No frigir dos ovos, exsurge o vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos), no exercício do assento presidencial, com o Decreto 11.322, de 30 de dezembro de 2022, reduzindo as alíquotas do PIS/Pasep de 0,65% para 0,33% e da Cofins de 4% para 2%, com impacto econômico-fiscal de aproximadamente R$ 5,8 bilhões nas contas públicas do governo eleito Lula/Alckmin.
O assunto tomou conta da pauta do noticiário jurídico e político. Entre outros veículos, o abalizado Conjur1 noticiou, no dia 5 de janeiro p.p., que a equipe de transição do governo Lula/Alckmin havia classificado o fato como um "inesperado presente" – do capelão da República, Hamilton Mourão.
O que esperar de um governo que, por quatro anos, promoveu todo tipo de sabotagem contra as instituições, a democracia, o Sistema de Justiça e, em especial, contra o STF? Da gestão genocida na saúde durante a pandemia e, por último, do genocídio perpetrado contra a etnia yanomami?
O comportamento do vice-presidente Mourão remete ao tema de uma palestra sobre direito sucessório ministrada pelo professor Antônio Vicente Golfeto, de Ribeirão Preto, SP. Golfeto foi professor de economia e introdução ao direito econômico para dezenas de milhares de alunos na cidade, também conhecida como capital do agronegócio; foi diretor econômico da Associação Comercial e Industrial de Ribeirão Preto (ACIRP) e aluno do ex-ministro Antônio Delfim Netto. Mas essa é uma história para outro momento!
O tema da palestra era: “Certas pessoas não sabem o mal que nos fazem com o bem que nos querem fazer” (Golfeto). Parafraseando as palavras do apóstolo Paulo de Tarso, na carta aos Romanos, segundo consta do capítulo 7, versículo 19 das Escrituras Sagradas: "O bem que eu quero fazer, não faço; o mal, este me domina."
A disputa de Paulo de Tarso era uma resposta aos filósofos da época (estoicos, em especial), que defendiam haver um conflito interior entre a razão e as paixões. Por outro lado, os judeus argumentavam que o conhecimento da lei mosaica levava à perfeição. Já o apóstolo Paulo sustentava que a promoção do bem e do justo não resulta do esforço humano, mas é um dom gratuito da parte de Deus em Cristo Jesus.
Após o decreto de Mourão, uma série de ações judiciais foi proposta visando salvaguardar o cumprimento do princípio tributário da anterioridade e da nonagesimal, já que o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, editou o Decreto nº 11.374/2023, revertendo a benesse concedida pelo governo anterior.
Na ausência do presidente Jair Messias Bolsonaro (2019-2022), o vice-presidente Hamilton Mourão exerceu o cargo nos dias 30 e 31 de dezembro de 2022, concedendo as benesses tributárias supracitadas aos 47 minutos do segundo tempo, em edição extra do Diário Oficial da União. A medida entrou em vigor no dia seguinte à publicação, no derradeiro final do mandato da chapa Bolsonaro/Mourão.
Com a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 1º de janeiro, houve a revogação das benesses concedidas.
Sob o olhar de vários especialistas e analistas da matéria, para a incidência da anterioridade (alínea “b” do art. 150, inc. III – “proibição de cobrar tributo no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou”), mais precisamente do princípio da nonagesimal (alínea “c” do mesmo inciso), todos previstos na Constituição Federal de 1988, a questão acendeu debates no cenário fiscal e tributário.
No âmbito fiscal, o Decreto nº 11.322/2022 infringe os princípios constitucionais da moralidade, probidade e boa administração pública, dentre outros, conforme veremos a seguir.
A dívida pública federal de 2022, segundo dados do Tesouro Nacional, alcançou a cifra de R$ 5,951 trilhões, valor 6,02% maior que o de 2021 (R$ 5,614 trilhões). Dados do Instituto Fiscal Independente (IFI), órgão vinculado ao Senado Federal para monitoramento da dívida pública, apontam um crescente agravamento do déficit das contas públicas nos próximos anos.
Uma leitura panorâmica do Decreto nº 11.322/2022 permite uma série de abordagens que apontam para a inconstitucionalidade da benesse. O decreto padece de sofisma ao, sob o manto de incentivar, fomentar ou desonerar uma atividade econômica, violar o dever constitucional da boa administração pública, considerando o déficit fiscal do Tesouro Nacional. Em outras palavras, trata-se de uma transferência de renda sem contrapartida econômico-fiscal ao governo, nos termos do art. 14. da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000).
Da vedação da não-surpresa ante o desvio de finalidade como elemento intrínseco da moralidade administrativa
A redução das alíquotas do PIS e da Cofins, fruto do Decreto nº 11.322/2022, assinado pelo capelão Hamilton Mourão, configura desvio de finalidade, violando, assim, a moralidade administrativa à luz do princípio democrático e da vedação da não-surpresa, em cotejo com a Lei nº 10.609/2002 e o Decreto nº 7.221/2010, que regulam a transmissão da posse da Presidência da República.
O §1º do art. 2º da Lei nº 10.609/2002, que regula a transição de governo, prevê: os “membros da equipe de transição serão indicados pelo candidato eleito e terão acesso às informações relativas às contas públicas, aos programas e aos projetos do Governo federal”, de forma a preparar os atos a serem implementados pelo novo governo, conforme consta no caput do art. 1º da referida lei.
Ao todo, a norma prevê a criação de 50 (cinquenta) “cargos especiais de transição governamental” (art. 4º), tendo como escopo normativo garantir a transição pacífica e transparente da gestão, imprescindível para assegurar eficiência e equilíbrio das contas públicas, à luz da responsabilidade fiscal.
Nesse caso, a tutela da probidade administrativa converge com o princípio da transparência, buscando oferecer o máximo de visibilidade aos atos, contratos, políticas públicas e quejandos executados pelo governo em saída, de modo que o novo governo avalie a continuidade ou não de tais medidas, de acordo com o programa político sufragado nas urnas.
O acesso à informação sobre os atos do governo anterior é o que garante ao novo governo o estabelecimento de metas e objetivos a serem alcançados sob a nova administração da res pública.
Se feita com a devida transparência, a probidade administrativa estará atendida; do contrário, como no caso presente, ela será violada.
Diante do sarapatel gerado pelo ato/decreto inquinado, verifica-se a violação do princípio do interesse público em favor de um grupo específico. Sob a aparência de legalidade, o decreto visou impactar as contas públicas do governo em vias de ser empossado. Embora a forma seja aparentemente legítima, o fim revelou-se contaminado por inconstitucionalidade, em razão do desvio de finalidade. A finalidade, nesse caso, é um subproduto da moralidade administrativa e do interesse público.
É inconstitucional toda e qualquer benesse que não estipule uma contrapartida financeira ou econômica ao Estado, nos termos do art. 14. da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e seus incisos.
O Decreto nº 11.322/2022 viola o interesse público. O interesse público primário da tributação visa pacificar a nação por meio de exações justas[2]; no entanto, o destino final desse decreto foi drenar as contas públicas do novo gestor, que seria empossado no dia seguinte.
Nas palavras de Thiago Marrara:
“A moralidade como probidade exige do administrador a boa-fé na prática de suas condutas. Impõe que o agente público exerça a função pública no desejo de apenas concretizar os interesses públicos primários” (Marrara, op. cit., p. 167).
Ainda sobre moralidade administrativa, colho outra síntese de Thiago Marrara:
“Agir de acordo com a moralidade administrativa significa agir de acordo com as finalidades públicas legítimas” (Marrara, p. 165).
O governo-em-saída teve quatro anos para promover alterações no regramento tributário. No entanto, ao realizar tais mudanças às vésperas da posse do governo eleito, sem observar o devido atendimento ao art. 14. da LRF e aos princípios constitucionais da probidade, da boa administração pública e da transparência, o governo findo violou o núcleo central do princípio da nonagesimal e da anterioridade tributária, usurpando as prerrogativas constitucionais de legislar, previstas no art. 21. da Constituição Federal de 1988 (CRFB/88).
Diante da lesão às contas públicas no caso em testilha, resultante de uma aparente colisão de normas constitucionais pela manobra do capelão Hamilton Mourão, recordamos uma máxima popular que diz: “o diabo mora nas entrelinhas”.
Destarte, como ensina Juarez Freitas, “o combate contra toda e qualquer lesão moral ou imaterial provocada por ações públicas não universalizáveis de probidade e de honradez” (Freitas, p. 54) é imprescindível. No caso do decreto inquinado, verifica-se que o critério de interpretação da norma jurídica, pela simples subsunção do fato à norma, não alcança o fim teleológico proposto neste artigo. Isso ocorre porque o desvio de finalidade denunciado encontra-se sob a roupagem de aparente legalidade, com o objetivo de promover uma transferência ilegal de renda às classes abastadas.
Como bem afirmou Thomas Piketty:
“Desigualdade não é econômica ou tecnológica: é ideológica e política.”
Ações como as advindas do decreto inquinado visam fomentar a desigualdade tributária, aprofundando o abismo social que separa os brasileiros.
Não obstante as alegações acima apresentadas, persiste o princípio da vedação da não-surpresa, um dos pilares do ordenamento jurídico brasileiro, que se espraia para garantir uma transição pacífica de governos, em conformidade com o princípio da transparência e à luz da ética da responsabilidade, conforme defendida por Hannah Arendt.
Nesse sentido, propõe-se analisar o referido princípio a partir da perspectiva dos eleitores, que, ao avalizarem nas urnas a confiança no candidato vencedor, esperam a implementação de medidas voltadas à melhoria da vida e da convivência social.
À luz do princípio da responsabilidade de Hannah Arendt, apoiados na obra de Bethania Assy, destacamos:
“A ética da responsabilidade não remete a uma ética normativa ou prescritiva, baseada na ideia de um sujeito razoável ou moralmente bom. Ao contrário, uma ética da responsabilidade está ligada à visibilidade de nossas ações e opiniões articuladas publicamente, as quais, por sua vez, estão associadas ao cultivo de um ethos público” (Assy, p. XXXIV).
Sob o tilintar dos sinos de um governo derrotado nas urnas, e sob a responsabilidade do vice-presidente Hamilton Mourão na transição de governo, o que menos se esperava era a criação de um cenário com “granadas” programadas para explodir no campo adversário. Essas ações incluíram a subtração de aproximadamente R$ 6 bilhões das contas públicas, por meio de uma benesse concedida no crepúsculo do governo findo.
Considerações finais a respeito do princípio da nonagesimal em conflito com a vedação da não-supresa à luz da transparência derivada da moralidade administrativa
Convém anotar que o princípio da anterioridade nonagesimal foi incluído no texto constitucional pela Emenda Constitucional nº 42, de 19 de dezembro de 2003. A sequência tipológica oriunda da proposta do constituinte derivado visava fixar limites ao poder de tributar[3], de modo a evitar que o contribuinte fosse surpreendido por mudanças de governo e/ou calendário seguidas de acréscimos ou majorações de tributos.
Enquanto a alínea “b” do inciso III do art. 150. previa a “anterioridade tributária”, o inciso III, alínea “c”, introduziu um novo marco ao pôr fim a um costume legislativo até então vigente. Sobre isso, vejamos:
“O presente dispositivo constitucional vem atender a uma necessidade dos contribuintes, prestigiando a segurança jurídica em matéria tributária. Faz com que não mais possam ocorrer alterações na legislação em 31 de dezembro, como muitas vezes ocorreu, instituindo ou majorando tributos para vigência já a partir de 1º de janeiro.
Muitas vezes houve até edições extras do Diário Oficial em 31 de dezembro, sábado à noite, sem sequer ter chegado a circular, e que, no dia seguinte, sem conhecimento prévio, já geravam obrigações tributárias” (PAULSEN, p. 218).
E quando não é o contribuinte que é pego de surpresa, mas o governo que irá tomar posse no dia seguinte? E quando a decisão de reduzir alíquotas tributárias visa atingir as contas públicas do novo governo, subtraindo-lhe a capacidade financeira e orçamentária para o cumprimento das propostas sufragadas nas urnas? Neste caso, não haveria um aparente conflito entre princípios de envergadura constitucional?
Parafraseando Guimarães Rosa: os perigos da interpretação constitucional são muitos. No caso em análise, observa-se que a literalidade do texto, aplicada pelo critério subsuntivo, não contempla o dever fundamental da boa administração pública, da gestão fiscal e de princípios correlatos. Como bem pontua Eros Roberto Grau:
“O texto normativo (...) não contém imediatamente a norma. A norma é construída pelo intérprete, no decorrer do processo de concretização do direito; o preceito jurídico é matéria que precisa ser ‘trabalhada’” (GRAU, p. 33).
Enfim, ao assumir a Presidência da República nos dias 30 e 31 de dezembro, Hamilton Mourão agiu não como vice, mas como um vício. E por que não recorrer a uma paráfrase da canção do Kid Abelha: "meu vício agora é esvaziar as finanças do novo governo", como destacado acima?
Considerações finais
Se, ao tempo da transição do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002, PSDB) para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011, PT), houve por bem a criação da Lei nº 10.609/2002 e do Decreto nº 7.221/2010 para garantir a transparência e a pacificidade na transição de governos democráticos, doravante, cabe à doutrina e ao magistério acadêmico resgatar, nas salas de aula, a importância de uma transição pacífica entre governos, em cumprimento aos deveres constitucionais de transparência, lealdade e vedação da não-surpresa.
Medidas fiscais e econômicas de governos em final de mandato, que tendem a impactar negativamente o governo em vias de ser empossado, precisam ser analisadas sob uma ótica panorâmica do texto constitucional.
Enfim, o decreto do capelão da República, sob a aparência de fazer o bem, terminou por fazer mal, muito mal, às contas públicas do governo prestes a tomar posse. Nesse caso, o "bem" (a diminuição das alíquotas) não passou de um álibi retórico para drenar as finanças públicas, em violação ao disposto no art. 14. da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Referências bibliográficas
PAULSEN, Leandro. Direito Tributário: Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e jurisprudência. 16º ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.
Marrara, Thiago. Princípios de direito administrativo. Legalidade, segurança jurídica, impessoalidade, publicidade, motivação, eficiência, moralidade, razoabilidade, interesse público. Marrara, Thiago (org.) – São Paulo: Atlas, 2012.
KENNER, Craig S. Comentário histórico-cultural da Bíblia. Novo Testamento. Tradução de José Gabriel Said, Thomas Neufeld de Lima. São Paulo: Vida Nova: 2017.
GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes (a interpretação/aplicação do direito e os princípios). 6ª ed. refundida do ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros Editores, 2013.
Freitas, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 3ª ed. rev. e amp. São Paulo: Malheiros Editores, 2004.
Assy, Bethania. Ética, responsabilidade e juízo. 1ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2015.
PIKETTY, Thomas. Capital e Ideologia. 1ª ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
Notas
1 https://www.conjur.com.br/2023-jan-05/revogacao-decreto-pis-cofins-causar-chuva-acoes , acessado em 31 de janeiro de 2023.
2 Leandro Paulsen (op. cit. 13) com esteio em Diego Ferraz Lemos in A Supremacia do Interesse Público, comenta: “(...) o interesse público no Direito Tributário não é arrecadatório, pois não se confunde com o interesse do Estado e da sociedade como um todo ...(....) o interesse público no Direito Tributário, à luz da moderna fundamentação e da noção que se tem do interesse maior do Direito, é o de que a tributação se dê de uma forma que observe as normas constitucionais, respeitando-as e promovendo o seu respeito por toda a sociedade; (....) é de contribuir à mencionada pacificação social por meio da imposição de exações justas, (...) e propiciem o custeio e à mantença das atividades estatais necessárias ao desenvolvimento da coletividade.
3 A constituição de 1988, Seção II, inaugurou um capítulo novo na história republicana e constitucional brasileira. Pela primeira vez, o texto constitucional dedicou uma seção inteira para tratar das garantias do contribuinte frente ao Fisco.