Direito público - críticas ao Decreto 11.322 de 30 de dezembro de 2022 do vice-presidente Hamilton Mourão

01/02/2023 às 13:11
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O sarapatel do vice-presidente Hamilton Mourão: o decreto 11.322, de 30 de dezembro de 2022 (redução das alíquotas do pis e cofins) à luz da moralidade administrativa e a vedação da não-surpresa

No frigir os ovos, exsurge o vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos) em exercício no assento presidencial, com o Decreto 11.322 de 30 de dezembro de 2022, reduzindo as alíquotas do PIS/Pasep de 0,65% para 0,33% e da Cofins de 4% para 2%, com impacto econômico-fiscal de aproximadamente R$ 5,8 bilhões nas contas públicas do governo eleito Lula/Alckmin.

O assunto tomou conta da pauta do noticiário jurídico e político. Por todos, a abalizada Conjur1, noticiou no dia 05 de janeiro p.p. que a equipe de transição do governo Lula/Alckmin havia nominado o fato como “inesperado presente” – do capelão da república, Hamilton Mourão.

O que esperar de um governo que passou 04 (quatro) anos promovendo todo tipo de sabotagem contra às instituições, à democracia, ao Sistema de Justiça, em especial contra o STF? Da gestão genocida na saúde durante a pandemia e, por último, do genocídio perpetrado contra a etnia yanomami?

O comportamento do vice-presidente Mourão fez-me lembrar do tema de uma palestra em direito sucessório ministrada pelo professor Antônio Vicente Golfeto de Ribeirão Preto, SP. Golfeto foi professor de economia e introdução ao direito econômico de dezenas de milhares de alunos na r. cidade, também conhecida como capital do agronegócio; foi diretor econômico da ACIRP – Associação o Comercial e Industrial de Ribeirão Preto; também foi aluno do ex-ministro Antônio Delfim Neto. Mas isto é história para outro momento!

O tema da palestra era: “Certas pessoas não sabem o mal que nos fazem com o bem que nos querem fazer (Golfeto)”. Parafraseando as palavras do apóstolo Paulo de Tarso na carta aos Romanos, segundo consta do cap. 7,19 das Escrituras Sagradas: o bem que eu quero fazer, não faço; o mal, este me domina.

A disputa de Paulo de Tarso era uma resposta aos filósofos (estoicos, em especial) da época, que defendiam haver um conflito interior entre a razão e as paixões; doutro lado, os judeus defendiam que o conhecimento da lei mosaica levava à perfeição; enquanto o apóstolo Paulo defendia que a promoção do bem e do justo não resulta do esforço humano; é dom gratuito da parte de Deus em Cristo Jesus.

Após o decreto de Mourão, esbarrou às portas do poder judiciário uma série de ações buscando salvaguardar o cumprimento do princípio tributário da anterioridade e da nonagesimal, já que o presidente eleito, Luis Inácio Lula da Silva, editou o Decreto nº 11.374/2023, revertendo a benesse concedida pelo governo anterior.

Na ausência do presidente Jair Messias Bolsonaro (2019-2022), o vice-presidente Hamilton Mourão exerceu o cargo no dia 30.12.2022, concedendo as benesses tributárias supracitadas aos 47m do 2º tempo em edição extra do Diário Oficial da União; a medida entrou em vigência no dia seguinte a publicação, derradeiro-final do mandato da chapa Bolsonaro/Mourão.

Com a posse do presidente Luis Inácio Lula da Silva no dia 01 de janeiro, houve a revogação das benesses concedidas.

Sob o olhar de vários especialistas e analistas da matéria para a incidência da anterioridade (alínea “b”, do art. 150, inc. III – “proibição de cobrar tributo no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou”), mais precisamente, do princípio da nonagesimal encartado no art. 150, inc. III, alínea “c”, todos da Constituição Federal de 1988, a questão acendeu os debates no cenário fiscal e tributário.

No cenário fiscal, o Decreto n. 11.322/2022, infringi os princípios constitucionais da moralidade, da probidade, da boa-administração pública, dentre outros, conforme veremos a seguir.

É que a dívida pública federal de 2022, segundo dados do Tesouro Nacional, alcançou a cifra de R$ 5.951 trilhões; este valor é 6,02% maior que os dados de 2021, R$ 5.614 trilhões. Os dados do IFI – Instituto Fiscal Independente, órgão vinculado ao Senado Federal para monitoramento da dívida pública, aponta um crescente agravamento do déficit das contas públicas nos próximos anos.

Uma leitura panorâmica do Decreto 11.322/2022, permite-nos uma série de abordagens que inquinam à inconstitucionalidade da benesse. O decreto inquinado padece de sofisma que, sob o manto de incentivar ou fomentar ou desonerar uma atividade econômica, terminou por fulminar o dever constitucional da boa-administração pública em cotejo com o déficit fiscal do Tesouro Nacional. Em outras palavras, trata-se de transferência de renda sem contrapartida econômico-fiscal ao governo nos termos do art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal, Lei complementar n. 101, de 04 de maio de 2000.

Da vedação da não-supresa ante o desvio de finalidade como elemento intrínseco da moralidade administrativa

Outrossim, a redução das alíquotas (PIS e COFINS) frutos do Decreto 11.322/2022 do capelão Hamilton Mourão, configura desvio de finalidade, violando assim a moralidade administrativa à luz do princípio democrático, da vedação da não-supresa, em cotejo com a Lei 10.609/2002 e o Decreto 7.221/2010 que regulam a transmissão da posse da presidência da república.

O §1º do art. 2º da Lei n. 10.609/2002 que regula a transição de governo, prevê: aos “membros da equipe de transição serão indicados pelo candidato eleito e terão acesso às informações relativas às contas públicas, aos programas e aos projetos do Governo federal”, de forma a preparar os atos a serem implementos pelo novo governo conforme consta do caput do art. 1º da r. lei.

Ao todo a norma prevê a criação de 50 (cinquenta) “cargos especiais de transição governamental” (art. 4º), tendo como escopo normativo garantir a transição pacífica e transparente da gestão, imprescindível para garantir eficiência e equilíbrio das contas públicas à luz da reponsabilidade fiscal.

Nesse caso, a tutela da probidade da administração pública converge com o princípio da transparência visando dar o máximo de transparência aos atos e contratos, políticas públicas e quejandos, executados pelo governo-em-saída a fim de que o novo avalie continuidade ou não de acordo com o programa político sufragado nas urnas.

É o acesso à informação (atos) que garante ao novo governo o estabelecimento de metas e objetivos a serem alcançados sob a nova administração da res pública, doravante.

Se feita com escorreita transparência a probidade administrativa restará atendida, do contrária, ter-se-á violada, como no caso presente.

Diante do sarapatel fruto do ato/decreto inquinado, há violação ao princípio do interesse público em favor de um certo público. Sob as vestes de aparente legalidade o decreto visou atingir as contas públicas do governo em vias de ser empossado; embora a forma seja de aparente legalidade o fim restou contaminado de inconstitucionalidade ante desvio de finalidade. Finalidade como subproduto da moralidade administrativa e do interesse público.

É inconstitucional todo e qualquer tipo de benesse que não estipule contrapartida financeiro-econômica ao Estado nos termos do art. 14 e incisos da Lei de Responsabilidade Fiscal.

O decreto n. 11.322/2022 viola o interesse público (interesse público primário da tributação visa pacificar a nação por meio de exações justas2) ao ter destino-fim drenar as contas públicas do novo gestor em vias de ser empossado.

“A moralidade como probidade exige do administrador a boa-fé na prática de suas condutas. Impõe que o agente público exerça a função pública no desejo de apenas concretizar os interesses públicos primários” (Marrara, op. cit. p. 167).

Sobre moralidade administrativa, colho da lavra do publicista, Thiago Marrara a síntese, de que “agir de acordo com a moralidade administrativa significa agir de acordo com as finalidades públicas legítimas” (Marrara, 165).

O governo-em-saída teve 04 (quatro) anos para promover alterações no regramento tributário e, ao realizar às vésperas da posse do governo eleito, sem o devido atendimento do art. 14 da LRF à luz dos princípios constitucionais da probidade, da boa-administração pública, da transparência com o fito de promover a transição pacífica de governos, terminou por fim, violar o núcleo central do princípio da nonagesimal e da anterioridade tributário ao usurpar das prerrogativas constitucionais de legislar previstas no art. 21 da CRFB/88.

Diante da lesão às contas públicas no caso em testilha de aparente colisão de normas constitucionais da manobra do capelão Hamilton Mourão, faz-nos lembrar de uma máxima popular que diz: “o diabo mora nas entrelinhas”.

Destarte, (...) o combate contra toda e qualquer lesão moral ou imaterial provocada por ações públicas não-universalizáveis de probidade e de honradez” (Juarez Freitas, p. 54) como no caso do Decreto inquinado, tem-se que o critério de interpretação da norma jurídica a partir da subsunção do fato à norma no caso presente não alcança o fim teleológico por nós proposto neste artigo, onde o desvio de finalidade denunciado encontra-se sob a roupagem de aparente legalidade com o fito de promover transferência ilegal de renda as classes abastadas.

Thomas Piketty cravou: “ Desigualdade não é econômica ou tecnológica: é ideológica e política”.

Ações como a do Decreto inquinado visam promover a desigualdade tributária aumentando o abismo social que separa os brasileiros.

Não obstante as alegações acima apresentadas, ainda temos o princípio da vedação da não-supresa que perpassa das linhas mestras do processo civil brasileiro espraiando sobre a garantia da transição pacífica de governos em atendimento à transparência à luz do princípio arendtiano da ética da reponsabilidade.

Nesse prisma é que se propõe a analise do referido princípio a partir do prisma dos eleitores que avalizaram no batismo das urnas a confiança no candidato vencedor e deste esperam a implementação de medidas que visam melhorar a vida e a convivência social.

À luz do princípio da responsabilidade de Hannah ARENDT com esteio na obra de Bethania ASSY, destacamos: “A ética da responsabilidade não remete a uma ética normativa ou prescritiva, baseada na ideia de um sujeito razoável ou moralmente bom. Ao contrário, uma ética da responsabilidade pessoa está ligada a visibilidade de nossas ações e opiniões articuladas publicamente, que, por sua vez, estão associados ao cultivo de um ethos público” (Assy, p. XXXIV).

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Sob o tilintar dos sinos do governo dizimado – nas urnas – sob a responsabilidade do vice (Mourão) na virada de governo, tudo que não se esperava era uma transição com granadas programadas para explodir no campo adversário, subtraindo das contas públicas a quantia aproximada de 6 (seis) bilhões ante a benesse concedida no crepúsculo do governo.

Considerações finais a respeito do princípio da nonagesimal em conflito com a vedação da não-supresa à luz da transparência derivada da moralidade administrativa

Convém anotar que o princípio da nonagesimal foi incluído no corpo do texto constitucional com a EC n. 42, de 19 de dezembro de 2003. A sequência tipológica oriunda da proposta do constituinte derivado, visava fixar limites aos poderes de tributação3, de modo evitar que o contribuinte fosse pego de surpresa na mudança de governo e/ou calendário seguida de acréscimo ou majoração de tributos.

Enquanto a alínea “b” do inciso III, do art. 150 previa a “anterioridade tributária”, o inciso III, deu cabo a um costume legislativo até então vigente, senão, vejamos:

“O presente dispositivo constitucional vem atender uma necessidade dos contribuintes, prestigiando a segurança jurídica em matéria tributária. Faz com que não mais possam ocorrer alterações na legislação em 31 de dezembro, como muitas vezes ocorreu, instituindo ou majorando tributos para vigência já a partir de 1º de janeiro.

Muitas vezes houve até edições extras do Diário Oficial em 31 de dezembro, sábado à noite, sem que se quer tenha chegado a circular, e que no dia seguinte, sem terem conhecimento, já geravam obrigações tributárias” (PAULSEN, p. 218).

E quando não for o contribuinte a ser pego de surpresa e sim o governo que irá tomar posse no dia seguinte? E quando a decisão de redução das alíquotas visa atingir as contas públicas do novo governo de modo a subtrair a capacidade financeira e orçamentária para cumprimento das propostas sufragadas nas urnas? Neste caso, não haveria um conflito aparente de princípios de envergadura constitucional?

Parafraseando Guimarães Rosa: o perigo da interpretação constitucional são muitos. No caso em comento, tem-se a literalidade do texto a partir do critério subsuntivo não contempla o dever fundamental da boa-administração pública da gestão fiscal e princípios correlatos. É que “o texto normativo (...) não contém imediatamente a norma. A norma é construída pelo intérprete, no decorrer do processo de concretização do direito; o preceito jurídico é matéria que precisa ser “trabalhada” (GRAU, p. 33).

Enfim, Hamilton Mourão ao assumir a presidência da república nos dias 30 e 31 de dezembro p.p., agiu não como vice, e sim, um vício. E por que suscitar uma paráfrase àquela canção do Kid Abelha: meu vício agora é esvaziar as finanças do novo governo conforme destacamos acima?

Considerações finais

Se ao tempo da transição do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002, PSDB) para o presidente Luis Inácio Lula da Silva (2003-2011, PT) houve por bem a criação da Lei 10.609/2002 e do Decreto 7.221/2010 para garantir a transparência e a pacificidade da transição de governos democráticos, doravante, cabe a doutrina e ao magistério acadêmico resgatar nas salas de aulas a importância da transição pacífica dos governo em cumprimento aos deveres constitucionais da transparência, da lealdade e da vedação da não-surpresa.

Medidas `fiscais e econômicas de governos em finais de mandato que tendem impactar o governo em vias de ser empossado, precisam ser analisadas a partir de uma ótica panorâmica do texto constitucional.

Enfim, o decreto do capelão da república sob a aparência de fazer o bem, terminou por fazer mal, muito mal, às contas públicas do governo em vias de tomar posse. Nesse caso, o bem (diminuição das alíquotas) não passou de álibi retórico para drenar as finanças públicas nos termos do art. 14 da LRF.

Referências bibliográficas

PAULSEN, Leandro. Direito Tributário: Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e jurisprudência. 16º ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

Marrara, Thiago. Princípios de direito administrativo. Legalidade, segurança jurídica, impessoalidade, publicidade, motivação, eficiência, moralidade, razoabilidade, interesse público. Marrara, Thiago (org.) – São Paulo: Atlas, 2012.

KENNER, Craig S. Comentário histórico-cultural da Bíblia. Novo Testamento. Tradução de José Gabriel Said, Thomas Neufeld de Lima. São Paulo: Vida Nova: 2017.

GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes (a interpretação/aplicação do direito e os princípios). 6ª ed. refundida do ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros Editores, 2013.

Freitas, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 3ª ed. rev. e amp. São Paulo: Malheiros Editores, 2004.

Assy, Bethania. Ética, responsabilidade e juízo. 1ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2015.

PIKETTY, Thomas. Capital e Ideologia. 1ª ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.

Lucas Gabriel Pereira, advogado (criminal e administrativo), especialista em Direito Municipal - ética e efetivação de direitos fundamentais pela FDRP/USP-Ribeirão; presidente do Conppac (Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural de Ribeirão Preto), ex-representante da 12ª Subseção da OAB-SP na Câmara Municipal de Ribeirão Preto/SP (2019) e ex-presidente da Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência da 12ª Subseção da OAB do Estado de São Paulo (2019-2021).


  1. https://www.conjur.com.br/2023-jan-05/revogacao-decreto-pis-cofins-causar-chuva-acoes , acessado em 31 de janeiro de 2023.

  2. Leandro Paulsen (op. cit. 13) com esteio em Diego Ferraz Lemos in A Supremacia do Interesse Público, comenta: “(...) o interesse público no Direito Tributário não é arrecadatório, pois não se confunde com o interesse do Estado e da sociedade como um todo ...(....) o interesse público no Direito Tributário, à luz da moderna fundamentação e da noção que se tem do interesse maior do Direito, é o de que a tributação se dê de uma forma que observe as normas constitucionais, respeitando-as e promovendo o seu respeito por toda a sociedade; (....) é de contribuir à mencionada pacificação social por meio da imposição de exações justas, (...) e propiciem o custeio e à mantença das atividades estatais necessárias ao desenvolvimento da coletividade.

  3. A constituição de 1988, Seção II, inaugurou um capítulo novo na história republicana e constitucional brasileira. Pela primeira vez, o texto constitucional dedicou uma seção inteira para tratar das garantias do contribuinte frente ao Fisco.

Sobre o autor
Lucas Gabriel Pereira

Advogado (criminal e administrativo), especialista em Direito Municipal - ética e efetivação de direitos fundamentais pela FDRP/USP-Ribeirão; presidente do Conppac (Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural de Ribeirão Preto), ex-representante da 12ª Subseção da OAB-SP na Câmara Municipal de Ribeirão Preto/SP (2019) e ex-presidente da Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência da 12ª Subseção da OAB do Estado de São Paulo (2019-2021).

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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