decorre da manifestação de vontade dos titulares do bem, que ao atenderem os requisitos necessários para o intento, registrando sua constituição junto ao cartório onde se encontra matriculado o bem.
São condições para a instituição do bem de família:
- Não ser o instituidor insolvente (regra geral);
- O patrimônio a ser destinado ao bem de família não ultrapassar um terço do patrimônio líquido do instituidor;
- Para a instituição por terceiro é necessária a aceitação expressa dos cônjuges ou da entidade familiar.
Consoante o art. 1.711 do CC e seu parágrafo único, são os legitimados à instituição do bem de família, os cônjuges, a entidade familiar ou terceiro que conste com anuência expressa dos beneficiados, como segue transcrito:
"Artigo 1711.
Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial.
Parágrafo único. O terceiro poderá igualmente instituir bem de família por testamento ou doação, dependendo a eficácia do ato da aceitação expressa de ambos os cônjuges beneficiados ou da entidade familiar beneficiada".
O imóvel instituído como bem de família voluntário deve possuir valor que não ultrapasse um terço do patrimônio existente ao tempo da instituição. Melhor dizendo, pela interpretação do artigo 1.711 do CC, o terço corresponde ao resultado da subtração do patrimônio ativo menos o passivo de quem requer a afetação.
O dispositivo seguinte se encontra a explicação do que venha a ser a coisa gravada pelo instituto, a saber:
"Art.1712
O bem de família consistirá em prédio residencial urbano ou rural, com suas pertenças e acessórios, destinando-se em ambos os casos a domicílio familiar, e poderá abranger valores mobiliários, cuja renda será aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família".
Além do imóvel (edificação), o bem de família poderá proteger valores mobiliários, desde que não excedam o valor do imóvel, seja tal renda aplicada na conservação do próprio imóvel e na subsistência da entidade familiar conforme o art. 1.712 do CC -, desde que mencionados na escritura pública de instituição de bem de família.
Do instituto do bem de família voluntário surtem dois efeitos fundamentais, a impenhorabilidade limitada e a inalienabilidade relativa, conforme os artigos 1715, e seu parágrafo único, e 1717, do mesmo diploma legal, a seguir:
"Artigo 1715
O bem de família é isento de execução por dívidas posteriores à sua instituição, salvo as que provierem de tributos relativos ao prédio, ou de despesas de condomínio.
Parágrafo único. No caso de execução pelas dívidas referidas neste artigo, o saldo existente será aplicado em outro prédio, como bem de família, ou em títulos da dívida pública, para sustento familiar, salvo se motivos relevantes aconselharem outra solução, a critério do juiz".
Ou seja, a impenhorabilidade limitada torna a edificação isenta de dívidas futuras, salvo obrigações tributárias referentes ao próprio imóvel e despesas condominiais, ao passo que a inalienabilidade relativa determina que após inscrito como bem de família convencional, o imóvel só será passível de alienação mediante autorização dos interessados, cabendo ao Ministério Público intervir quando houver participação de incapaz.
Outrossim, a rubrica voluntária incidirá sobre o imóvel uma afetação de finalidade destinando o bem à residência familiar - entendido o conceito de família independente da forma de constituição, do gênero e do estado civil dos integrantes do núcleo social.
4.1.1 Extinção do Bem de Família Voluntário
"Art. 1722.
Extingue-se, igualmente, o bem de família com a morte de ambos os cônjuges e a maioridade dos filhos, desde que não sujeitos a curatela".
Com o falecimento dos cônjuges, ou companheiros e havendo filhos menores a administração passará ao filho mais velho, se maior de idade, e, do contrário, a seu tutor.
Sobrevindo algumas das hipóteses legais de extinção do bem de família, não será o imóvel objeto de partilha, quer por ato inter vivos, quer em virtude de morte de um dos cônjuges ou companheiros.
Já a isenção de execução por dívidas posteriores à afetação, salvo as decorrentes de tributos relativos à edificação, ou despesas condominiais, surtirá efeito enquanto vivo um dos cônjuges, ou conviventes, ou, na falta destes, até que os filhos completem a maioridade e nenhum necessite de curatela.
Havendo, após a maioridade, filho incapaz, será lícita a extinção do instituto a pedido dos demais interessados, com sub-rogação do quinhão correspondente ao curatelado.
4.1.2 Bem de Família Voluntário x Superior Tribunal de Justiça
São poucas as causas no STJ que tratam do bem de família voluntário, em relação ao bem de família legal, mas nem por isso, não mereçam zelosa atenção na pesquisa aqui forjada.
O bem de família voluntário ou convencional é aquele cuja destinação decorre da vontade do seu instituidor, integrante da família, visando, conforme adiantado, à proteção do patrimônio em relação à satisfação forçada das dívidas do devedor proprietário do bem. Assim, o Código Civil confere ao titular da propriedade a possibilidade de escolha do bem eleito, colocando como condição de validade apenas a circunstância de que o bem escolhido não tenha valor que ultrapasse 1/3 do patrimônio líquido existente no momento da afetação. [6]
Os casos postos, ressalvadas as peculiaridades fáticas aduzidas no curso de cada ação em sua origem, asseveram a necessidade de se fazer prova de que o limite patrimonial mencionado em lei não desafine com a realidade financeira do devedor, ou de inexistência da intenção de lesar credores de dívidas anteriores à sua instituição.
"O propósito da Lei nº 8.009/90 é a defesa da célula familiar. O escopo da norma não é proteger o devedor, mas sim o bem-estar da família, cuja estrutura, por coincidência, pode estar organizada em torno de bens pertencentes ao devedor. Nessa hipótese, sopesadas a satisfação do credor e a preservação da família, o fiel da balança pende para o bem-estar desta última. - Contudo, os excessos devem ser coibidos, justamente para não levar o instituto ao descrédito. Assim, a legitimidade da escolha do bem destinado à proteção da Lei nº 8.009/90, feita com preferência pela família, deve ser confrontada com o restante do patrimônio existente, sobretudo quando este, de um lado se mostra incapaz de satisfazer eventual dívida do devedor, mas de outro atende perfeitamente às necessidades de manutenção e sobrevivência do organismo familiar. - Nesse contexto, fere de morte qualquer senso de justiça e equidade, além de distorcer por completo os benefícios vislumbrados pela Lei nº 8.009/90, a pretensão do devedor que a despeito de já possuir dois imóveis residenciais gravados com cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade, optar por não morar em nenhum deles, adquirindo um outro bem, sem sequer registrá-lo em seu nome, onde reside com sua família e querer que também este seja alcançado pela impenhorabilidade". [7]
De outra banda, a jurisprudência do Colegiado vem admitindo que se tratando de imóvel instituído voluntariamente como bem de família e ao mesmo tempo o único bem imóvel do devedor, incide a proteção do bem de família legal, conferida pela Lei 8.009/1990, de maneira similar e concomitante, apta à preservação do bem frente à penhora por dívidas constituídas anteriormente à instituição voluntária, pois o imóvel só não receberia a proteção legal caso o devedor possuísse outro imóvel de valor inferior e nele também residisse.
"Nessa linha, é mister reconhecer que só o fato de ser o imóvel residencial bem único do recorrido faz com que sobre ele, necessariamente, incidirão as normas da Lei n. 8.009/1990, mormente a impenhorabilidade questionada pelo exequente.
De fato, aqui, ainda que se tratasse, nos termos alegados pelo recorrente, de imóvel voluntariamente instituído como bem de família (regime legal do Código Civil), conforme demonstrado alhures, tendo em vista ser o único bem imóvel do executado, a proteção conferida pela Lei n. 8.009/1990 subsistiria de maneira coincidente e simultânea e, nessa extensão, seria capaz de preservar o bem da penhora de dívidas constituídas anteriormente à instituição voluntária. É que a proteção viria do regime legal e não do regime convencional.
Com efeito, no caso que se analisa, o imóvel adquirido pelo executado apenas não receberia a proteção da Lei n. 8.009/1990 caso o devedor possuísse outro imóvel, de valor inferior, e nele também residisse. À vista disso, por se tratar de dívidas anteriores à hipotética instituição convencional, seria permitida a penhora do imóvel residencial de maior valor, mas o imóvel residencial de menor valor seria resguardado, incidindo sobre ele as normas protetivas da Lei n. 8.009/1990". [8]
4.2 Bem de Família Legal
A instituição e regulamentação do bem de família obrigatório está na Lei nº 8009/1990. Sendo que a impenhorabilidade do imóvel gravado como bem de família é amparada pela ideia de um patrimônio mínimo que resguarde o bem-estar da família, não se admitindo renúncia por seu titular.
Para que o imóvel seja reconhecido como bem de família, é, de maneira geral, necessária a comprovação de que o devedor nele resida, ou que o imóvel reverta ganhos em prol do núcleo familiar.
"A caracterização do imóvel como bem de família demanda a comprovação de que o devedor nele reside ou de que o bem seja utilizado em proveito da família, como, por exemplo, a locação para garantir a subsistência da entidade familiar. [9]
É o Estado que impõe o instituto agasalhar um patrimônio mínimo à existência digna de cada um dos integrantes da entidade familiar, também recaindo a impenhorabilidade sobre os bens móveis de propriedade da família e desde que quitados, até mesmo quando não proprietária do imóvel.
A modalidade de bem de família legal, uma vez assegurado pelo próprio Estado, prescinde de registro junto ao Cartório de Imóveis, tem natureza processual, arrimando seu fundamento de validade no princípio basilar da dignidade da pessoa humana, o qual assegura aos indivíduos um mínimo de condições a uma vida decente.
"Com efeito, em voto proferido sob minha relatoria, REsp n. 1.792.265/SP , no que nos interessa, foi salientada como característica marcante do bem de família legal a dispensabilidade da realização de ato jurídico institucional para que se aperfeiçoe aproteção, bastando, para tanto, que o imóvel se destine à residência familiar". [10]
Certo que o bem de família legal escuda o imóvel das execuções anteriores e simultâneas, porém, ao tempo, muitos já se encontravam penhorados, razão pela qual lançou o STJ a súmula 205 como o seguinte entendimento: "A Lei nº 8009/1990 aplica-se a penhora realizada antes de sua vigência ".
O fim pretendido pela Lei nº 8.009/90, ao garantir a impenhorabilidade do patrimônio mínimo, não é isentar o devedor de suas dívidas, mas, sim, assegurar a unidade familiar no seu conceito mais amplo o direito fundamental à moradia, grafado no art. 6º, da Carta da Primavera de 1988.
5 - LEI Nº 8009/1990 x Superior Tribunal de Justiça
O bem de família legal é indubitavelmente um dos temas que mais gera controvérsia no meio jurídico, cabendo ao Judiciário, constantemente adequar a interpretação do instituto a cada situação fática disposta ao seu crivo. E uma vez delimitada a análise da lei à hermenêutica do Superior Tribunal de Justiça, vê-se:
"A proteção conferida ao instituto de bem de família é princípio concernente às questões de ordem pública, não se admitindo nem mesmo a renúncia por seu titular do benefício conferido pela lei, sendo possível, inclusive, a desconstituição de penhora anteriormente feita. 2. A jurisprudência do STJ tem, de forma reiterada e inequívoca, pontuado que o benefício conferido pela Lei 8.009/90 trata-se de norma cogente, que contém princípio de ordem pública, e sua incidência somente é afastada se caracterizada alguma hipótese descrita no art. 3º da Lei 8.009/90... 3. A finalidade da Lei 8.009/90 não é proteger o devedor contra suas dívidas, mas visa à proteção da entidade familiar no seu conceito mais amplo, motivo pelo qual as hipóteses de exceção à impenhorabilidade do bem de família, em virtude do seu caráter excepcional, devem receber interpretação restritiva". [11]
Rubrique-se que todos os dispositivos da Lei nº 8009/1990 que versam sobre o bem de família se encontram enfrentados pelo Tribunal da Cidadania. Sucedendo aos dias a exegese ora elastecida em sua face protetiva, ora tolhida naquilo que já se encontra legalmente limitado quanto às possibilidades de seu afastamento.
5.1 - Da impenhorabilidade do bem de família
Para melhor compreensão, os itens não serão analisados por similaridade temática e não propriamente na ordem inscrita na lei.
São dispositivos da Lei nº 8009/1990 que cuidam da impenhorabilidade:
a) Art. 1º
"Art 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei".
Para a melhor reflexão, urge confrontar o art. 1º da Lei nº 8009/1990 com o art. 304, do CC:
"Art. 304 Qualquer interessado na extinção da dívida pode pagá-la, usando, se o credor se opuser, dos meios conducentes à exoneração do devedor.
Parágrafo único. Igual direito cabe ao terceiro não interessado, se o fizer em nome e à conta do devedor, salvo oposição deste".
O que se pretende com a impenhorabilidade do bem de família não é prevalecer o não pagamento das obrigações, mas assegurar um mínimo patrimonial capaz de prover mesmo em um momento de instabilidade financeira o direito à moradia.
"A interpretação teleológica do Art. 1º, da Lei 8.009/90, revela que a norma não se limita ao resguardo da família. Seu escopo definitivo é a proteção de um direito fundamental da pessoa humana: o direito à moradia". [12]
Em que pese o direito de o credor haver satisfeito seu crédito, optou o legislador em escudar a moradia do devedor e sua família consoante os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social e uma vez observado que o imóvel serve de residência à unidade familiar do devedor, surtem os efeitos da impenhorabilidade do imóvel, que só será afastada na ocorrência de alguma das hipóteses previstas na mesma lei nº 8009/1990.
Ponderou a Corte Superior:
"A Lei nº 8009 /1990, ao instituir a impenhorabilidade do bem de família, buscou proteger a entidade familiar, de modo a tutelar o direito constitucional fundamental da moradia e assegurar um mínimo para uma vida com dignidade dos seus componentes. Assim, quando um imóvel é qualificado como bem de família, o Estado reconhece que ele não será apto a suportar constrição por dívidas. É uma espécie de garantia a um estatuto mínimo de dignidade da pessoa e de sua família." [13]
- Como dito anteriormente, a dinâmica social sempre exige do Judiciário a atualização interpretativa dos fatos sociais resistidos e colocados ao seu provimento (art. 5º, da Lei nº 4657/1942). E com o instituto do bem de família não foi e nunca será diferente, tal como o dispositivo aqui detalhado, que de uma interpretação ampliativa de seu enunciado, considerou à impenhorabilidade à residência de irmão solteiros:
"Os irmãos solteiros que residem no imóvel comum, constituem uma entidade familiar e por isso o apartamento onde moram goza da proteção da impenhorabilidade, prevista na Lei 8009/90, não podendo ser penhorado na execução de dívida assumida por um deles". [14]
- Trilhando a esteira da exegese teleológica de ampliação do conceito de unidade familiar e aplicação da impenhorabilidade do Bem de família, o Tribunal da Cidadania equiparou a residência unipessoal, ou monoparental, à familiar. Resultando da perpetuação do entendimento a edição da súmula 364:
"Criado no ordenamento jurídico pátrio a partir da Lei 8.009 de 1990, o Bem de Família é, na verdade, o imóvel residencial da pessoa para a constituição de um lar, que se torna impenhorável para pagamento de dívida. O projeto 740, que deu origem à Súmula 364, foi relatado pela ministra Eliana Calmon, e teve por escopo alcançar pessoas solteiras, viúvas ou descasadas para estender a elas a tutela conferida ao bem de família em seu conceito mais tradicional". [15]
Diz o verbete que "o conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas". Ou seja, a exegese da regra da impenhorabilidade do instituto deve observar a finalidade que o norteia, qual seja, a manutenção da garantia de moradia e de subsistência como desdobramento do princípio basilar da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CR). Dessa forma, caso o imóvel pertencente a indivíduos solteiros, separados ou viúvos ter por objeto a própria residência, conclui-se pela aplicação do conceito de bem de família legal.
- De outra banda, entende a Instância Especial que quando se tratar de bem em nome de mais de dois membros da família, e um deles constituir dívida em uma das hipóteses elencadas no art. 3º, da Lei nº 8009/1990, só será impenhorável o bem em sua totalidade se o desmembramento da fração ideal não descaracterizar o imóvel.
"Como residência do casal, para fins de incidência da Lei n. 8.009/90, não se deve levar em conta somente o espaço físico ocupado pelo prédio ou casa, mas também suas adjacências. A própria lei afirma que "a impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza..."
II - Admite-se, no entanto, a penhora de parte do imóvel quando possível o seu desmembramento sem descaracterizá-lo, levando em consideração, com razoabilidade, as circunstâncias e peculiaridades do caso". [16]
Destarte, desde que possível a divisibilidade do imóvel sem desintegrá-lo, a fração destinada ao devedor responderá pela dívida, sem prejuízo do benefício da impenhorabilidade da fração ideal dos demais coproprietários.
3. Admite-se, excepcionalmente, a penhora de parte do imóvel quando for possível o seu desmembramento em unidades autônomas, sem descaracterizá-lo, levando em consideração, com razoabilidade, as circunstâncias e peculiaridades do caso. 4. No caso, o eg. Tribunal de origem destacou que "a questão da impenhorabilidade de parte ideal do imóvel indicado como bem de família foi corretamente afastada pela MM. Juíza a quo, tendo em vista que, conforme certidão expedida pela Prefeitura Municipal de Vinhedo, o imóvel comporta desmembramento". [17]
Para melhor visualização, atentaremos para dois momentos da Quarta Turma do Tribunal Superior ao enfrentar a penhora de parte do imóvel: