A sentença de abertura judicial da falência impõe ao magistrado a observância de todos os requisitos legais contidos no art. 99 da Lei 11.101/05, pena de nulidade2. Dentre os requisitos da sentença está a necessidade de exata fixação do termo legal da falência, sendo que, consoante regra do inc. II, a retroação deverá ser: (i) 90 dias a contar do pedido de falência; (ii) 90 dias do pedido de recuperação judicial ou (iii) do 1º protesto por falta de pagamento, excluídos os protestos cancelados. É exatamente acerca do disposto no inc. II do art. 99 da lei de regência que tratará o presente ensaio3.
Inicialmente, já expusemos críticas acerca da alteração do lapso temporal, de 60 dias para 90 dias, considerando-se a ab-rogada regra do art. 14, inc. III do Dec.-Lei 7.661/45 e a Lei 11.101/054.
De fato, com a edição da lei de 2005 perdeu-se grande oportunidade de se levar a efeito indispensável revisão do termo legal da falência, sendo que, a nosso sentir, não percebeu o legislador (ou não teve incentivo para tal percepção) que há necessidade de levar a efeito profunda investigação a respeito dos atos praticados pelo devedor antes da decretação da falência, não só dentro do chamado termo legal, mas sim, no contexto do período suspeito5, lapso temporal que com aquele se não confunde, porquanto anterior. Desde logo, cabe expor o entendimento de Fábio Ulhoa Coelho sobre o relevante tema:
Quando a falência tem por fundamento a impontualidade injustificada ou execução frustrada, o termo legal não pode retrotrair por mais de 90 dias do primeiro protesto por falta de pagamento; na hipótese de pedido fundamento em ato de falência ou de autofalência, o termo legal não pode retrotrair por mais de 90 dias da petição inicial; e se é caso de convolação em falência de recuperação judicial ou de recuperação extrajudicial homologa em juízo, não pode retrotrair por mais de 90 dias do respectivo requerimento6
Trata a lei, destarte, destas hipóteses legais, quais sejam: (a) termo legal a partir do pedido de falência formalizado por legitimado [por ato de falência] ou pelo próprio devedor (a denominada “autofalência”); (b) termo legal a contar da data de distribuição do pedido de reestruturação judicial ou data da homologação judicial de recuperação extrajudicial, em caso de convolação e (c) termo legal a partir do primeiro protesto válido em caso de pedido de falência arrimado em impontualidade injustificada ou execução frustrada (art. 99, inc. I e II).
Especificamente no tocante à convolação de recuperação judicial em falência, o termo legal, conforme regra legal, há de ser fixado em até 90 (noventa) dias contados da data do pedido de recuperação judicial, a teor do inciso II, do art. 99, da lei de regência. Não é cabível, salvo melhor juízo, a hipótese de fixação do termo legal a contar do primeiro protesto por falta de pagamento, justamente porque há precedente recuperação judicial em curso.
A hipótese não trata de pedido de falência formulado por credor, diante de impontualidade injustificada ou execução frustrada, ou mesmo de pedido de autofalência, formalizada pelo devedor.
Uma indagação sobreleva: Para fins de fixação do termo legal da falência, poderia haver interpretação ampliativa [extensiva], no caso de convolação do regime recuperatório, fixando-se-o a contar, retroativamente, do primeiro protesto por falta de pagamento, por exemplo? Quer-se crer que a resposta é negativa, e explica-se/justifica-se o porquê.
Por mera opção política, o legislador de 2005 entendeu que a fixação do termo legal da falência teria as balizas legais elencadas no art. 99, inc. II da Lei 11.101/05, não cabendo ao magistrado - o intérprete autêntico, como dizem Kelsen e Eros R. Grau7 -, no caso concreto, proceder a uma interpretação extensiva [ampliação do sentido do texto legal]8. A respeito do tema, expõe Tercio Sampaio Ferraz Junior:
Trata-se de um modo de interpretação que amplia o sentido da norma para além do contido em suja letra. Isso significa que o intérprete toma a mensagem codificada num código forte e a decodifica conforme código fraco. Argumenta-se, não obstante, que desse modo estará respeitando a ‘ratio legis’, pois o legislador (obviamente, o legislador racional), não poderia deixar de prever casos que, aparentemente, por uma interpretação meramente especificadora, não seria alcançados9
Por outro lado, em tese, objetivando a efetiva integração do direito - diante de lacuna legal, efetiva ou aparente [inexistente na lei em exame] -, não cabe ao magistrado criar norma no caso concreto, estabelecendo outro termo legal quando se trata de específica convolação de regime recuperatório para a falência. A lei estabelece literalmente o parâmetro a ser seguido: até 90 dias a contar da distribuição da ação de recuperação judicial.
Com efeito, fosse o caso de lacuna normativa - não o é - poder-se-ia, em tese, falar em atividade integrativa por parte do magistrado ao convolar a reestruturação judicial em falência. Mas, é vedado, na medida em que ultrapassa os limites permitidos à atividade integradora (lacunas que só o legislador pode “preencher” com a edição da lei necessária: por exemplo, as lacunas no ordenamento penal)10. A doutrina assim pondera:
Conforme Tercio Sampaio Ferraz Jr, em casos gerais onde há lacuna na lei, o intérprete deve demonstrar que a extensão do sentido está contido no espírito da lei, mas em se tratando do enunciado sob análise, o entendimento é de que incabível tal elasticidade interpretativa11
Fosse, de fato, necessária a integração do enunciado legal [insuficiência da fórmula legal estampada no dispositivo constante da Lei 11.101/05] - não sendo o caso, conforme acentuado - a tarefa caberia ao legislador12.
Por fim, todo o conhecimento científico tem caráter eminentemente provisório, está sempre aberto às novas pesquisas, com descobertas e outros resultados poderão advir, certamente.
A interação entre sujeito cognoscente e objeto cognoscível é viva, pulsante e cada contato entre eles faz com que surjam novos resultados. Disso decorre que nas disquisições científicas inexistem juízos definitivos ou verdades absolutas, qual ensina o ceticismo pirrônico.
Cabe repetir as sábias e sempre presentes palavras de Ovídio: medio tutissimus ibis.
CPC, art. 489.︎
O raciocínio que aqui se vai desenvolver é o lógico, ou seja, segue as leis da dedução e se faz geralmente por meio de um silogismo para determinação da consequência jurídica, conforme Orlando Gomes. Introdução ao direito civil. 12ª edição. Rio de janeiro: Forense, 1996, p. 37. A propósito, houve utilização de metodologia própria para se chegar ao resultado da investigação científica. A respeito do método, bem explica Mario Bunge que é um procedimento regular, explícito e possível de ser repetido para conseguir-se alguma coisa, seja material ou conceitual. Epistemologia: curso de atualização. São Paulo: T.A. Queiroz Editor, Editora da Universidade de São Paulo, 1980, p. 19.︎
Sobre o tema: CLARO, Carlos R. Falência: ineficácia e revogação de ato no processo falimentar. 2ª edição. Curitiba: Juruá, 2020.︎
Op. cit., pp. 85-86. E prossegue o autor: o que resta ao jurista sistemático, então, é interpretar os dispositivos legais, colocando ao alcance da mão os métodos sistemático e teleológico, sempre com argumentação jurídica pertinente. Op. cit., p. 86.︎
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Comentários à nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas (Lei n. 11.10, de 9.2.2005). São Paulo: Saraiva, 2005, p. 276. Marlon Tomazette segue na mesma linha: Assim, caso se trate de um pedido de falência baseado na impontualidade, o termo legal poderá ser fixado em até 90 dias antes do primeiro protesto por falta de pagamento, excluídos os que foram cancelados. Nos casos de autofalência, ou de pedido de falência fundado na execução frustrada ou nos atos de falência, o termo legal poderá ser fixado em até 90 dias contados da distribuição do pedido. Por fim, no caso de recuperação judicial convolada em falência, o termo legal poderá retroagir até 90 dias contados da distribuição do pedido de recuperação judicial. Curso de direito empresarial, volume 3: Falência e recuperação de empresa. 4ª edição. São Paulo: Atlas, 2016, pp. 351-352. Por fim, José da Silva Pacheco: A sentença de que estamos tratando deverá fixar o termo legal da falência, sem poder retrotraí-lo por mais de 90 (noventa) dias contados: a) do pedido de falência; b) do pedido de recuperação judicial; c) do 1º (primeiro) protesto por falta de pagamento, excluindo-se para essa finalidade, os protestos que tenham sido cancelados. Processo de recuperação judicial, extrajudicial e falência. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 250.︎
GRAU, Eros R. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 3ª edição. São Paulo: Malheiros, 2005. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.︎
Escreve André Franco Montoro: A interpretação é extensiva quando o intérprete conclui que o alcance da norma é mais amplo do que indicam os seus termos. Diz-se que o legislador, nesse caso, escreveu menos do que queria (minus scripsit quam voluit) e a lei deve aplicar-se a determinadas situações não previstas expressamente. Introdução à ciência do direito. 25ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 374. Grifos no original. Acerca do “dogma da onipotência do legislador”, esclarece Norberto Bobbio que este implica, portanto, num outro dogma estreitamente ligado ao primeiro, o da ‘completitude’ do ordenamento jurídico. O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 74. Destaques no texto original.︎
Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4ª edição. São Paulo: Atlas, 2003, p. 297. Destaque no original. Sobre o tema: MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica jurídica e aplicação do direito. 18ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1998.︎
FERRAZ JR, Tercio S. Op. cit., p. 300.︎
CLARO, Carlos R. A continuidade provisória da atividade econômica na falência. ABRÃO, Carlos H.; TSOUROUTSOGLOU, Irini, WIEDEMANN NETO, Ney, LUCON, Paulo H. dos S; BENETI, Sidnei (coord.). A disrupção do direito empresarial: estudos em homenagem à Ministra Nancy Andrighi. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 35.︎
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Assevera Carlos Roberto Claro: Nessa linha, ensina Caio Mario da S. Pereira que não compete aos ‘tribunais formular regras jurídicas, senão aplica-las [...] A Corte de Justiça não elabora a regra, porém diz ou declara o direito, arrimada à disposição legislativa que é, por isso, mesmo, a sua fonte. A função criadora da norma pertence ao Poder Legislativo. O Judiciário cinge-se aplica-la ou interpretá-la, ou a verificar a declarar a existência do costume, razão por que se recusa aos arestos e decisões o caráter gerador de direito’. A disrupção do direito empresarial: estudos em homenagem à Ministra Nancy Andrighi. Op. cit., p. 35. Grifos no original. Assevera Norberto Bobbio que a lacuna tem a ver com a ausência de critérios válidos para decidir qual norma aplicar. Teoria geral do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 281. Esclarece ainda que existe sentido da lacuna, ou seja, a ausência não de uma solução, seja ela qual for, mas de uma ‘solução satisfatória’, ou, em outras palavras, não a ausência de uma norma, mas a ausência de uma ‘norma justa’, ou seja, daquela norma que gostaríamos que existisse, mas não existe. Op., cit., p. 281. Destaques no original. Acentua Emilio Betti em clássica obra: O fenômeno designado como ‘lacuna’ é sempre aquele de uma deficiência ou incoerência da disciplina legal, percebida mediante uma comparação entre as partes desta ou entre ela e a sua finalidade: deficiência ou incoerência que propõe - junto com uma aporia característica - o problema de integrar as partes no todo ou de restabelecer a coerência das avaliações normativas no seu complexo. Interpretação da lei e dos atos jurídicos. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 61. Grifo no original. Chaïm Perelman faz constar que a percepção de uma lacuna na lei significa claramente que, para o juiz, a solução não poderá ser obtida por meio de dedução, a partir do texto legal. Se ele tiver, não obstante, de preencher a lacuna, motivando ao mesmo tempo sua decisão, só poderá fazê-lo recorrendo a formas de raciocínios da lógica formal. Lógica jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 63.︎
Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo:Por que não cabe ao magistrado criar norma no caso concreto ao converter a reestruturação judicial em falência? O que caracteriza uma lacuna normativa e como ela deve ser tratada segundo a doutrina? Quais são as hipóteses legais para a fixação do termo legal da falência segundo o art. 99 da Lei 11.101/05?