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Corpos dóceis fabricados em uma sociedade com punição seletiva

23/01/2023 às 18:20
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A seletividade da aplicação da lei descrita por Foucalt é confirmada pelos acontecimentos recentes no Brasil.

Os indivíduos são parte de uma realidade inventada da sociedade. Por meio de uma fábrica de pessoas, excluem, reprimem e censuram corpos. Dessa forma, os discursos, a sexualidade, os tipos de atividades realizados e a forma de gerir o tempo são modelados a partir de uma universalidade repressora. Logo, visa-se reduzir desvios a partir da constante fiscalização e regulação. (FOUCALT, 2021)

É por meio do poder disciplinar que multidões confusas são adestradas e o poder disciplinar tem êxito devido ao “olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico: o exame”. (2021, p. 167) Os indivíduos passam por processos de docilização dos corpos, sofrendo micropenalidades na escola, nos hospitais, no exército e nas fábricas. Além disso, são domesticados para serem úteis e suscetíveis ao controle. (FOUCALT, 2021)

O corpo é, portanto, treinado para ser dócil, submisso, aperfeiçoado e treinado. Como melhor exemplo, há o corpo de um soldado. Logo, há um treinamento militar ou cristão, em que todos são controlados em seus horários, elaboração temporal dos atos e formas de empregar o corpo. Diante disso, há um investimento político em detalhado do corpo, em uma microfísica do poder. (FOUCALT, 2021)

Dessa forma, “o corpo, tornando-se alvo dos novos mecanismos do poder oferece-se as novas formas de saber”. (2021, p. 152) O indivíduo é, portanto, “treinado, retreinado ou excluído” (2021, p. 187). O “corpo tornou-se um bem social, objeto de uma apropriação coletiva e útil”. (2021, p. 107). Além disso, foram também alvos de uma “metamorfose dos métodos punitivos a partir de uma tecnologia política do corpo onde se poderia ler uma história comum das relações de poder e das relações de objeto” (2021, p. 27)

No primeiro capítulo de “Vigir e Punir”, Foucalt descreve o tratamento dos corpos condenados. Inicia descrevendo os suplícios. Esses foram uma manifestação do poder de punir, sendo um espetáculo ritualizado de forma simbólica em que a forma de execução é semelhante à natureza do crime. Dessa forma, é uma representação do poder do soberano, já que esse pode decidir se vai fazer valer a lei ou suspender a pena. Durante a realização do suplício, o povo é tanto espectador, quanto receptor do medo. (FOUCALT, 2021)

Com o passar do tempo, os suplícios tornaram-se intoleráveis, e a justiça criminal passou a ter como objetivo punir em vez de vingar. Dessa forma, surgiram reformadores, como Beccaria e outros autores. De acordo com Foucalt, a reforma do direito penal tem mais a ver com o objetivo de ser mais eficaz e com menos custos. “Objetiva-se constituir uma nova economia e uma nova tecnologia do poder de punir” (2021, p. 88)

Michel Foucalt destaca a importância de analisar as práticas penais mais como um capítulo da anatomia política do que uma consequência das teorias jurídicas. (2021, p. 32) Segundo o autor, uma boa parte da burguesia aceitou a ilegalidade dos direitos, exceto quando se tratava de questões de propriedade. Logo, a economia das ilegalidades se reestruturou com o desenvolvimento da sociedade capitalista. (FOUCALT, 2021)

Diante da transformação da forma de punir no decorrer do tempo, o direito de punir se deslocou da vingança do soberano à defesa da sociedade. (FOUCALT, 2021) Logo, para entender a tecnologia da punição, o “prejuízo que um crime traz ao corpo social é a desordem que introduz nele. Logo, deve-se calcular uma pena em função não do crime, mas de sua possível repetição. Visar não à ofensa passada, mas à desordem futura”. (2021, p. 91-92)

É importante destacar que a punição torna-se uma arte que não visa de fato a repreensão, mas de disciplinar a sociedade. Logo, substituiu-se a semiótica punitiva para uma política do corpo. Nas prisões, cria-se formas de coerção de controle de todas as atividades do indivíduo, constituindo um aparelho do saber de sujeitos obedientes. (FOUCALT, 2021) Dos suplícios ao encarceramento, “onde desapareceu o corpo marcado, recortado, queimado, aniquilado do supliciado, apareceu o corpo do prisioneiro, acompanhado da individualidade do delinquente” (2021, p. 248)

Desde o início do século XIX, o encarceramento penal visa a transformação dos indivíduos e a privação de suas liberdades. Cabe destacar que em uma sociedade disciplinar, a vigilância é constante. Nesse sentido, cita-se o Panóptico de Bentham, que constitui-se em uma laboratório do poder, sendo um anel na periferia com uma torre no centro: todos os movimentos podem ser captados. (FOUCALT, 2021)

Ocorre que “não estamos nem nas arquibancadas nem no palco, mas na máquina panóptica, investidos por seus efeitos de poder que nós mesmos renovamos, pois somos sua engrenagens” (2021, p. 210) A criminalidade transformou-se em uma engrenagem do poder, que inclusive cria mais criminalidade. Ainda que se discuta que as prisões tenham falhado, ao contrário, elas concluíram o objetivo de explorar e ainda criar mais ilegalidades. (FOUCALT, 2021)

Diante disso, cabe destacar que de acordo com Foucalt, as ilegalidades foram inseridas em um horizonte político articulado com lutas sociais. Criou-se um imaginário de que os criminosos seriam apenas aqueles pertencentes a uma classe social específica. Dessa forma, as leis foram criadas especificamente para atingir “as classes mais numerosas e menos favorecidas. (2021, p. 270) Inclusive, é escrita de forma inadequada, pois não utiliza o discurso nem as palavras de todas as classes. Logo, a lei é excludente. (FOUCALT, 2021)

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Dessa forma, as prisões produzem ainda mais delinquência (2021, p. 272) e a ilegalidade “concentrada, controlada e desarmada é fadada a uma criminalidade violenta, cujas primeiras vítimas são muitas vezes as classes pobres, acoçada de todos os lados pela polícia, expostas a longas penas de prisão, depois de uma vida definitivamente especializada.” (2021, p. 273) Tendo em vista que Foucalt cita a seletividade penal e suas vítimas, cabe ser mencionado fatos recentes da história política brasileira.

No dia 08 de janeiro de 2023, terroristas bolsonaristas invadiram a Esplanada dos Ministérios. Os criminosos subiram a rampa do Congresso Nacional e depredaram os prédios. Enquanto isso, a reação da Polícia Militar do DF foi de conversar e tirar fotos com os criminosos.1 Além disso, abandonaram barreira para comprar água de coco, enquanto o Supremo Tribunal Federal era invadido.2

Enquanto no dia 08 de janeiro de 2023, a polícia foi amigável com terroristas de classe alta, a mesma foi agressiva e punitiva com manifestantes de classes mais baixas. Como exemplo disso, professores que reivindicaram melhores salários em 2015, foram atacados pelos policiais com bombas de efeito moral, spray de pimenta e tiros de borracha para liberar a via. Além disso, alguns foram jogados no chão e sofreram o golpe “mata-leão”; outros foram presos.3

Dessa forma, a seletividade da aplicação da lei descrita por Foucalt é confirmada pelos acontecimentos recentes no Brasil. É importa ainda destacar que aborda-se a exploração das ilegalidades, onde a existência das proibições legais incentivam as práticas, exercem controle e ainda tiram “lucro ilícito por meio de elementos ilegais, mas tornados manejáveis por sua organização em delinquância” (2021, p. 274)

Como exemplo de proibições que criam lucros ilícitos e que não possuem êxito, cita-se a criminalização do tráfico de drogas e do aborto. Quanto ao primeiro, Zaffaroni cita que o maior problema da droga continua a ser a punição (2013). Quanto ao segundo, Mendes afirma que a proibição do aborto não impede que as mulheres abortem, mas aumenta os casos de mortalidade. (2017)

Diante do exposto, a sociedade desde sempre foi estruturada por um poder que normatiza, regula e controla os corpos. Por meio da disciplina, objetiva-se que não haja diversidade de opiniões. Os corpos, quando dóceis, obedecem e são controlados para não serem múltiplos. Dessa forma, a estrutura política e social mantém-se com auxílio do direito, hierarquizada para que pobres sejam estigmatizados e sobrevivam com medo.

Importa, portanto, que a estrutura social seja questionada, de forma que os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, os corpos de negros, pessoas com deficiência, indígenas, lésbicas, bissexuais, gays, transexuais, pobres, gordos e gordas, e todas as pessoas invisibilizadas socialmente sejam respeitadas, com seus direitos garantidos e de forma que existam como pessoas que importam. Além disso, que o direito seja repensado de forma que realmente seja universal e aplicado para todas as pessoas, independente de sua classe social ou cor.


REFERÊNCIAS

FOUCALT, Michel. Vigir e punir: nascimento da prisão. 42. ed. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. 10ª reimpressão, 2021.

MENDES, Soraia. Criminologia Feminista – Novos Paradigmas. 2ª ed. Saraiva, 2017.

ZAFFARONI. Eugenio Raúl. Guerra às drogas e a Letalidade do Sistema Penal. R. EMERJ, Rio deJaneiro, v. 16, n. 63 (Edição Especial), p. 115 - 125, out. - dez. 2013. Disponível em: https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista63/revista63_115.pdf


1 Disponível em: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2023/01/08/policiais-do-df-sao-filmados-conversando-com-invasores-do-congresso-nacional.ghtml

2 Disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/policiais-do-df-abandonam-barreira-e-compram-agua-de-coco-enquanto-manifestantes-invadem-stf/

3 Disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/policiais-do-df-abandonam-barreira-e-compram-agua-de-coco-enquanto-manifestantes-invadem-stf/

Sobre a autora
Rafaela Isler da Costa

Pós-graduanda em Criminologia (Grancursos). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito e Justiça Social da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande (FADIR/FURG/RS). Representante discente do curso de Mestrado em Direito e Justiça Social - FURG. Pesquisadora bolsista da CAPES. Pesquisadora vinculada ao Programa Educación para la Paz No Violencia y los Derechos Humanos, al Núcleo de Pesquisa e Extensão em Direitos Humanos (Centro de Investigación y Extensión en Derechos Humanos) de la Facultad de Derecho de la Universidad Nacional de Rosário (Argentina) sob coordenação do Professor Dr. Julio Cesar Llanán Nogueira, com financiamento PROPESP-FURG/CAPES. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Direitos Humanos (NUPEDH/FURG) e do Grupo de Pesquisa do CNPq: DIREITO, GÊNERO E IDENTIDADES PLURAIS (DGIPLUS/FURG). Pós-Graduação em Direito Público. (LEGALE). Pós-Graduação em Direito Empresarial. (LEGALE). Pós-Graduação em Direito Tributário. (Damásio). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pelotas (UCPEL). CV Lattes: < http://lattes.cnpq.br/2927053833082820 E-mail: < [email protected]>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Rafaela Isler. Corpos dóceis fabricados em uma sociedade com punição seletiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7145, 23 jan. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/102153. Acesso em: 22 dez. 2024.

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