4. CASO EVANDRO “BRUXAS DE GUARATUBA”
No dia 06 de abril de 1992, um menino de 6 anos chamado Evandro desaparece em Guaratuba, litoral do Paraná. O corpo do menino foi localizado no dia 11 de abril de 1992, quatro dias depois do seu desaparecimento em avançado estado de decomposição. Um lenhador que passava no local acabou estranhando a presença de urubus e resolveu verificar, se deparando com o corpo do menino que estava sem o couro cabeludo, olhos, partes dos dedos dos pés, mãos, e com o ventre aberto notando-se a ausência de alguns órgãos internos. A causa mortis do crime foi assinalada como asfixia mecânica (PROCESSO GUARATUBA, fls. 216-222 ANO).
A identificação do corpo era complicada devido as circunstancias em que o mesmo se encontrava, porém, dias depois foram encontradas as chaves de sua casa e seu chinelo próximo ao local. O elemento que ajudou na identificação foi uma mancha que ele tinha nas costas, reconhecida pelo pai do menino. Sinais de violência extrema, como evisceração não eram comuns em crimes contra crianças e muito menos compreensíveis, não se encaixavam como crimes de ódio, ou vingança por exemplo (PROCESSO GUARATUBA, fls. 216-222 ANO).
Não demorou muito até que o caso tomasse repercussão no Brasil sendo associado a ritual satânico e bruxaria. Foram acusadas sete pessoas de participarem do crime, incluindo Celina Abagge e Beatriz Abagge, esposa e filha do prefeito de Guaratuba da época. Também foram acusados o pai de santo Osvaldo Marcineiro, seu amigo Vicente de Paula, o artesão Davi dos Santos, Francisco Cristofolini (vizinho de Osvaldo) e Airton Bardelli, funcionário da serraria dos Abagge.
O menino teria sido sacrificado como parte de um ritual de magia negra para obtenção de poder e dinheiro para família Abbage. Celina teria encomendado o ritual, e Vicente, Celina, Beatriz e Osvaldo) encontraram o menino e o colocaram no carro o levando em seguida para a serraria da família, o menino permaneceu sozinho durante um dia, e no dia seguinte os sete acusados foram até o local e realizaram o ritual. Segundo Mauss e Hubert 13(2013), os rituais de sacrifício pretendem estabelecer uma comunicação entre o mundo sagrado e o mundo profano por intermédio de uma vítima. A compensação pelo sacrifício é produzir vantagens como salvação, poder, dinheiro e cura por exemplo, para aquele a pratica. Geralmente o termo “Magia Negra” é erroneamente associado a religiões de matriz africana. Alguns autores, no entanto, argumentam que a ideia do sacrifício é componente das religiões de maneira geral. (PAULA M. LACERDA, 2017)
O grupo de elite da polícia civil começou a investigar o caso, que é cheio de reviravoltas, uma delas é a acusação de tortura realizada pelos acusados contra a polícia responsável pela investigação. No dia 02 de julho de 1992, os sete acusados foram presos. As prisões foram realizadas pelo Grupo Águia, que era um grupo de inteligência da Polícia Militar. Essas ações ocorrerão sem o conhecimento da polícia civil segundo o Secretário de Segurança Pública do Paraná na época.
O podcast do professor, produtor e escritor Ivan Mizanzuk denominado “Projeto Humanos”14 se tornou conhecido no Brasil, fazendo que o caso fosse mais uma vez relembrado. O caso de Evandro ficou marcado pela repercussão da mídia devido ao envolvimento com o satanismo, a forma cruel como o menino foi morte bem como o motivo, se tornaram o principal assunto e o principal medo de uma sociedade da época. O pânico se alastrou e teve fim com a mesma facilidade com a qual começou.
Beatriz e Celina ficaram presas de 1992 a 1996, após ficaram em prisão domiciliar. No júri de 1998 – que ficou conhecido como um dos mais longos da história do Brasil, tendo 34 dias – elas foram absolvidas, o Ministério Público recorreu e Beatriz foi condenada a 21 anos de prisão, e sua mãe foi absolvida pois já tinha 70 anos (Artigo 115 do Código Penal Brasileiro). Beatriz pediu indulto, o qual foi concedido. Em 2017 o Ministério Público recorreu, subindo até Supremo Tribunal Federal, sendo negado. Osvaldo, Vicente e Davi, foram julgados em 1999 sendo condenados somente em 2004. Vicente morreu na cadeia antes de conseguir sua soltura. Sergio e Airton foram inocentados em 2005.
Até então, não se sabe o que realmente aconteceu com Evandro e com outras crianças que sumiram na mesma época no Paraná. O caso tomou proporções gigantescas, e os acusados alegaram que foram torturados para confessar. Devido a sua repercussão, acreditasse que a polícia tenha tomado medidas drásticas para que pudesse colocar um fim a histeria coletiva e ao pânico satânico instaurado na cidade, comprometendo o julgamento e a investigação do caso do começo ao fim.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O pânico moral sempre esteve presente em nossa sociedade, a mídia tem um poder muito grande de influência nos julgamentos. Crimes violentos, política, e demais assuntos são usados para criar estereótipos, instigando a mente de seus leitores e causando o pânico moral. Cohen usou como referência essa influência para conduzir um estudo que se tornaria de extrema importância para a sociedade da época e até mesmo a atual. O livro Folk Devils and Moral Panics foi lançado em 1972, e acompanha dois grupos de jovens da sociedade britânica da década de 50, considerados como “desviantes”.
No decorrer do artigo dissertamos sobre o pânico satânico, que ficou muito conhecido nas décadas de 80 e 90 pelos inúmeros casos de assassinatos cruéis e acusações e condenações injustas. Os principais casos ocorreram nos Estados Unidos e demais países de grande potência, onde assassinos cruéis como Charles Mason e David Berkowitz fizeram inúmeras vítimas. No Brasil, Febrônio Índio foi e ainda é um nome muito conhecido, pelo modo como assassinava suas vítimas e as tortura em nome da fé. O termo “satanismo” gera certo desconforto, quando o relacionamos a assassinatos a sensação de desconforto aumenta ainda mais influenciando o imaginário da sociedade e causando pânico. O abuso de crianças nesses rituais também se tornou o terror da sociedade, acusações falsas de abuso infantil foram muito comuns nessa época. As consequências são sentidas até hoje, ocorrendo acusações, julgamentos e prisões sem veracidade de pessoas inocentes que continuam presas até os dias atuais.
E por último, analisamos o caso Evandro, onde restou evidenciado que tanto o pânico moral quanto o satânico geram consequências irreversíveis na sociedade, muitas vezes trazendo injustiças. A construção de uma notícia tendenciosa, com manchetes sensacionalistas, levou o caso a ter uma investigação falha sustentado por provas e argumentos baseados em misticismo e crenças de uma sociedade assustada por um crime tão cruel e bárbaro. Pessoas tendem a ter medo do que não podem controlar ou entender. E dentre muitos outros assuntos, a religião não está no patamar de entendimento da sociedade como um todo, sendo um assunto tratado com desrespeito e medo.
Diante do exposto, é possível verificar que nossa sociedade constrói meios de instauração de medo de maneira controlada, com a ajuda significativa da mídia. A construção de uma notícia tendenciosa pode atrapalhar a forma como a sociedade enxerga certas notícias, podendo atrapalhar a forma como o julgamento será realizado. Essa hipótese se confirma no Caso Evandro, e nos demais casos apresentados no decorrer desse trabalho, onde foi possível verificar a construção de uma narrativa de “pânico satânico e moral” no discurso criminológico da mídia da época encorajando a sociedade a rotular os acusados como bruxos, implicando um julgamento baseado em misticismo e crenças de uma sociedade assombrada.
REFERÊNCIAS
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CASOY, Ilana. Febrônio Índio do Brasil. In: ______. Serial killers: made in Brasil, 2. ed. São Paulo: Arx, 2004. p. 40-75.
COHEN, S. Folk Devils and Moral Panics: The Creation of the Mods and Rockers.Oxford: Martin Robertson, 1972.
FOLQUENING, Victor E. CRIMES DE NEGÃO EM NOME DE SATANÁS: Discurso antecipatório, racismo e xenofobia na imprensa. Revista Brasileira de Ensino de Jornalismo, v. 1, n. 4, 2009.
FRY, Peter. 1982. “Febrônio Índio do Brasil: onde cruzam a psiquiatria, a profecia, a homossexualidade e a lei”. In: A. Eulalio et al. (orgs.), Caminhos cruzados. São Paulo: Editora Brasiliense. pp. 65-80.
Garland, D. (2019). SOBRE O CONCEITO DE PÂNICO MORAL: ON THE CONCEPT OF MORAL PANIC. Delictae Revista De Estudos Interdisciplinares Sobre O Delito, 4(6), 36–78. https://doi.org/10.24861/2526-5180.v4i6.90.
LACERDA, Paula M.; LACERDA, Paula M. LEI, VIOLÊNCIA E ACUSAÇÕES DE “MAGIA NEGRA” EM CRIMES CONTRA CRIANÇAS. Mana, [S. l.], v. 23, n. 2, p. 371–400, 2017. DOI: 10.1590/1678-49442017v23n2p371. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132017000200371&lng=pt&tlng=pt>. Acesso em: 10 set. 2021.
La VEY, A.S. 1969. The Satanic Bible. New York: Avon Books.
MARQUES, Rodrigo. O fenômeno do pânico moral: apreciações clássicas, inovações e problematizações contemporâneas. In: Conflito de (grande) interesse: estudos sobre crimes, violências e outras disputas conflituosas. Rio de Janeiro: Garamond, 2012. p. 306.
MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Sobre o sacrifício. Tradução: Paulo Neves. São Paulo: Ubu editora, 2017. 144 pp.
MISKOLCI, Richard; CAMPANA, Maximiliano. “Ideologia de gênero”: Notas para a genealogia de um pânico moral contemporâneo. Sociedade e Estado, [S. l.], v. 32, n. 3, p. 725–747, 2017. DOI: 10.1590/s0102-69922017.3203008.
PEREIRA, Claudio Luiz. Seguindo a voz de Deus: narrativas e etnografia em um caso de sacrificio de crianças - Salvador-Bahia, 1977/2001. 2002. 597p. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciencias Humanas, Campinas, SP. Disponível em: <http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/280612>. Acesso em: 27 set. 2021.
PROJETO HUMANOS. O Caso Evandro. 2018. Disponível em: <https://www.projetohumanos.com.br/temporada/o-caso-evandro/> Acesso em: 29 mai. 2022.
Notas
O termo citado é de difícil tradução, refere-se basicamente a algo como “demônios populares” visto que as duas palavras têm origem do inglês.︎
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Também conhecido como D&D, o jogo foi lançado no Estados Unidos no ano de 1974, é um jogo de fantasia e interpretação de papeis. O jogo atualmente já está na sua 5º edição, sua publicação é considerada como a origem dos jogos de RPG. Jogadores criam seus personagens e participam de aventuras, enfrentam monstros, reúnem tesouros, ganham pontos de experiência e ficam mais poderosos a cada jogada.︎
Uma série de anime japonesa, escrita e ilustrada por Kazuki Takahashi. Conta a história de um menino que remonta um antigo enigma e acaba despertando um espírito com a personalidade de um jogador e que resolve seus conflitos usando jogos. Devido dessa série surgiu o jogo de cartas fictício onde os jogadores usam cartas com monstros para duelar entre si.︎
Em meados de 1980, quando a cantora lançou algumas músicas em coletânea, surgiram boatos que, quando tocadas de trás para frente, algumas das músicas traziam mensagens que faziam referência a Exu, uma entidade de religiões de matriz africana.︎
Em 1971 foi lançada a música "Stairway to Heaven" da banda britânica Led Zeppelin, em decorrência de uma lenda urbana que de o Rock seria satânico, a faixa tocada ao contrário continha mensagens ocultas.︎
Cangaceiro, criminoso foragido ou qualquer homem violento contratado como guarda-costas por indivíduo influente (p.ex., fazendeiro, senhor de engenho, político) e por este homiziado.︎
Em 1984 o casal Frank Fuster e Ileana Fuster foram acusados de molestar várias crianças das quais Ileana cuidava em Country Walk em Miami. As crianças deram entrevistas em uma unidade especial para crianças dentro do escritório do procurador do estado. Mais tarde psicólogos fizeram a análise dessas entrevistas e concluíram que os métodos utilizados eram altamente indutores, sugestivos e não confiáveis. Ileana se declarou culpada e depôs contra o marido, após uma entrevista ser realizada com métodos muito questionáveis. Ileana mais tarde fez declaração juramentada alegando que nem ela nem o marido tinha cometido os crimes, mas logo depois de se tornar público ela retirou a declaração. Fuster continua preso cumprindo pena perpétua sem direito a liberdade condicional, e Ileana cumpriu três anos de uma sentença de 10 anos e depois foi deportada para Honduras.︎
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Joseph Allen, foi acusado de abuso sexual juntamente com Nancy Miller, que trabalhava como motorista escolar. Tudo começou quando uma mãe foi ao hospital alegando que sua filha de quatro anos havia lhe contato que a motorista tinha a levado para a casa de um homem chamado “Joseph”, que a amarrou, tapou seus olhos e a molestou sexualmente com uma vara. No hospital, a informação foi fornecida pela mãe, não pela criança, que estava fisicamente ilesa. Os registros do ônibus foram verificados e estavam normais, com a rota habitual de Nancy, outras crianças foram entrevistadas e nenhuma relatou abuso. Durante os primeiros interrogatórios, “Joseph” foi identificado como branco, preto, branco com manchas pretas e preto com manchas brancas. A busca por “Joseph” se intensificou. Eventualmente, um negro sem instrução da classe trabalhadora, Joseph Allen, foi preso. Nancy e Joseph foram julgados e condenados em julho de 1994. Nancy foi sentenciada a cumprir pena de 30 a 94 anos. Joseph foi condenado a cinco penas de prisão perpétua consecutivas.︎
Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo: Desaparecido no dia 23 de dezembro de 1988 no Centro Cívico de Curitiba.︎
Sumiu na manhã do dia 17 de junho de 1991 no Jardim Social em Curitiba, tinha 8 anos na época.︎
Desapareceu em 15 de fevereiro de 1992 em Guaratuba. A última informação que se tem sobre o garoto é de que ele estava no show do cantor Morais Moreira.︎
MAUSS, Marcel & HUBERT, Henri. 2013. Sobre o sacrifício. Rio de Janeiro: CosacNaify.︎
É como se fosse um documentário em formato de áudio que é distribuído na internet. Aproxima-se de práticas conhecidas no país como jornalismo narrativo e/ou literário. Foi idealizado por Ivan Mizanzuke que desde 2011 produz o AntiCast, um podcast mais focado em história, política e artes. Hoje, o AntiCast é uma rede de podcasts, da qual o Projeto Humanos faz parte.[...] A quarta temporada contou a história do Caso Evandro, um dos casos criminais mais chocantes da história do estado do Paraná e do Brasil. Foi a primeira temporada totalmente dedicada a um caso criminal brasileiro, sendo o fruto de uma pesquisa de 2 anos de Ivan Mizanzuk.”(PROJETO HUMANOS, 2015)︎
Moral and Satanic Panic in real cases with emphasis on the Evandro Case
Abstract: This article aims to demonstrate the seriousness of falling into moral panic, analyzing how the theme has been present in our lives in such a silent way that we hardly notice it. The concept of “Moral Panic” had an enormous impact on sociology and law studies, being also an important cultural debate in the media's performance. The study that sparked this debate was by the renowned sociologist Stanley Cohen (Cohen, 1972), who inserted this concept into the social environment. Along with the Moral Panic, the Satanic Panic also emerged in the 70's, 80's and 90's causing great repercussion due to murders involving satanic cults, as well as the growing number of accusations of child abuse in satanic rituals. Finally, we will analyze the case that generated and still generates a lot of repercussion in Brazil, the Evandro Case, known as the "Witches of Guaratuba", which caused a wave of panic in the population, involving the wife and daughter of the mayor of Guaratuba, and which to this day generates many doubts and discussions. The case was a whirlwind of uncertainties, causing widespread panic in society at the time.
Keywords: Moral Panic. Satanic Panic. Evandro Case.