Legítima defesa policial e a efetiva incapacitação de ameaças

30/01/2023 às 12:11
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Introdução:

 A segurança pública é comumente associada ao estado de normalidade que combina o usufruto de direitos e o cumprimento de deveres, tem como tarefa do Estado oportunizar convivência pacífica e harmônica aos indivíduos, inafastável para a edificação de uma comunidade estruturada na paz e no bem comum de seus cidadãos. A eliminação da violência na sociedade é atribuição do Estado, que tomou para si o monopólio do uso da força, tornando-se, com isso, o guardião da ordem pública. 

O policial, enquanto agente estatal, deve ter a concepção de que sua atuação esteja adequadamente inserida no ordenamento jurídico pátrio. Além disso, é primordial não se desviar dos objetivos e fundamentos do estado brasileiro esculpidos na Constituição Federal.

 1.1 Legitima Defesa Policial: 

É possível pensar que a legítima defesa seja um recurso inerente à condição humana, acompanhando o homem desde seu nascimento, subsistindo durante toda vida, por ser natural o comportamento de defesa quando injustamente agredido por outra pessoa. Reconhece a prerrogativa de autotutela contra agressões injustas, logo, antecede o próprio Direito. 

Assim sendo, entende-se a legitima defesa como um direito natural, sempre aceita por praticamente todos os sistemas jurídicos, ainda que muitas vezes não prevista expressamente em lei. Constitui a causa de exclusão da ilicitude mais remota ao longo da história das civilizações. (MASSON, 2009, p. 378)

Contudo, embora sua antiga existência e absoluta importância, o instituto é comumente relegado ao descaso, merecendo apenas poucas páginas nas doutrinas processuais penais e, muitas vezes, analisados à luz de preconceitos e concepções errôneas apartadas da realidade fática. 

O art. 25 do CPP esclarece que o agente de legítima defesa é quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outra pessoa. Analisando esse dispositivo, revela-se a existência de requisitos legais cumulativos: agressão injusta, atual ou iminente, direito próprio ou alheio, reação com os meios necessários e uso moderado dos meios necessários.

Percebe-se, então, que o legislador brasileiro não adotou a possibilidade de fuga cômoda ou commodus discessus como requisito da legitima defesa, seria ela a fuga discreta, mais fácil, cômoda, de modo a evitar a contenda. Cabe à vítima decidir se enfrenta ou não o agressor, sem que corra o risco de ter a ilicitude de sua conduta reconhecida. (ALMEIDA, 2022, p. 21)

A agressão deve ser humana, conquanto perpetrada por inimputável ou mediante o uso de animais, deve ser injusta e estar ocorrendo ou em vias de acontecer. É imprescindível, também, que essa agressão seja grave o suficiente para se diferenciar de uma mera provocação, podendo ser praticada, inclusive, na forma omissiva (GRECO, 2015, p. 400).

O bem jurídico, próprio ou de terceiros, deverá ser protegido com o uso dos meios disponíveis, optando pelo menos lesivo dentre os capazes de rechaçar a agressão. A reação deverá ser proporcional à injusta agressão, mas não raras vezes uma pessoa agredia, acreditando agir em legítima defesa, acaba por ultrapassar o limite da razoabilidade. Ação que se iniciou legítima, passa ao campo da ilicitude, tornando-se conduta criminosa. Presente o excesso, o autor responde pelas lesões causadas ao bem jurídico ofendido.

Antes de qualquer coisa, quando se fala em proporcionalidade e meios necessários, é importante ter-se em mente que não é simples fazer um agressor motivado cessar seu ataque, como parecem nos filmes, em que com um único disparo um vilão é arremessado metros de distância. 

Importante a lição de Guilherme de Souza Nucci (2019, p. 659) de que a “legítima defesa não é a punição para o agressor, mas sim defesa de um direito”. Contudo, prossegue dizendo que no emprego de arma de fogo a moderação será baseada no número de disparos de tiros necessários para deter a agressão e, conquanto afirme que a reação de “uma pessoa normal” não pode ser medida por critérios matemáticos, incumbindo ao Poder Judiciário, com bom senso, a apreciação da questão.

Fernando Capez (2010, p. 311) induz que o número exagerado de golpes evidenciaria a imoderação, embora reconheça que a jurisprudência entenda não ser possível aferir de forma milimétrica sua medida. De forma mais razoável, Cleber Masson (2009, p. 588), afirma ser impossível calcular de forma rígida e matemática, no momento da agressão, a necessidade do meio utilizado. 

Rogério Greco (2015, p. 404) menciona ser necessário estabelecer como marco o momento em que de forma efetiva o defensor consegue fazer cessar a agressão injusta sofrida, somente aquilo que ultrapassar este ponto será considerado excesso. O número de disparos ou de golpes, por si só, não será simplesmente o fator preponderante para eventual imoderação, deverão ser analisadas todas as circunstâncias factuais. 

A relação entre a pluralidade de disparos, por si só, e a existência de excesso, tão massificada nos programas policialescos de televisão, encontra abrigo no que Alexandre Morais da Rosa trata como “Efeito CSI – Crime Scene Investigation – no processo penal”:

na sociedade do espetáculo em que ver e ser visto passou a ser o sintoma de toda uma geração, cada vez mais o senso comum invade os tribunais. Daí que se pode estudar os efeitos de programas policiais na compreensão do fenômeno criminal. (ROSA, 2015)

 Os supostos “especialistas” consultados pela mídia, muitas vezes, emitem pareceres apartados de qualquer conhecimento técnico e/ou jurídico, levando à condenação pública preliminar um cidadão que, buscando defender-se, efetuou tantos disparos quanto foram necessários para que a ameaça que buscava ceifar sua vida (ou de terceiros) fosse interrompida.

A doutrina de combate tem sustentado a chamada “resposta não convencional”, que consiste na realização de múltiplos disparos contra uma ameaça letal, visando a sua incapacitação imediata ou o mais próximo disso. A quantidade de disparos é definida pela resposta ou reação apresentada pelo alvo, devendo os fogos serem cessados somente após o agressor não constituir mais uma ameaça legal. (ESPERANDIO, 2015)  

 A Lei Federal n.º 13.964/2019 incluiu o parágrafo único no artigo 25, que trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro a figura da “legítima defesa protetiva”, pela qual considerar-se-á em legítima defesa o agente de segurança pública que, observando os já citados requisitos do “caput”, repele agressão ou risco de agressão a vítima refém durante a prática de crimes. (MORAIS, 2022, p. 100) 

Nesse contexto se insere a figura do tiro de comprometimento policial, que não está adstrito à figura do sniper, mas para qualquer policial que tenha, diante de si, uma ocorrência em que uma vítima é feita refém sob o risco de agressão.  

Tendo em mente que o mote principal do Estado é a preservação da vida, conquanto, o disparo com intenção de neutralização do elemento deve ser visto como alternativa tática, última na disciplina do gerenciamento de crises, quando a escalada da violência se tornou insustentável ou quando esgotadas as possibilidades de solução de crimes por outros meios. O ataque protetivo deve ser feito buscando a incapacitação imediata do agressor e a preservação da vida do inocente. (LESSA, 2019) 

 1.2 Legislação e normas atinentes ao porte e utilização de armas

 Entre as tantas idas e vindas na legislação de armas do Brasil, atualmente existem quatro espécies de porte de armas de fogo no país: funcional, para caça de subsistência, para defesa pessoal e para trânsito de caçadores, atiradores e colecionadores. Dentre as espécies mencionadas, o porte funcional dos policiais é prerrogativa conferida ao agente em razão da natureza da função pública exercida, que possui inerente risco a quem a exerce. 

O artigo 6º da Lei Federal n.º 10.826/2003 determina ser proibido o porte de arma em todo território nacional, excepcionados os casos previstos em legislação própria, entre os quais estão a Força Nacional de Segurança Pública e os órgãos de segurança pública previstos no artigo 144 da Constituição Federal. O parágrafo primeiro do artigo 6º do famigerado “Estatuto do Desarmamento” institui que as pessoas previstas nos incisos I, II (policiais), III, V e VI terão direito a portar arma de fogo de propriedade particular ou fornecida por sua instituição, mesmo que fora de serviço, nos termos do regulamento da Lei, com validade em âmbito nacional para os constantes dos incisos I, II (policiais), V e VI. Portanto, o direito ao porte de arma do policial é uma regra de abrangência nacional.

O Decreto Federal n.º 9.847/2019, disciplinando essa regra geral, previu em seu artigo 29 que os órgãos, instituições e corporações referidas nos incisos I, II, III, V, VI, VII e X do “caput” do artigo 6º da Lei Federal n.º 10.826/2003 (entre os quais se inserem todas as polícias do Brasil) estabelecerão, em normas próprias, os procedimentos relativos às condições para a utilização de armas de sua propriedade particular, ainda que fora do serviço.

O porte de arma de fogo do policial civil no Estado de São Paulo é normatizado administrativamente pela Portaria DGP n.º 40/2014, que, em seu artigo 8º determina que o policial civil, em razão da natureza de suas funções institucionais, está autorizado a utilizado, no efetivo exercício da atividade policial ou fora do horário de trabalho, arma de fogo de sua propriedade ou pertencente à Polícia Civil, em qualquer local público ou privado, mesmo havendo aglomeração de pessoas, em evento de qualquer natureza.

Reside grande polêmica na utilização da expressão “fora de serviço”, o que exige cautela em sua interpretação. Conforme alerta Marcelo de Lima Lessa (2019), o policial, dada sua peculiar condição profissional, jamais está, literalmente, fora de serviço. Poderá ele estar em horário de folga, em gozo de férias ou licença, mas não perderá a condição policial e as prerrogativas de seu cargo. 

Nessa esteira, o Código de Processo Penal, no artigo 301, reza que as autoridades policiais e seus agentes deverão (ou seja, estão obrigadas) a prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito. Essa regra não diz que o policial deverá assim agir somente em horário de serviço; portanto, não é facultada ao policial a prerrogativa de omitir-se diante de prática de infração penal sob a escusa de encontrar-se em folga. 

Enquanto é dever a ação em face do crime por parte do membro de segurança pública, ao cidadão trata-se de mera faculdade. Deste modo, não parece razoável as falácias sustentadas por alguns acerca da limitação do porte de arma do servidor da segurança pública em seu período de “folga”:

Quem o faz se esquece que o operador de segurança tem o dever de ofício de agir mesmo não estando em serviço, atuando como garante dessa segurança pública mesmo fora do horário de expediente. Isso além de garantia de maior atuação desses servidores, mesmo fora do expediente quando flagram a ocorrência de um delito, é aumento de risco para esse operador, que não pode enfrentar essa situação desarmado. A isso se soma o fato de que a exposição do serviço ao risco natural da atividade coloca esse servidor em exposição quando fora do expediente, do que nada mais justo que a manutenção do porte de arma (LARA, 2022, p. 141).

 No âmbito da Polícia Civil do Estado de São Paulo, o artigo 44 da Lei Complementar n.º 207/1979 estabelece o regime especial de trabalho policial, que caracteriza pelo cumprimento de horário irregular, sujeito a plantões noturnos e chamados a qualquer hora. Assim, se um policial civil está sujeito a ser acionado a qualquer momento, do dia ou da noite, é lógico que ele, mesmo estando em folga, deverá estar em prontas condições de dar a resposta pretendida, fazendo uso de todos os instrumentos que a lei o autoriza a usar, como, no caso, sua arma de fogo.  (LESSA, 2019)

Ainda tratando da Polícia Civil bandeirante, a Portaria DGP nº 40/2014, art. 8º, §1º, impõe que o policial civil observe o teor dessa importante norma administrativa e a legislação correlata, respondendo nas esferas penal, civil e disciplinar por eventuais excessos, devendo trazer consigo:

a)    carteira funcional;

b)    em se tratando de arma de carga pessoal o registro expedido pelo Departamento de Administração da Polícia Civil;

c)    em se tratando de arma de carga da unidade em que se encontra lotado, a cópia do documento de seu recebimento;

d)    no caso de arma de fogo particular, o respectivo registro.

Ademais, por força da Portaria DGP n.º 28/1994, as autoridades policiais e seus agentes devem permanentemente portar sua cédula de identificação funcional, distintivo, arma e algemas, mesmo que fora de seu horário normal de trabalho, pois é obrigado a intervir em qualquer ocorrência de Polícia Judiciária que tenha conhecimento, adotando as medidas pertinentes ao caso em questão. Acrescenta, também, que os condutores de viaturas caracterizadas deverão estar obrigatoriamente armados, não podendo se eximir de prestar auxílio a quem dele necessitar, em nenhuma hipótese, sob pena de responsabilização. Acerca das normas relativas ao uso de viaturas no translado da casa do policial para sua unidade de trabalho, vide a Portaria DGP n.º 31/2011.

A carteira de identidade funcional, nos termos do Decreto Estadual n.º 62.945/2017, é válida como prova de identidade civil e garante ao policial civil o porte de arma, nos termos da legislação federal. Desde 2021, foi estabelecido, na Portaria DGP n.º 02/2021, novo modelo de cédula funcional e distintivos aos policiais civis do Estado de São Paulo, seguindo o padrão nacional imposto na Portaria n.º 885/2019 do Ministério da Justiça e Segurança Pública e artigo 43 da Lei Federal n.º 13.675/2018. Os modelos de porta-distintivos e complementos de vestuário devem seguir aos ditames do “Manual de Identidade visual da Policia Civil”, instituído pela Portaria DGP n.º 92/2019.

Em trânsito ou em gozo de férias ou licença prêmio, o policial civil paulista poderá portar arma de fogo em todo território nacional, respeitando a legislação pertinente, conforme artigo 4º da Portaria DGP n.º 30/2010, alterada pela Portaria DGP n.º 55/2011.

A responsabilização do policial pelo mau uso de seu armamento ou mesmo do exercício irregular de sua prerrogativa do porte da arma de fogo poderá acarretar responsabilizações nos âmbitos civil, penal e administrativo, ficando sujeito, cumulativamente, às respectivas cominações (artigo 65 da Lei Complementar n.º 207/1979). 

Na esfera administrativa, as penas disciplinares aplicáveis aos policiais civis de São Paulo são: advertência, repreensão, multa, suspensão, demissão, demissão a bem do serviço público e cassação de aposentadoria ou disponibilidade. Para a dosimetria das penas disciplinares, levar-se-á em conta natureza, gravidade, motivos determinantes, repercussão da infração, danos causados, personalidade, antecedentes do agente, intensidade do dolo ou grau de culpa (artigos 67 e 69 da Lei Complementar n.º 207/1979).

Embora sejam regras administrativas, foram editadas em obediência a mandamento legal, que determinou que deveriam ser as próprias administrações das Polícias que regulamentariam a questão do porte de arma fora do horário de serviço. Destarte, ao editarem regramentos administrativos, estão apenas disciplinando o que a lei já autorizou anteriormente. Portanto, a contrariedade a estes mandamentos pode configurar, de forma reflexa, o desrespeito ao que determina a Lei Federal n.º 10.826/2003 e o Código de Processo penal, o que acarretaria, em tese, a responsabilidade penal pelo crime de desobediência, artigo 330 do Código Penal.

É bom lembrar que, por força da Portaria DGP n.º 40/2014, o policial não está obrigado a entregar sua arma ou respectiva munição como condição para ingresso em recinto público ou privado. Contudo, deverá comunicar o porte de arma ao responsável pela segurança do local que está ingressando, que deve ser feito de forma discreta e mediante apresentação da carteira funcional, nos termos da Portaria n.º DGP n.º 30/2010. Marcelo de Lima Lessa (2019) alerta que o policial não deverá entregar sua arma de fogo a quem quer que seja, nem a deixar em cofres particulares, sob pena de responder por eventual mau uso ou inadequada destinação dela.

Em regra, o policial civil somente poderá ser desarmado em nove hipóteses:

a)    Quando submetido a prisão;

b)    Durante audiência judicial (a critério do juiz);

c)    Por ordem de Delegado de Polícia superior hierárquico;

d)    Por determinação de autoridade corregedora (as quatro pela DGP-40/14);

e)    Nos casos previstos na Res. SSP-75/20;

f)     Em curso de procedimento disciplinar, quando houver conveniência para a instrução ou para o serviço policial, por ordem de Delegado Geral (art. 86, III, Lei Orgânica da Polícia);

g)    A partir da expedição de guia médica por suspeita de problemas de saúde mental (Portaria DGP n.º 10/07);

h)    Excepcionalmente, no embarque em aeronaves (Resolução Agência Nacional Controle da Aviação Civil n.º 461/18);

i)     Se autor de violência doméstica (Lei Federal nº 11.340/06).

Em relação ao embarque armado em aeronaves, a Portaria DGP n.º 40/2014 diz que deverão ser observadas as regras da Agência Nacional de Aviação Civil, que, por sua vez, editou a Resolução ANAC n.º 461/2018 a qual preconiza, como regra geral, ser proibido o embarque armado, com exceção nas atividades de escolta de autoridades, testemunhas ou passageiro custodiado, na execução técnica de vigilância ou no deslocamento após convocação para se apresentar em aeródromo de destino preparado para o serviço, em virtude de operação que possa ser prejudicada se a arma e munições forem despachadas. Mesmo nas exceções, deve haver comprovação da necessidade e autorização da Polícia Federal para no máximo duas armas curtas, desmuniciadas e acompanhadas de munição limitada a uma carga principal e duas reservas para cada arma.

Pelas Portarias DGP n.º 30/2010, art. 2º, e Portaria DGP n.º 40/2014, art. 10, as armas deverão ser portadas pelo policial, no exercício de sua função, de forma discreta e dissimulada, especialmente em locais de grande aglomeração de pessoas, evitando constrangimento a terceiros, salvo quando em operação policial, trajando vestimenta e distintivo que o identifique como tal. No exercício de atividades investigativas e de inteligências dissimuladas (campanas) ou quando o policial estiver sozinho em sua folga, é altamente recomendável o uso velado de seu armamento.

Em face da condição funcional do policial civil, a Portaria DGP n.º 30/2010, em razão da alteração estabelecida pela Portaria DGP n.º 06/2012, autoriza que sejam portadas armas de qualquer calibre que esteja legalizada e registrada nos órgãos federais competentes e na efetiva equivalência de sua habilitação técnica, nos termos da Portaria DGP n.º 12/2008.

Armas particulares poderão ser usadas em serviço, desde que observada a habilitação técnica e normas estabelecidas pelo Exército Brasileiro; porém, deverá ser precedido de prévia análise dos requisitos pela Divisão de Serviços Diversos do Departamento de Administração da Polícia Civil e digitalização dos seguintes documentos junto ao Sistema de gestão Policial Integrada: requerimento do interessado, com expressa anuência do Delegado de Polícia titular da unidade a que estiver subordinado; registro válido da arma de fogo no Cadastro Nacional de Armas (SINARM); comprovação da equivalência de sua habilitação técnica. Entretanto, não poderão ser utilizadas munições particulares, sendo obrigatório o emprego de munição operacional adquirida pela Polícia Civil, salvo quando houver indisponibilidade do calibre (Portaria DGP n.º 61/2021).

No que se refere à habilitação técnica para uso de armas de fogo, a capacitação do policial civil se dará por meio de cursos disciplinados pelo Delegado de Polícia Diretor da Academia de Polícia, seguindo a seguinte estruturação, nos termos da Portaria DGP nº 30/2010, artigo 7º:

a)    Habilitação operacional “OP I” - para revólveres;

b)    Habilitação operacional “OP II” - para revólveres e espingardas;

c)    Habilitação operacional “OP III” - para revólveres, espingardas e pistolas;

d)    Habilitação tática “TAT I” - para carabinas e submetralhadoras;

e)    Habilitação tática “TAT II” - para fuzis e similares;

f)     Habilitação para emprego estratégito “ESTRAT” - exige habilitação anterior em nível “TAT II” para que seja habilitado ao tiro de comprometimento.

 Em que pese a inegável necessidade de treinamento e aperfeiçoamento constantes, por força da Portaria DGP n.º 30/2010 (alterada pela Portaria DGP n.º 35/2015), para manutenção dos níveis de habilitação “TAT I” e “TAT II”, o policial deve submeter-se a treinamentos da Academia de Polícia, conforme a disponibilidade de recursos, facultativamente a qualquer tempo ou por indicação da Diretoria do Departamento no qual estiver classificado. Já para a manutenção do nível “ESTRAT”, o policial deve, também, participar de treinamento da Academia, facultativamente a qualquer tempo, atendendo à disponibilidade ou por indicação de sua Diretoria Departamental.

Atualmente, a Portaria DGP n.º 61/2021 estabelece que ao policial civil é concedida uma única carga pessoal definitiva de arma de fogo. Excepcionalmente, aquele que exercer função operacional especial ou tática poderá utilizar mais de uma arma de fogo de porte, mediante carga tática, que será atribuída pela unidade policial onde estiver subordinado. Como função operacional especial ou tática, entende-se aquela que for executada no Serviço Aerotático (SAT), Grupo Armado de Repressão a Roubos (GARRA), Grupo Especial de Reação (GER) ou Grupo de Operações Especiais (GOE).

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Uma delicada situação é a abordagem entre policiais. Em razão de constantes problemas, a Secretaria de Segurança Pública editou a Resolução SSP n.º 75/2020, que disciplina os procedimentos a serem adotados, que serão pautados nos princípios da dignidade da pessoa humana, impessoalidade e estrita legalidade. Sendo que a não observância dos regramentos impostos, ensejarão responsabilização administrativa e criminal.

O policial envolvido, na ocorrência, deve agir com urbanidade, colaboração e respeito mútuo, verbalizar os comandos de maneira clara e inteligível, identificar-se como policial pelos meios disponíveis (verbalização, vestimenta, viatura, distintivo, sinais sonoros e luminosos) e efetuar a conferência da documentação na abordagem.  Após a confirmação da qualidade de policial, os documentos serão restituídos, a ocorrência será encerrada, havendo comunicação ao superior hierárquico do ocorrido, realizando os registros próprios de sua Instituição. Depois da entrega da carteira funcional e sua comprovação, o policial abordado não será desarmado nem submetido à busca pessoal, salvo em situações excepcionais, que deverão ser justificadas por escrito ao final da ocorrência e reportadas, de forma imediata ao superior hierárquico.

Uma vez abordado, este policial, por sua vez, deverá obedecer aos comandos, identificar-se por meio de sua documentação funcional, que será, obrigatoriamente, entregue ao policial que realiza a abordagem. Deve, também, informar quantas armas porta e os locais onde se encontram, mantendo suas mãos afastadas do armamento sem gestos brutos. Caso esteja em serviço investigativo ou velado, o policial abordado deverá reportar essa circunstância, imediatamente, de modo a evitar prejuízo ao trabalho.

Caso não esteja portando a identidade funcional, será realizada a imediata busca pessoal e o consequente desarmamento, permanecendo sob vigilância até que sobrevenha a informação que comprove ser, realmente, policial. Por serem medidas excepcionais, a Resolução determina que somente serão realizadas quando o abordado se recusar a obedecer às ordens de comando (principalmente a entrega da carteira de identificação funcional), quando não estiver portando a funcional ou não for possível constatar sua qualidade de policial e quando o abordado apresentar sinais de descontrole físico, emocional ou comportamento agressivo. Sendo realizada a busca pessoal e o desarmamento, o ocorrido deverá ser comunicado, prontamente, ao escalão superior de ambas as instituições.

No que se refere às diretrizes de registro, distribuição e controle de armas de fogo, coletes de proteção balística e munições da Polícia Civil, vale observar as normas instituídas pela Portaria DGP n.º 61/2021.        

2. Armas como instrumento de incapacitação legítima:

 A tarefa de neutralizar um agressor e fazer cessar um ataque injusto não é simples, ao contrário, é complexa e as circunstâncias naturalmente estressantes do momento, conjugadas com a violência perpetrada de forma abrupta, faz com que as decisões tenham de ser tomadas de forma extremamente rápida. O combate é condição agressiva por si só, momento de luta pela sobrevivência quando os preparos técnico, físico e psicológico, bem como o controle das respostas fisiológicas do corpo humano, serão de total preponderância para determinar quem sairá vivo do embate. 

 2.1 Confronto armado e tiro de combate

 O estudo das técnicas de combate armado deve revestir-se de caráter multidisciplinar, abordando os aspectos da fisiologia humana, psicologia, medicina letal, balística, técnicas de tiro propriamente ditas e noções de Direito. A sobrevivência jurídica do indivíduo também deve ser garantida, pois ele deve estar apto a reconhecer se age na legalidade, por isso, as técnicas treinadas devem ser compatíveis com o ordenamento jurídico.

Além disso, é de fundamental importância a análise dos cenários reais de confrontos armados, como estudo de caso, para aperfeiçoamento e desenvolvimento de doutrinas operacionais legitimamente voltadas à realidade das ruas e não apenas para estandes de tiro em papel. Dessa forma, os treinamentos armados voltados à neutralização de oponentes devem ser focados na técnica, o fator estresse será inoculado de forma a aproximar à realidade, porém, sem se perder o controle da segurança jamais. 

Rubens Salles Pereira Orrin (2021, p. 258), professor da Academia de Polícia do Estado de São Paulo, elenca diretrizes a serem observadas no combate, configurando um conjunto de estratégias voltadas para a neutralização do oponente e a sobrevivência do agente, um pacote de pronta resposta adaptável ao cenário e à quantidade de agressores, em que deverão ser seguidos os seguintes procedimentos:

a) Posição de espera, alerta e detecção de ameaça;

b) Ameaça confirmada e início da ação de confronto;

c) Confronto estabelecido;

d) Movimentação;

e) Neutralização do oponente;

f) Protocolos pós-confronto.

 O “triângulo de combate”, criado por Jeff Cooper (apud ORRIN, 2021, p. 259), proclama que a supremacia de um indivíduo em uma situação de combate armado se dá quando este tem em sua mente a habilidade do tiro, do manuseio de sua arma de fogo e o preparo psicológico para a situação específica quando do início do embate. Em complemento, o “código de cores”, também pensado pelo mesmo autor, faz com que seja possível visualizar estados de alerta vivenciados antes da decisão pela reação fuga: branco (desatenção e despreparo); amarelo (atenção genérica ao ambiente); laranja (atenção a um alerta específico); vermelho (condicionante da luta ou fuga).

O processo de tomada de decisões é inerente ao combate, não só em seu início, através da opção pela luta ou fuga, mas também no seu transcorrer, quando o combatente deverá escolher entre o ferramental técnico e procedimental que possui, as melhores alternativas que lhe levarão ao triunfo diante de seu algoz. 

John Boyd (apud FERREIRA, 2019, p. 13), famoso estrategista militar americano, desenvolveu o chamado “Ciclo OODA” (ou “Ciclo de Boyd”). Descreve que qualquer processo decisório humano em sua interação com o mundo é caracterizado por uma sequência lógica de ações, conscientes ou não, são elas: observar, orientar, decidir e agir. Sendo a incapacitação do oponente o propósito principal de qualquer enfrentamento, as decisões deverão ser tomadas de modo a que seja trilhado o caminho mais rápido, efetivo e legítimo para que este mote seja atingido. 

As deliberações e cautelas de combate serão tomadas com base nos conhecimentos prévios do agente e devem ser decididas com cuidado desde o início até a certeza de que a ameaça foi neutralizada e a segurança foi restabelecida. Nesse contexto, insere-se o “Protocolo Wyatt”, combinação de ações ordenadas que visam garantir a segurança ao final de um confronto, mantendo o combatente em condição de pronto emprego, caso a ameaça continue ou surjam novas. Segundo Esperandio (2020), trata-se de uma sequência lógica em ciclo, tendo em vista a possibilidade de haver necessidade de um novo confronto, consubstanciada no acrônimo “FAST”, que significa: 

Fight” (lutar): uso de todas as técnicas e estratégicas de combate para salvar sua vida.

Acess” (acompanhar): certificar que o oponente não representa mais ameaça.

Scan” (varredura): garantir que não há outra ameaça à sua volta.

“Top-off” (preparo): deixar seu equipamento pronto para repelir nova ameaça.

No livro “Estudo de Caso: Planejamento e Métodos”, o cientista social Robert K. Yin (2014, p. 57) define o estudo de caso como uma estratégia de pesquisa que responde às perguntas “como” e “por que”, focando em contextos da vida real de casos atuais. Trata-se de uma investigação empírica que compreende um método abrangente, com coleta e análise de dados. Isso foi o que ocorreu nos Estados Unidos da América na década de 1970, quando se percebeu a necessidade da evolução em relação a técnicas de tiro de combate. Uma vez que foi neste período em que ocorreram mais mortes policiais em confronto, obrigando a uma mudança de paradigmas e fundamentos. 

A posição “Weaver” tem por concepção a diminuição da silhueta do operador, através de sua lateralização, utilização de empunhadura dupla e visada adequada. Entretanto, mais uma vez através de estudos de casos, viu-se que, com a utilização cada vez maior de coletes balísticos, a lateralização comprometeria a integridade do atirador, pois ele ofereceria ao oponente uma área com menor proteção, a lateral de seu corpo.

No caso da posição “isóceles”, apesar da frontalidade do combatente, a flexão acentuada dos joelhos, em consonância com a ergonomia dos braços em relação ao ombro e tronco, geravam instabilidade e reduziam a velocidade de movimento. Esse engessamento do atirador era causador de muitos problemas na realidade fática, dada à fluidez e fugacidade dos combates urbanos (ORRIN, 2021, p. 260/261).

Ao longo dos anos e com o incremento dos enfrentamentos armados, as técnicas foram sendo adaptadas e aprimoradas por operadores de todo mundo, chegando ao que hoje se denomina de “postura tática” ou de “combate”, que consiste em um pequeno afastamento anteroposterior das pernas do atirador; porém, mantendo o tronco voltado para o alvo. Preconiza Silveira (2013) sobre a movimentação, que deve ser alinhada com a ergonomia corporal, prestigiando a geometria alinhada à funcionalidade do corpo humano, em conjunto com sua utilização conforme os equipamentos escolhidos pelo operador, a continuidade da cobertura do atirador pela veste balística. Essa técnica é a mais utilizada por grupos táticos modernos.

Não é o objetivo deste trabalho pormenorizar e esgotar todas as possibilidades de posições e técnicas de tiro, porém este apanhado foi abordado como demonstração de que o estudo e desenvolvimento de técnicas de tiro e de combate não podem ocorrer simplesmente em estantes de tiro, em ambientes serenos, desligados da realidade, preconizando muito mais a plasticidade dos movimentos do que a simplicidade, aplicabilidade prática e efetividade.

Os confrontos da I Guerra Mundial, no início do século XX, demonstraram os males causados por estas experiências extremas vivenciadas pelos militares e as consequências fisiológicas e psicológicas que causaram graves transtornos nos sobreviventes. Percebeu-se, nas décadas que se seguiram, a necessidade do desenvolvimento do que convencionou-se chamar de “mentalidade de combate”, uma maneira de focalizar a frequência mental do combatente em vencer o confronto, o que fez a psicologia comportamental tornar-se mais uma importante ferramenta de instrução. 

As forças de segurança de Israel, um país marcado fortemente pelos conflitos e pela preocupação da nação com a preparação de toda população para a sobrevivência em situações adversas, desenvolveram uma filosofia denominada Kadima, na qual, através do treinamento especializado, é possível incutir na mente dos combatentes a rapidez, não recuar, agir com exatidão e o encontro com o oponente. Essa frequência mental é percebida na forma como se postam para a batalha, empunham armas de fogo, lutam desarmados, caminham e no desenvolvimento de suas estratégias. (ORRIN, 2021, p. 264)

Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo:

A Marinha dos Estados Unidos da América possui um programa de instrução onde o condicionamento mental é desenvolvido através de treinamentos para a aquisição de um estado de alerta que prepara o fuzileiro a operar efetivamente diante de situações estressantes e sob risco de vida. Assim, o treinamento busca aproximar-se, o máximo possível, da situação real, de modo a criar familiaridade. Cheiro, barulho, ambiente, imagens e estressores devem ser os mais próximos do encontrado no combate. A condição física também é preponderante, a manutenção de um condicionamento físico elevado é parte de uma mente combativa, pois um corpo forte resulta em mente forte. (BRACAGIOLI, 2019, p. 20-25)

Os estudos de David Grossman, demonstrados em seu livro “On Killing – the psychological cost of learning to kill in war and society” (apud BRACAGIOLI, 2019, p. 49), vão no mesmo sentido:

Treinamento moderno utiliza a técnica de condicionamento operante de Skinner para desenvolver um condicionamento de combate no soldado. Esse treinamento aproxima-se o máximo possível do combate. O soldado permanece em uma trincheira com todo seu equipamento enquanto alvos humanoides aparecem brevemente em sua frente. Estes são estímulos que estimulam o comportamento de atirar. Se o alvo é atingido, imediatamente cai.

 O condicionamento operante de Skinner, referido acima, é uma forma de aprendizagem em que o reforço e a punição são utilizados como forma de estabelecer as chances de um comportamento ser (ou não) repetido no futuro. O reforço, que pode ser positivo ou negativo, tem como objetivo ensinar e reforçar um determinado comportamento. O indivíduo aprende qual o comportamento desejável para alcançar um determinado objetivo. Já a punição reforça qual o comportamento indesejável, ou seja, que não deve ser manifestado. Para Rocha et al. (2020), a natureza desse processo, desenvolvido pelo psicólogo experimental Burrhus Frederis Skinner, é determinante para moldar a postura de um indivíduo.

Em um confronto armado, aquele que tem mente e corpo preparados para o conflito e que antecipa suas ações, ataca com energia, em economia de movimentos e com consciência situacional, converte uma situação reativa em ativa e sairá vitorioso. 

 2.2 O mito do sttopping power

 A expressão sttopping power ou poder de parada surgiu para designar o poder de incapacitação de um ser vivo por um projétil de arma de fogo. Para Domingos Tocchetto (2021, p. 294), o poder de incapacitação seria “a capacidade que o projétil possui, durante o impacto, de incapacitar uma pessoa ou animal, instantaneamente, impedindo que continue a fazer o que estava fazendo no momento do impacto”, sendo que, para ele, “instantaneamente” significaria dentro de um a dois segundos. 

Os primeiros autores que trataram do poder de parada fixaram o valor de 13 kgm como sendo a energia capaz de deter um homem, mesmo não atingindo uma área vital. Os estudos de Evan Marchal e Sanow (apud TOCCHETTO, 2021, p. 295), realizados ao longo de 15 anos, consideravam que um projétil possui poder de parada ou de incapacitação:

[...] quando a vítima/oponente atingido pelo projétil entra em colapso antes de produzir algum tiro, estocada ou pancada, ou de expressar uma reação de ataque ou defesa, não podendo se deslocar mais do que três metros antes de entrar em colapso.

Segundo essa teoria, os projéteis com maior poder de parada seriam aqueles que ocasionariam danos mais severos aos suprimentos de oxigênio levado pelo sangue ao cérebro. Portanto, os projéteis que mais afetariam o ser humano seriam aqueles que ocasionam maiores danos ao sistema vascular ou ao sistema nervoso e produzem maior cavidade permanente.

Nessa linha, Tochchetto (2021) afirma que projéteis com satisfatório poder de parada são aqueles que penetram 10 a 12 polegadas no corpo humano, sem transfixá-lo, para que toda sua energia cinética seja transferida ao corpo atingido.

Existem muitos mitos relacionados ao famigerado stopping power, visões errôneas oriundas de filmes de ação e de séries televisivas, nas quais o alvejado pelo projétil de arma de fogo “voa” metros para trás após ser atingido, ignorando totalmente as leis da Física. 

Para real compreensão do tema, é necessário entender o comportamento dos projéteis no corpo humano e suas consequências. Por possuírem massa e velocidade, os projéteis carregam energia cinética ou energia de movimento, que é a forma de energia que um corpo possui em razão de seu movimento. Quando uma força não nula é aplicada sobre um corpo, está sendo realizado trabalho sobre ele, que fará com que este adquira energia cinética à medida que sua velocidade aumenta. É o que ocorre quando do disparo de arma de fogo. Quando o percutor atinge a espoleta deflagradora da munição, sua explosão produz a queima do propelente e a expansão destes gases, impulsiona o projétil pelo cano da arma de fogo, que vai ganhando velocidade até abandonar a boca do cano. Ao chocar-se contra o alvo, parte ou toda a energia cinética se dissipa em outras formas de energia, como calor (energia térmica), som (energia sonora), deformação de tecidos (energia potencial elástica), sendo esta última a principal causadora de lesões. (SILVINO JÚNIOR, 2021, p. 27-28)

Quando penetra, o projétil atua de forma diferente de outros instrumentos, os quais agem deslocando minimamente os tecidos próximos à região atingida. Os projéteis de armas de fogo produzem, além da lesão em si, uma onda de choque ao empurrarem os tecidos, em ação contínua de compressão e esmagamento, que se desloca radialmente à medida que avançam pelo tecido corpóreo. Com isso, mesmo tecidos não diretamente atingidos, acabam por perceber a ação, mas não sofrem lesões, pois existem órgãos e tecidos elásticos, ou seja, que têm a capacidade física de se esticarem quando da onda de choque e retornarem à condição em que se encontravam anteriormente sem sofrerem danos.

A elasticidade dos tecidos humanos varia em razão da existência de fibras mais resistentes e com maior elasticidade que órgãos que possuem mais água. Por exemplo, o baço é muito mais elástico que os ossos, que se quebram ao invés de expandirem. 

A ação de um projétil de arma no corpo pode ser dividida em dois momentos. O primeiro quando a energia ainda está se dissipando nos tecidos, gerando a chamada “cavidade temporária”, e outro após a estabilização dos tecidos em sua acomodação depois da penetração, que é chamada de “cavidade permanente”. 

A cavidade temporária é todo movimento de expansão e reacomodação dos tecidos, ocorre em fração de segundos, sua duração e raio de expansão irá depender de uma série de fatores (região atingida, formato e velocidade do projétil etc.). Para Vicent Di Maio (2016, 2021, p. 47), patologista e perito em ferimentos causados por armas de fogo, a expansão ocorre entre 5 e 10 milésimos de segundo para os calibres de armas curtas.

De acordo com Alexandre Pinto de Oliveira (2021, p. 27/29), a técnica do Double Tap, criada pelos britânicos Willian Ewart Fairbain e Eric Anthony Sykes, chefes da Polícia Municipal de Xangai no início do século passado, consiste em efetuar dois disparos sequenciais, rápidos e precisos, como modo de se neutralizar o agressor com excelente probabilidade de sucesso. Os entusiastas desta técnica defendem que ao atingirem o alvo duas vezes em pontos de impacto bem próximos, de 02 a 05 polegadas, isso dobraria as cavidades temporárias e combinaria os canais da lesão permanente, causando maior trauma e sangramento. 

Relacionando a conclusão dos estudos de Vicent Di Maio colocada acima, vê-se que para a técnica fazer sentido, o atirador deveria efetuar os dois disparos durante o intervalo de tempo de duração da cavidade temporária (0,005 a 0,010 segundos). Porém, há uma total impossibilidade de um ser humano, por mais treinado que seja, de acionar o gatilho nesta velocidade, pois um bom atirador consegue acionar 04 vezes o gatilho em 01 segundo o que daria 01 disparo para cada 0,25 segundos, tempo absolutamente insuficiente para aproveitar a primeira cavidade temporária gerada (OLIVEIRA, 2021, p. 30). 

A cavidade permanente será a lesão final propriamente dita, ou seja, o resultado final da passagem do projétil após a reacomodação dos tecidos. Logo, sempre será menor que a cavidade temporária. Quando a velocidade do projétil for insuficiente para lesar danos pela cavidade temporária, a cavidade permanente terá dimensões muito próximas a do projétil. Já nos casos em que a velocidade for suficiente para gerar lesões através da cavidade temporária, a cavidade permanente poderá ter dimensões consideravelmente maiores que o diâmetro do projétil, alcançando, até mesmo, regiões não atingidas diretamente por ele (SILVINO JÚNIOR, 2021, p. 30).

Os mitos envolvendo o poder de parada levaram a discussões acaloradas sobre qual seria o calibre (ou projétil) infalível, que conseguiria a neutralização da ameaça com o mínimo de disparos (até mesmo um único). Por isso, foram realizados testes e criados critérios para mensuração dessa tal “infalibilidade”. Por exemplo, foram realizados estudos com tiros em bovinos e caprinos, onde era cronometrado o tempo em que estes animais demoravam para morrer, também foram feitos testes em cadáver humanos pendurados, sendo observado o tempo em que os corpos suspensos pendulavam após o impacto do projétil (LEANDRO, 2019, p. 52). 

Esses testes ignoram um fator de grande preponderância: as pessoas atingidas. Não há como haver previsão de qual será a reação da pessoa alvejada por um disparo de arma de fogo. Nenhuma situação será igual a outra e cada organismo terá uma resposta peculiar, levando-se em conta os efeitos psicológicos e físicos de cada pessoa, suas características pessoais, eventual consumo de drogas, remédios, álcool, além da própria motivação em manter-se lutando pela vida ou fugir.

Análise feita pela “Academy Firearms Training Unity” do FBI traz a compilação de diversas pesquisas relacionadas ao número de disparos necessários em um confronto armado (LEANDRO, 2019, p. 53-54):

[...] parece que muitas pessoas teriam tendência a cair quando atingidas. Este fenômeno independe do calibre, projétil ou sua localização, e está além do controle do atirador. Isso só pode ser provado no momento, e nunca pode ser previsível. Requerem-se apenas dois fatores para que cause efeito: o disparo e a consciência do alvo que ele foi atingido. Faltando um dos dois as pessoas não estão predispostas a cair. Havendo essa predisposição, a escolhe de calibre e projétil é irrelevante. 

 Humberto Wedling Simões de Oliveira (2013, p. 303) pondera que:

[...] nenhuma munição é 100% eficaz 100% das vezes ao atingir uma pessoa e provocar a incapacitação imediata. [...] Nenhuma fábrica de munições dá garantias de eficácia de seus produtos em 100% das vezes em se tratando da incapacitação de um ser humano. 

 Portanto, o conceito de poder de parada (sttoping power) não passa de uma fábula amplamente difundida pela indústria armamentista que busca tão somente a obtenção de lucro pela venda de cartuchos, pois não há calibre ou projétil infalível (LEANDRO, 2019, p. 57). 

 2.3 Teoria da incapacitação

 Incapacitar um ser humano é tão complexo como o próprio corpo humano. Uma série de fatores deverão ser alcançados para que esse objetivo seja antigo. Ademais, os fatores mudam de relevância a cada caso concreto, fatores fisiológicos e psicológicos dos envolvidos na contenda, o armamento e munição utilizados também influem para o resultado final. 

A incapacitação fisiológica está intimamente ligada à localização do tiro no corpo humano, bem como à escolha da arma utilizada e da munição. A localização do disparo é o fator mais importante, sem sombra de dúvidas, tendo papel fundamental na incapacitação fisiológica. Danos causados em órgãos importantes serão determinantes para a maior velocidade de incapacitação. 

Patrick Sweeney (apud MANIGLIA, 2020, p. 165) afirma que existem duas formas de parar um oponente: causando danos no sistema nervoso central ou através da perda abundante de sangue, que faz com que a pressão sanguínea caia abaixo de um nível operacional. 

A incapacitação imediata somente será possível se o tiro atingir o tronco encefálico ou a coluna cervical alta do agressor. O ideal seria alvejar o centro do “cérebro primitivo”, responsável por regular as funções vitais, localizado no centro do crânio, entre os olhos e a ponta do nariz, esta seria a chamada “zona de incapacitação imediata”. Além desta localização exata, os danos devem ser importantes na massa encefálica ou capaz de cortar a comunicação alta entre cérebro e músculo, evitando reações da ameaça. Uma vez lesionadas as estruturas, o agressor irá a óbito de forma instantânea e, provavelmente, não conseguirá esboçar reação alguma, nem mesmo o acionamento de gatilho de uma arma de fogo em ação simples (MANIGLIA, 2020, p. 166).

Usualmente, os atiradores de precisão (snipers) tendem a mirar na zona de incapacitação imediata para solucionar uma situação crítica com a utilização de armamento adequado, como no caso de uma tomada de reféns. Entretanto, acertar um tiro nesta zona não pequena durante um combate aproximado (maioria dos casos reais) é uma tarefa extremamente difícil, pois se trata de um alvo pequeno, há o estresse inerente do combate e o adversário estará, indubitavelmente, em movimento e respondendo a tiros ou avançando com uma faca em mãos, por exemplo.  

Em relação às lâminas cortantes, elas podem provocar uma lesão mais letal do que a provocada por uma arma de fogo, pois geram perfurações e cavidades permanentes tão ou mais expressivas. Confrontos desta natureza, cerca de 70% deles, ocorrem à curtíssima distância, cerca de 3 a 4 metros, o que demonstra a dificuldade e o potencial letal de embates envolvendo armas brancas. O Oficial do Departamento de Polícia de Utah, Dennis Tueller, realizou estudo em 1983, que ficou conhecido como “Regra de Tueller”, no qual demonstrou que um agressor com uma faca é capaz de percorrer a distância média de 21 pés, equivalente a 6,4 metros, antes que uma pessoa armada pudesse reagir sacando a arma de fogo e efetuando disparos (ESCUDERO, 2021, p. 304-306).

Excepcionando a referida região em “T” localizada no crânio (zona de incapacitação imediata), não basta que o agressor seja atingido em uma região vital (por exemplo, no coração), poderá demorar cerca de 10 segundos para que o cérebro pare de se comunicar com os músculos, foi o que a doutrina se referiu como “Os dez segundos do homem morto”:

O termo “dez segundos do homem morto” aparece em alguns dos primeiros documentos ocidentais (relatos dos Texas Ranges, não do idealismo de romances baratos), retratando velhos atiradores da era da fronteira recebendo ferimentos fatais, mais ainda assim vencendo seus oponentes. Na maior desses confrontos com tiroteios, desde o momento do golpe fatal até o momento em que a falta de fluxo sanguíneo transportando oxigênio para o cérebro causou perda de consciência / morte, foi de aproximadamente dez segundos. (ESCUDERO, 2021, p. 307)

 O tiro de combate preconiza que o atirador deve fazer sua visada no centro de massa da ameaça (na maioria das vezes é a região torácica), área de maior volume, onde os acertos serão mais viáveis e, com isso, há maior possibilidade de incapacitação. No tórax, encontram-se os principais órgãos do corpo humano, todos fortemente irrigados com sangue. Nesse caso, é possível fazer com que a circulação sanguínea pare ou diminua, ao atingir o coração ou grandes vasos, que gerarão perda abundante e rápida de sangue, que fará com que o corpo “desligue” o cérebro por falta de pressão. Este processo, fisiologicamente, pode demorar 10 a 15 segundos e, na sequência, a hipóxia, a falta de oxigenação, irá causar a morte cerebral em minutos (MANIGLIA, 2020, p. 166-167).

É importante ressaltar que uma pessoa normal consegue realizar até quatro tiros por segundo. Logo, uma ameaça atingida com um ótimo tiro do tórax conseguirá disparar com sua arma até acabarem todas suas munições, por isso o médico operador do grupo TIGRE da Polícia Civil do Paraná, Sérgio Maniglia, chama o tiro no tórax de “loteria de tempo”, pois não é possível afirmar quanto tempo decorrerá até a ameaça cesse sua agressão (2020, p. 167). 

A localização dos disparos é o único fator de incapacitação que depende exclusivamente da habilidade do operador. Eis a necessidade do treinamento constante do armamento utilizado e das técnicas de combate. Afinal de contas, como conclui Patrick Sweeney, o que de fato importa, anatomicamente falando, é onde a ameaça foi atingida e não o que a atingiu (CUNHA NETO, 2020, p. 167). 

É comum haver questionamentos sobre o motivo pelo qual um policial não atirou nos braços ou pernas de um agressor, acreditando que esta medida seria eficaz para neutralizar ou desestimulá-lo a continuar combatendo. Contudo, nada pode ser mais distante da realidade do que exigir que o atirador, no auge do estresse, tendo contra si todos os fatores possíveis já referidos (movimentação do agressor, revide, circulação de terceiros etc.), tenha que realizar disparos precisos em regiões tão diminutas do corpo humano. 

Este é mais um dos (muitos) mitos envolvendo as armas de fogo e os enfrentamentos reais, chegando ao ponto de ser referido por Humberto Wendling de Oliveira (2020) como a “síndrome do tiro na perna”. Baseado em um paradigma de precisão cinematográfico, pois somente nos filmes os protagonistas são capazes de acertarem todos seus disparos. Contudo, a vida real é bastante diferente do que se vê na tela do cinema, pois aqui não existe roteiro, coreografia e nem ensaio. 

Infelizmente, não existem dados estatísticos brasileiros sobre a precisão de tiros em ocorrências policiais, porém, nos Estados Unidos, onde os policiais possuem condições muito maiores de treinamento, a porcentagem de acertos está na casa dos 17%. Outras estatísticas do Departamento de Polícia de New York apontam números que chegam 11% de acerto (apud CUNHA NETO, 2021, p. 133-134). Se mesmo fazendo visada no maior alvo possível, o tórax, na média um policial treinado acerta um para cada seis tiros, é lógico pensar que estes índices seriam muito menores se o agente tentasse atingir estruturas corporais muito menores, como braços e pernas. Além disso, para conseguir um disparo tão preciso, o atirador teria que minimamente deixar de movimentar-se para aprimorar suas condições de disparo, isso faria com que ele se tornasse um alvo fácil para o agressor, que, agindo sem preocupar-se com danos colaterais ou com a vida do policial, teria melhores condições de, movimentando-se como queira, acertar seus disparos.

Este raciocínio encontra abrigo na chamada “Lei de Fitts”, proposta pelo psicólogo e pesquisador da Universidade de Ohio, Paul Fitts, em 1954, tratando da capacidade motora humana no controle da amplitude de movimento, afirma que quanto mais preciso tiver que ser um movimento, mais lento ele será (apud CUNHA NETO, 2021, p. 134).

Por outro lado, é uma crença desarraigada que um tiro na perna, por exemplo, teria sempre baixa letalidade em relação a tiros no tórax. Ao contrário, se o tiro na perna atingir grandes vasos sanguíneo, será tão letal quanto em razão da rápida perda de sangue. Uma vez que no corpo de um homem de compleição mediana circula cerca de 1,5 litros de sangue por minuto pela importante artéria femoral (CUNHA NETO, 2021, p. 136). Assim, a vítima pode entrar em choque hipovolêmico em menos de dois minutos e o óbito em seguida, caso não sejam tomadas medidas adequadas para o controle da hemorragia e reposição volêmica.

Como ensina Delton Croce (1990, p. 104), a medicina legal classifica os projéteis de armas de fogo como agentes mecânicos perfuro contundentes, pois atuam inicialmente por pressão em uma superfície e, posteriormente, perfuram a região atingida. Logo, não cortam como uma lâmina, eles empurram, comprimem e projetam os tecidos do corpo, causando danos primários por onde passa, que é referido como “cavidade permanente”. A onda de choque, gerada pela transferência de energia, causará danos secundários, causados pela cavidade temporária, que poderão ser aumentados pela maior velocidade do projétil ao entrar no corpo humano.

Quanto maior o diâmetro do projétil, maior será o túnel de dano primário feito no corpo e maior a destruição de tecidos, que poderão levar à falha de um órgão e causar sangramento mais abundante, evoluindo para a neutralização mais rápida. Pensando nisso, alguns projéteis são projetados para se expandirem em seu raio em torno de 60% quando atingem um meio hidro sólido, aumentando a superfície tecidual empurrada e esmagada. Entretanto, a maior expansão cobra um preço no desempenho balístico do projétil, pois acaba por diminuir a distância percorrida dentro do corpo, o que pode refletir em uma letalidade menor, principalmente, em munições de baixa qualidade ou em calibres inferiores, como o .380 ACP (MANIGLIA, 2020, p. 168-169).

Ao penetrar um alvo com densidade maior que o ar, como no caso do corpo humano, o projétil de fuzil não consegue manter sua estabilização e começa a tombar, o que pode gerar sua fragmentação, pois aumenta a seção transversal da ogiva. Como ressalta Vicent Di Maio (apud CUNHA NETO, 2020, p. 169):

Isto resulta em maior destruição direta do tecido assim como uma maior perda de energia cinética e uma maior cavidade temporária. Esse aumento súbito da força de arrasto do tombamento causa grande tensão e pode fazer com que se parta. 

 Visando este dano terciário oriundo de seu tombamento, alguns projéteis são pensados justamente para fragmentarem-se quando do impacto do corpo, como no caso do calibre 5,56 x 45 mm em munições militares tradicionais, como a M193 e M855 (SS 109), que se quebram no interior do alvo, causando novas cavidades permanentes em diversas direções, aumentando o dano total no atingido (MANIGLIA, 2020, p. 170).

A profundidade da penetração é dos fatores mais importantes na letalidade comparativa, dado que, quanto mais profundo o projétil atingir, maior será o dano aos órgãos internos importantes protegidos em posições mais profundas caixa torácica. Além do que, nem sempre o agressor estará de frente para o atirador. Por este motivo, o FBI determina uma penetração desejável ao trabalho policial entre 12 e 18 polegadas, para que se evite, em tese, a possibilidade do projétil transfixar o agressor e venha por acertar pessoas inocentes (JÚNIOR SILVINO, 2021, p. 167).

Existe uma estimativa de que, devido a própria estrutura do corpo humano, cerca de 85% dos tiros em tórax acertem algum osso (MANIGLIA, 2020, p. 170), o que acaba por afetar o desempenho da penetração no corpo e a trajetória. Testes feitos em gelatina balística não são capazes de simular esta circunstância, pois carecem de tecidos com a dureza dos ossos. Barreiras intermediárias entre a arma de fogo que deflagrou o tiro e o alvo a ser atingido, como roupas, vidros, metais, madeira etc., também são condições a serem observadas. Portanto, projéteis destinados ao trabalho policial devem apresentar capacidade de transfixação destas barreiras e, ainda assim, sejam capazes de penetrar adequadamente no corpo do agressor. 

É certo que o excesso de penetração também pode ser um problema, pois pode gerar a transfixação do alvo e consequentes danos colaterais, por isso a munição deve ser equilibrada. Entretanto, como alerta João Bosco Silvino Júnior, citando estudo do FBI, em situações reais são mais comuns problemas de falta de penetração satisfatório do que o excesso. Logo, “o fator mais importante para garantir a efetividade de um calibre é a capacidade de penetração” (2021, p. 39).

Na complicada equação da neutralização efetiva não se pode deixar de lado a importância da velocidade do projétil e, também, sua energia. Projéteis de alta energia, como calibre 5,56 x 45 mm, produzem danos maiores do que os projéteis de baixa energia, como o .40 S&W e o .45 ACP. Isso ocorre, principalmente, em razão do dano secundário já abordado quando nos referimos à cavidade temporária, causado pelo excedente de energia do projétil ao adentrar o corpo humano, que não é totalmente absorvido sem causar danos. Os tecidos do corpo possuem relativa capacidade de absorção de energia, sendo que se a energia for maior do que a capacidade elástica natural do tecido, eles irão se romper[1].

A velocidade em que o projétil penetra no corpo é fundamental para o aumento da energia, isso porque, na equação física da energia cinética a velocidade é o fator mais importante, pois é elevada ao quadrado no cálculo (Ec = 1/2 M.V2). Isso significa que, se mantida a mesma massa do projétil, porém com o dobro de velocidade, isso implicará no quádruplo de energia cinética (MANIGLIA, 2020, p. 172).

O dano secundário somente será possível nas armas dotadas de calibres de alta energia. Em linhas gerais, as pistolas não têm velocidade e energia excedente capaz de romper tecidos através de dano secundário de cavidade temporária. A energia que produz somente é hábil para forçar o projétil através do corpo, chegando em boa profundidade. Para os estudos do FBI, uma profundidade da cavidade permanente entre 12 a 18 polegadas são consideradas adequadas (apud OLIVEIRA, 2019). A título de exceção, é possível citar os tecidos ósseos que se fraturam em uma área maior do que a atingida, mesmo no caso dos projéteis de baixa energia.

Neste sentido, Vicent Dimaio (apud MANIGLIA, 2020, p. 173):

Como regra geral, a cavidade temporária tem pouca ou nenhuma importância na extensão do ferimento. A quantidade de energia cinética perdida no tecido pelo projétil é insuficiente para causar lesões remotas, como as produzidas por um projétil de alta velocidade de um fuzil.

 Isto posto, quando se trata de letalidade comparativa, o ideal para potencializar a incapacitação em um confronto armado é a combinação entre profundidade e diâmetro de lesão de relevante extensão, a título de dano primário, quantidade importante de tecidos destruídos e rompidos pela energia do projétil, como dano secundário, e, ainda, a possibilidade de fragmentação, causando dano terciário, 

Embora a inequívoca fundamentalidade destes pontos para a incapacitação física do oponente, existe possibilidade de se atingir a incapacitação psicológica em um confronto, ou seja, quando o corpo ainda encontra-se em condições fisiológicas de continuar a luta, mas a mente abandonou o campo de batalha. 

São vários os fatores que podem alterar o estado mental e determinar como será a reposta do indivíduo durante a peleja. O desejo por sobreviver é natural a todo ser humano, mas ele pode conduzir a dois caminhos diversos: o da luta ou o da fuga. A análise do evento e das capacidades ou condições de reação determinarão qual será a trilha a ser percorrida. Ou seja, se o cidadão já vivenciou situações semelhantes antes (ainda que através de simulação em treinamento), planejou estratégias e táticas de resposta ao combate e treinou suas habilidades, suas chances de sair vivo são maiores. De outro lado, se a pessoa, ao analisar o cenário, entenda que lhe faltam condições de reação, tenderá a fugir, seja fugindo efetivamente, paralisando, negociando sua saída, desmaiando ou suplicando por sua vida. 

Estar preparado para um combate potencial, tanto nos aspectos físicos e psicológicos, é o que leva um homem à superioridade em face de seu agressor. A preparação psicológica leva a uma melhor utilização dos hormônios liberados na situação de estresse, como a adrenalina, aumenta a tolerância à dor, aumenta a capacidade de oxigenação cerebral e muscular, levando a uma reposta mais adequada e controlada (MANIGLIA, 2020, p. 174-175).

Evitar um combate ou uma situação de perigo também é vencer, tendo em mente que o objetivo principal é sempre retornar vivo para casa. Portanto, estar em condições aptas à batalha também irá auxiliar na prevenção, pois manter o estado de alerta constante diminuirá as chances de sofrer ataques surpresa e o tempo de resposta à agressão. 

 CONCLUSÃO

No que se refere à atuação policial prática, não pode haver espaço para achismos, pois o que está em jogo é a vida do policial e, também, da população em geral, cuja a proteção e salvaguarda é dever do Estado. Assim, reveste-se de especial importância a aprendizagem, treinamento e aperfeiçoamento do profissional que porta uma arma de fogo em defesa da sociedade.

Contudo, esse treinamento não pode ser baseado em técnicas obsoletas, ensinadas ao longo dos anos, simplesmente por repetição, sem questionar se elas ainda estão adequadas ao cenário de enfrentamentos atuais. Não se defende o abandono de tudo o que foi historicamente ensinado, mas sim que sejam feitas reflexões por parte daqueles que estão efetivamente nas ruas combatendo a criminalidade para que, por meio de discussão e pesquisa, seja possível chegar a uma conclusão sobre o que funciona e o que deve ser deixado de lado.

Reputa-se ao músico Frank Zappa a frase “a mente é como um paraquedas, ela não funciona se não estiver aberta”. Assim deve pensar o operador que busca aprimorar suas habilidades. Ele deve nutrir-se de ferramentas técnicas e teóricas que o levem à melhor e mais efetiva abordagem do cenário que a ele se mostra.

O único caminho para que se chegue a bom termo é o estudo multidisciplinar, que traz a realidade dos campos de batalha urbanos atuais, conjugado com os aspectos balísticos do funcionamento das armas de fogo e do comportamento dos projéteis. Dessa forma, sempre pautados pelas balizas do ordenamento jurídico brasileiro, a ação do policial sempre deverá estar de acordo com o que é instituído pelos Direitos e Garantias Fundamentais do cidadão.

Armas de fogo não são instrumentos com uma única finalidade bélica, ao contrário, são utilizadas também com o fim de proteger a sociedade. Todavia, somente o efetivo treinamento de técnicas e táticas policiais tornará o agente hábil, não só ao manuseio de seu armamento como também capaz de rapidamente selecionar a melhor opção de ação diante do cenário que a ele se mostra.

Possuir preparo físico, mentalidade voltada ao êxito do combate e conhecer técnicas e táticas são pontos indissociáveis que se espera de um policial. Esses requisitos são primordiais para que se atue com lisura, respeitando-se normas e diretrizes básicas que regem o trabalho policial.

REFERÊNCIAS

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Sobre o autor
Sandro Vergal

Delegado de Polícia Civil do Estado de São Paulo, Professor Universitário e de Cursos Preparatórios, Mestre em Direitos Sociais, Difusos e Coletivos, pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal, pós-graduando em Balística.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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