Direitos da população LGBT na saúde: nome e gênero

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SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. O nome – 2.1. O nome social – 2.1.1. O Decreto nº 10.977/2022 – 2.2. Normas sobre o nome social na área da saúde – 2.2.1. O nome na saúde em geral (pública e privada): a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde – 2.2.2. O nome social na saúde pública: a Política Nacional de Saúde Integral LGBT – 2.2.3. O nome social na saúde pública federal: o Decreto nº 8.727/2016 – 2.2.4. O nome social na saúde suplementar – 2.3. Alterabilidade do nome civil – 2.3.1. A ADI nº 4275/DF, do STF – 2.3.2. O Provimento nº 73/2018, do CNJ – 2.3.3. A Lei nº 14.382/2022 – 3. O gênero – 3.1. O procedimento de afirmação de gênero: considerações iniciais – 3.2. O procedimento de afirmação de gênero na saúde pública (SUS) – 3.2.1. A Portaria nº 2.803/2013, do Ministério da Saúde – 3.2.2. A Portaria nº 457/2008, do Ministério da Saúde – 3.3. O procedimento de afirmação de gênero na saúde privada pela via particular – 3.3.1. O procedimento de afirmação de gênero na saúde privada pela via do plano de saúde – 3.3.1.1. A Lei dos Planos de Saúde (Lei nº 9.656/1998): o rol da ANS e as outras possibilidades de cobertura – 4. Conclusão – 5. Referências.

RESUMO: Este trabalho tem como objeto o exame dos direitos da população LGBT no Brasil relacionados ao nome e ao gênero, tanto no âmbito da saúde pública quanto no da saúde privada. O estudo se detém com maior vagar sobre o procedimento de afirmação de gênero (dito processo transexualizador).

PALAVRAS-CHAVE: LGBT. Planos de saúde. Nome. Gênero.

1. Introdução

Neste estudo, propomos a abordagem de alguns diretos na saúde pública e na saúde privada do Brasil pelo prisma da população LGBT. População LGBT, aqui, é uma expressão que empregamos exclusivamente com fins de organização da pauta.

Para tanto, examinaremos as normas que nos parecem fundantes dos temas nome e gênero. No que se refere aos planos de saúde, consideraremos apenas os regulamentados, isto é, aqueles que estão sujeitos aos termos da Lei nº 9.656/1998 (Lei dos Planos de Saúde) e da regulamentação da ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar.

Para fins de enquadramento temporal, este estudo foi finalizado em janeiro de 2023.

2. O nome

No Brasil, a previsão legal do direito ao nome está no artigo 16 do Código Civil, que se situa num capítulo intitulado Dos Direitos da Personalidade. O fundamento constitucional dos direitos de personalidade é a dignidade da pessoa humana1. Assim, essa localização do artigo 16 não pode deixar de ter algum sentido – ela nos induz a realizar a interpretação de seus dispositivos sob a premissa da primazia da personalidade. Orlando Gomes 2 explica (grifo do original):

“A personalidade define-se por particularidades que, em conjunto, a individualizam.
Tais são: a) o nome; b) o estado; c) o domicílio.
(...)
Sob a denominação de direitos da personalidade, compreendem-se direitos considerados essenciais ao desenvolvimento da pessoa humana, que a doutrina moderna preconiza e disciplina, no corpo do Código Civil, como direitos absolutos. Destinam-se a resguardar a eminente dignidade da pessoa humana.”

Washington de Barros Monteiro compactua do pensamento, citando Josserand, e afirma que o nome é “sinal distintivo revelador da personalidade”3.

A própria ordem vocabular do artigo 16 pode ser dada como outro norte interpretativo nesse sentido: o termo pessoa vem antes de nome. O enfoque do intérprete precisa estar no sujeito do direito, não no direito em si como um fetiche ou uma abstração. Afinal, em se tratando da personalidade, é o direito que serve à pessoa, não o contrário.

O nome civil é aquele com que a pessoa está registrada nos assentos oficiais do Estado – o registro civil. Conta-nos Washington de Barros Monteiro 4 que o escritor francês Guy de Maupassant ironizou a rigidez do registro civil. Por curiosidade, buscamos e encontramos o texto em que isso consta – trata-se do conto Um louco, de que traduzimos aqui o trecho referido por nosso civilista:

“O que é sagrado, por exemplo, é o registro civil. Eis aí! É ele que defende o homem.
O ser é sagrado porque está inscrito no registro civil! Respeito ao registro civil, o Deus legal! Ajoelhai-vos!
O Estado pode matar, porque ele tem o direito de modificar o registro civil. Quando ele manda degolar duzentos mil homens numa guerra, ele os risca de seu registro civil, ele os suprime pela mão de seus escrivães. E fim. Mas nós, que não podemos mudar as escrituras dos cartórios, nós devemos respeitar a vida. Registro civil, gloriosa Divindade que reinas nos templos estatais, eu te saúdo. Tu és mais forte que a Natureza! Ah! ah!”5

Maupassant não estava errado. A origem do registro civil remonta à Idade Média como criação da Igreja Católica; no Brasil, o Império adotou os registros eclesiásticos, tendo havido gradativa secularização do instituto ao longo dos anos6. Essa história é, possivelmente, uma das razões pelas quais a alteração do nome no registro civil permaneceu como duradouro tabu em nosso país.

É importante, também, observar que o artigo 11 do Código Civil afirma que “com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”. Num raciocínio simples, impor à pessoa um nome inadequado significa obrigá-la, ao arrepio da lei, a renunciar a uma parte de sua personalidade.

Direito e sociedade evoluíram, e surgiram novas concepções que flexibilizaram a tradicional rigidez registral a partir da compreensão de que o nome civil pode se vir a se tornar inadequado, e é nesse aspecto que despontam os temas do nome social e da alterabilidade do nome civil.

2.1. O nome social

Clarice Lispector7 escreveu que o nome “é um acréscimo e impede o contato com a coisa.” Ocorre que o nome, quando referente a pessoas, não pode ser esse acréscimo que distancia a essência destas. Por outras palavras: não é qualquer nome que atende à dignidade da pessoa humana e manifesta a personalidade do indivíduo.

Por ser inerente à personalidade, é a pessoa, em primeiro lugar, que deve se identificar com seu nome. Não há sentido em se impor a alguém um nome que não seja condizente com sua pessoa, o que somente ela pode avaliar, sob pena de o nome se reduzir a um rótulo que objetifica.

A locução nome social dispensa grandes explicações. É o nome pelo qual uma pessoa se identifica e deseja ser identificada no seio social, nos lugares onde se desenvolve a sua vida.

O nome social ganhou notoriedade na pauta do pensamento jurídico especialmente a partir da causa LGBT, em que a questão das relações entre sexo e gênero tem maior sensibilidade. No entanto, em outros tempos, Orlando Gomes já registrava, de modo totalmente alheio aos temas LGBT, que se admite “uma espécie de posse do nome, pela qual se comprova ter o indivíduo, realmente, o nome que usa pacificamente durante muitos anos”8. Foi, sem dúvida, uma lição avant la lettre do nome social.

Mesmo assim, com uma propensão à temática LGBT, temos, no Brasil, normas que procuraram conceituar o nome social. É o caso, por exemplo, da Resolução nº 11, de 18 de dezembro de 20149, do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – CNCD/LGBT, que procura orientar a lavratura de boletins de ocorrência emitidos pelas autoridades policiais, para a qual nome social é “aquele pelo qual travestis e transexuais se identificam e são identificadas pela sociedade”10.

Outra norma a conceituar o nome social foi a Portaria nº 233, de 18 de maio de 2010, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão11, revogada pela Portaria nº 2.508, de 18 de março de 2022. O objeto da Portaria nº 233/2010 era assegurar o uso de nome social aos servidores da administração pública federal travestis e transexuais. Dizia a norma que nome social é aquele pelo qual essas pessoas se identificam e são identificadas pela sociedade.

Mais uma norma a prever o uso do nome social é a Portaria nº 2.80312, de 19 de novembro de 2013, do Ministério da Saúde, que analisaremos com mais vagar adiante, a qual trata de atos e procedimentos de saúde na afirmação de gênero (processo transexualizador). Essa norma protege o uso do nome social nos termos de seu artigo 4º, inciso I, e de seu Anexo I.

Também a Portaria nº 45713, de 19 de agosto de 2008, do Ministério da Saúde, que regulamenta a estruturação e aparelhamento do serviço público de saúde para o processo de afirmação de gênero, prevê o direito de uso do nome social no formulário de anamnese de paciente (Anexo III, item I-A).

Todavia, no nosso entendimento, ao contrário do que muito se pensa e se afirma, o nome social não pode ser considerado exclusividade, privilégio ou apanágio da população LGBT. O nome social é nome, e, portanto, um atributo da personalidade, e, destarte, um direito de qualquer pessoa.

Na Exposição de Motivos do Anteprojeto do Código Civil, Miguel Reale parece ter registrado uma sutil profecia sobre a evolução do tratamento jurídico do nome14 (grifo do original):

“Todo o capítulo novo foi dedicado aos Direitos da personalidade, visando à sua salvaguarda, sob múltiplos aspectos, desde a proteção dispensada ao nome e à imagem até o direito de se dispor do próprio corpo para fins científicos ou altruísticos. Tratando-se de matéria de per si complexa e de significação ética essencial, foi preferido o enunciado de poucas normas dotadas de rigor e clareza, cujos objetivos permitirão os naturais desenvolvimentos da doutrina e da jurisprudência.”

Assim, existe elasticidade suficiente para nos permitir identificar no artigo 16 do Código Civil uma previsão legal do nome social. Afinal, o Código não foi restrito a alguma espécie de nome – e, como se sabe, não devemos fazer distinção onde a própria lei não a faz (ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus).

Em outras palavras: o nome social é nome. Logo, nosso entendimento é de que dele se ocupa o Código Civil no artigo 16 tanto quanto do nome civil.

2.1.1. O Decreto nº 10.977/2022

O Decreto nº 10.97715, de 23 de fevereiro de 2022, regulamenta duas Leis para estabelecer os procedimentos e os requisitos para a expedição da Carteira de Identidade por órgãos de identificação dos Estados e do Distrito Federal, e para estabelecer o Serviço de Identificação do Cidadão como o Sistema Nacional de Registro de Identificação Civil.

O artigo 13 desse Decreto trata do direito de o titular solicitar a inclusão do nome social no documento de identidade. Vale ressaltar que esse Decreto revogou congênere que já previa o mesmo direito – o Decreto nº 9.278, de 5 de fevereiro de 2018.

2.2. Normas sobre o nome social na área da saúde

Há normas sobre o nome (especialmente o social) que foram editadas especificamente no âmbito da saúde. Nesse grupo de normas, há as que são comuns à saúde pública e à saúde privada, assim como há normas direcionadas apenas à saúde pública e, finalmente, normas pontuais de aplicação restrita à saúde privada.

2.2.1. O nome na saúde em geral (pública e privada): a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde

Uma das maiores inovações, em nosso país, foi a edição da Portaria nº 1.820, de 13 de agosto de 2009, pelo Ministério da Saúde, denominada “Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde”, atualmente na sua 3ª edição16.

É na Apresentação da Carta que se consagra a sua aplicabilidade, e dela transcrevemos (grifos nossos):

“O documento, que tem como base seis princípios básicos de cidadania, caracteriza-se como uma importante ferramenta para que o cidadão conheça seus direitos e deveres no momento de procurar atendimento de saúde, tanto público como privado.
O presente documento foi elaborado de acordo com seis princípios basilares que, juntos, asseguram ao cidadão o direito básico ao ingresso digno nos sistemas de saúde, sejam eles públicos ou privados.”

Trata-se, portanto, de norma bivalente: alcança tanto a saúde pública quanto a saúde privada. São direitos de qualquer usuário – integrante, ou não, da população LGBT – em qualquer atendimento de saúde, em suma. O direito de uso do nome social consta do artigo 4º, parágrafo único, inciso I, e sua boa redação não deixa dúvidas interpretativas. Mesmo assim, vale fazermos algumas considerações sobre ela.

Ao se referir a todo documento do usuário e usuária, a norma tem sentido taxativo. Nenhum documento, qualquer que seja, no âmbito das saúdes pública e privada, poderá deixar de conter campo para registro do nome social. Cabe, portanto, a todas as unidades e recursos da saúde pública, e a todas as entidades, empresas e segmentos da saúde privada, assegurar o uso do nome social em quaisquer dos documentos do usuário. Isso abrange, por exemplo, fichas de cadastro, receituários, prontuários, carteiras de identificação de planos e seguros de saúde, pulseirinhas de identificação – ou qualquer outro documento. Registramos, a propósito, que a plena eficácia da norma deixa implícito que o sentido do termo documento seja o da técnica jurídica, abrangendo não somente papéis, mas também os demais suportes físicos ou virtuais, como, por exemplo, os aplicativos e programas informáticos utilizados nas saúdes pública e privada;

A norma deixa assegurado o uso do nome de preferência. Portanto, a escolha do nome a ser utilizado – nome social ou nome civil – fica exclusivamente a critério e ao arbítrio do usuário. Não há margem para escusas primitivas como as decantadas lacunas dos sistemas informáticos, especialmente na perspectiva de que a Portaria sob comento vige há mais de uma década.

Por fim, anotamos que a Portaria não previu penalidades para seu descumprimento. Com isso, as violações poderão, eventualmente, ser avaliadas em face de outras normas jurídicas, conforme quem seja o infrator e conforme as demais circunstâncias. De todo modo, o direito está claro, e a expectativa mais civilizada é a de que ele seja respeitado espontaneamente.

2.2.2. O nome social na saúde pública: a Política Nacional de Saúde Integral LGBT

O Ministério da Saúde editou, pela Portaria nº 2.83617, de 1º de dezembro de 2011, a chamada Política Nacional de Saúde Integral LGBT.

Trata-se de um conjunto de disposições de aplicação restrita à saúde pública (SUS), com o “objetivo geral de promover a saúde integral da população LGBT, eliminando a discriminação e o preconceito institucional e contribuindo para a redução das desigualdades e para consolidação do SUS como sistema universal, integral e equitativo” (artigo 1º).

A Portaria dispõe, em seu artigo 2º, inciso XVII, sobre o uso do nome social por travestis e transexuais. Atualmente, pode-se dizer que esse texto de 2011 não está feliz ao restringir o uso do nome social a travestis e transexuais, pois, como vimos anteriormente neste estudo, o nome social é franqueado a qualquer pessoa que tenha essa vontade a partir de sua percepção mais íntima. Paradoxalmente, esse inciso XVII faz referência à Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, que, por sua vez, e mesmo sendo mais antiga, não cometeu o deslize de se referir exclusivamente a travestis e transexuais, utilizando, em vez disso, a expressão usuário e usuária. Por conta dessa referência, e por se tratar de uma política focada na população LGBT, entendemos que o trecho travestis e transexuais deve ser interpretado extensivamente, de modo a contemplar qualquer pessoa da população LGBT, ou mesmo de fora desta, que deseje fazer uso de nome social.

No artigo 4º, inciso III, o nome social torna a ser mencionado pela Portaria, e novamente o verbo garantir é utilizado para a alusão ao uso dele. O verbo garantir é enfático e denota uma obrigação de fim, não de meio. Trata-se, portanto, de assegurar, de conseguir efetivamente que o nome social seja utilizado e aceito.

Assim, é essa Portaria nº 2.836/2011 do Ministério da Saúde que torna obrigatória a aceitação do nome social no âmbito da saúde pública.

No mais, essa Portaria não previu penalidades aplicáveis em casos de descumprimento. Em havendo violação a ela, será preciso invocar outras normas jurídicas, de cunho punitivo, para a penalização dos infratores.

2.2.3. O nome social na saúde pública federal: o Decreto nº 8.727/2016

O Decreto nº 8.72718, de 28 de abril de 2016, da Presidência da República, tratou de dispor sobre “o uso do nome social (...) de pessoas travestis ou transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional” (artigo 1º). Foi esse Decreto, talvez, o primeiro a procurar definir o que seja nome social, afirmando ser a “designação pela qual a pessoa travesti ou transexual se identifica e é socialmente reconhecida”.

Em vista do que já abordamos anteriormente neste estudo, essa definição de nome social já está parcialmente obsoleta, já que o nome social não é apanágio de travestis ou transexuais. Entendemos, assim, que a norma disse menos do que deveria, devendo ser praticada a interpretação extensiva, de modo que o nome social não seja definido de forma restrita a travestis ou transexuais, valendo para todo indivíduo do público LGBT ou de fora dele.

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Seja como for, o grande mérito desse Decreto não são essas definições. Seu grande mérito foi estender a toda a administração pública federal – não apenas no âmbito da saúde, como as normas anteriormente analisadas. Assim, no que interessa ao presente estudo, esse Decreto veio reforçar o uso do nome social em todas as instalações da saúde pública federal: hospitais federais, instalações da administração pública federal relacionadas à saúde etc.

O caput do artigo 2º e o artigo 6º desse Decreto privilegiam a vontade da pessoa quanto ao uso do nome social. Já os artigos 3º e 4º abordam a questão dos suportes do nome (sistemas, documentos e afins), e o artigo 6º mescla os tópicos da vontade da pessoa e dos suportes.

São preceitos claros, redigidos em termos simples, de modo que nossa única crítica interpretativa diz respeito à necessidade de se ampliar o público de travestis e transexuais para qualquer pessoa do público LGBT ou de fora deste.

2.2.4. O nome social na saúde suplementar

Não consta norma específica do uso de nome social na regulação da ANS.

Pelo que pesquisamos, a ANS adotava uma orientação operacional segundo a qual era preciso que o nome do beneficiário do plano de saúde, informado pelas operadoras à ANS, correspondesse ao nome existente no cadastro da Receita Federal do Brasil, por conta do cruzamento de dados com o Sistema de Informação de Beneficiários (SIB) da própria ANS. Todavia, a ANS reconhecia o direito de uso do nome social previsto na já comentada Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde. Citamos, nesse sentido, uma resposta dada pela ANS a consulta formulada a ela por uma operadora em 2017 (Registro de Atendimento nº 5266957/3486560, Protocolo Fale Conosco nº 374247)19.

Porém, pelo menos desde 2021 a ANS vem incorporando em seus procedimentos sistêmicos campos de identificação do nome social, em linha com o que é previsto pelo já comentado Decreto nº 8.727/2016. É o que se verifica no documento Padrão TISS Organizacional, de 31 de julho de 202120 (item IV, números 8.22 e 8.29).

No ano de 2022, a ANS editou a Nota Técnica nº 10/2021/GASNT/DIRAD-DIDES/DIDES21, no âmbito do processo nº 33910.023542/2021-80. Seu objetivo foi a análise de efetividade da Resolução Normativa nº 389, de 26 de novembro de 2015, que tratava do tráfego de informações de saúde suplementar entre a ANS e as operadoras. Na Nota Técnica, o tema do nome social foi abordado nos parágrafos 128, 160, 171 e 182 (letra “d”).

No entanto, na revogação da referida Resolução Normativa nº 389/2015, a nova norma que a substituiu, a Resolução Normativa nº 509, de 30 de março de 202222, foi omissa quanto à previsão expressa do nome social, tendo feito uso, apenas e tão-somente, do termo “nome”, tout court, ao se referir às pessoas dos beneficiários. Em vista de toda a legislação que estudamos aqui, e das próprias recentes orientações da própria ANS acima mencionadas, não nos parece haver uma grave questão nesse texto da novel norma, conquanto, por outro lado, pensemos que foi desperdiçada uma boa oportunidade para a expressa previsão do nome social na seara regulamentar dos planos de saúde.

2.3. Alterabilidade do nome civil

Neste tópico, trataremos da alteração do prenome, de modo que não abordaremos as hipóteses atinentes ao sobrenome. Isso porque, como se sabe, especialmente no campo da temática LGBT, é o prenome que costuma carregar significado de gênero masculino ou feminino, o que pode ser observado até mesmo nos casos de nomes neutros (conforme seja a percepção de seu titular).

2.3.1. A ADI nº 4275/DF, do STF

Pela ótica da inconstitucionalidade por omissão, tem relevo, a partir de 1988, o protagonismo do Supremo Tribunal Federal (STF), que tomou importantes decisões no tocante aos direitos da população LGBT.

Ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4275/DF23, por acórdão datado de 01/03/2018, o STF decidiu pela possibilidade de mudança de prenome e/ou de gênero em cartório por transgêneros, administrativamente, independentemente de cirurgias ou laudos.

A ementa do acórdão afirma que a identidade de gênero “é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la”, bastando que a pessoa transgênero que realize “autoidentificação firmada em declaração escrita” para ter o “direito fundamental subjetivo à alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil pela via administrativa ou judicial, independentemente de procedimento cirúrgico e laudos de terceiros”.

O STF enfrentou a questão da alteração do nome e do gênero por meio da confrontação, com o texto da Constituição da República, do artigo 58 da Lei nº 6.015/1973 (a chamada Lei dos Registros Públicos): “Art. 58. O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios.”

2.3.2. O Provimento nº 73/2018, do CNJ

A partir da decisão do STF na citada ADI nº 4275/DF, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou o Provimento nº 73, de 28/06/201824 (cujos consideranda, saliente-se, foram muito felizes ao mencionar o movimento de despatologização de alguns tipos LGBT pela CID, que por muitos anos os classificou como doenças mentais), para dispor sobre “a averbação da alteração do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoa transgênero no Registro Civil das Pessoas Naturais” (artigo 1º).

Todavia, o Provimento, ao contrário do anunciado, não se restringe à pessoa transgênero.

Com efeito, o núcleo do Provimento está no artigo 2º. Trata-se de um texto avançadíssimo, que não se circunscreve à figura da pessoa transgênero, mas se estende a toda pessoa maior de idade. Não se trata, portanto, de privilégio de pessoa transgênero. Trata-se, muito acima disso, da consagração da identidade autopercebida de qualquer pessoa. É por isso que caput e parágrafo 1º do artigo 4º do Provimento realçam o importante instituto jurídico da autonomia da vontade do requerente.

O CNJ compreendeu, afinal, que não se trata de direitos do público LGBT, mas de direitos de qualquer pessoa. É da personalidade que se trata, e, por óbvio, personalidade é algo que toda pessoa tem.

2.3.3. A Lei nº 14.382/2022

Na esteira da evolução normativo-jurisprudencial acima apresentada, a Lei nº 14.382, de 27 de junho de 202225, inovou substancialmente na redação do artigo 56 da Lei de Registros Públicos (LRP) – Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973.

A nosso ver, a redação principal do dispositivo, no caput, é bastante feliz, mostrando-se alinhada com o atual estado de maturidade do tratamento do nome que decorre de nosso ordenamento jurídico, como já expusemos aqui.

Em primeiro lugar, o dispositivo alude a pessoa. Não à pessoa da população LGBT ou a qualquer outro tipo de pessoa, mas, pura e simplesmente, pessoa. Isso significa que qualquer pessoa pode solicitar a alteração.

Em segundo lugar, a norma exige a maioridade civil. A nosso ver, esse pode ser o único ponto da redação passível de crítica, pois talvez seja discutível o fato de não ter sido prevista uma via excepcional de alteração do prenome para as pessoas que ainda não atingiram a maioridade civil e que já estejam firmes no propósito de mudança do prenome.

Adiante, a norma trata do requerimento pessoal e imotivado. É, pois, um ato de vontade, e um ato de vontade da pessoa que, certamente tendo suas razões de foro íntimo (não necessariamente relacionadas a autopercepção de gênero, orientação sexual etc.), não precisa expor externamente seus motivos ou justificativas. Basta querer e requerer.

Por fim, o caput da norma esclarece que o procedimento independe de decisão judicial, o que equivale a dizer que se trata de trâmite puramente administrativo. O parágrafo 1º reforça a mesma ideia, ressalvando a necessidade de sentença judicial apenas para desconstituição da alteração.

É curioso observar que a norma não restringe a escolha do novo prenome. Entendemos, assim, que valem as regras tradicionais da LRP – mas, quando se tratar do público LGBT, tais regras deverão ser interpretadas adequadamente para que não seja realizada exegese discriminatória que resulte numa contraditória anulação de eficácia da novidade legislativa. Assim, por exemplo, a um homem não poderá ser recusado o direito de solicitar a alteração de seu prenome para um que seja considerado feminino, a pretexto de que isso o exporia ao ridículo (na forma do artigo 55, parágrafo 1º, da LRP).

Enfim, os novos dizeres do artigo 56 da LRP contribuem grandemente para que a população LGBT consiga a alteração do nome civil, o que, segundo supomos, poderá muitas vezes abolir a necessidade da ação de um nome social paralelo. Contudo, não se deve entender que essa novidade legislativa cria restrições à adoção do nome social – são direitos autônomos e independentes.

3. O gênero

Transcrevamos algumas explicações dadas por Paulo Roberto Iotti Vecchiatti 26 (grifos do original):

Gênero se refere ao conjunto de características socialmente atribuídas e impostas pela sociedade às pessoas ao nascerem, em razão de seu genital, em termos de masculinidade e feminilidade. Visa identificar, assim, homens e mulheres. Ou seja, quando um bebê nasce com um pênis, ele é designado como menino, ao passo que quando um bebê nasce com uma vagina, é designado como menina. (...)
A identidade de gênero refere-se ao gênero com o qual a pessoa se identifica. Ou seja, refere-se ao fato de a pessoa se identificar como homem ou como mulher, relativamente ao binarismo de gêneros socialmente predominante. Visa identificar, assim, pessoas cisgêneras e transgêneras, estas últimas dividindo-se entre travestis e transexuais (mulheres transexuais e homens trans). Cisgênera é a pessoa que se identifica com o gênero que lhe foi atribuído, ao nascer, em razão de seu genital. Transexuais são pessoas que se identificam com o gênero oposto àquele que lhes foi designado no nascimento em razão de seu genital, querendo ser por ele reconhecidas (mulheres transexuais são as pessoas designadas como meninos no nascimento, mas que se entendem como mulheres, e homens trans são as pessoas designadas como meninas no nascimento, mas que se entende como homens). Travestis são pessoas que possuem expressão de gênero feminina, mas não se identificam propriamente nem com a feminilidade nem com a masculinidade: identificam-se como travestis e querem ser respeitadas como tal. São questões identitárias, não doenças (...).
A orientação sexual se refere ao sexo (no sentido de gênero) que atrai a pessoa de maneira erótico-afetiva. Visa identificar, assim, pessoas heterossexuais, homossexuais, bissexuais e assexuais.”

Existem, porém, outros pensamentos sobre essa terminologia, pois “qualquer tentativa de conceituação e de classificação é sempre redutora de complexidade, já que a sexualidade humana é plural”27, mas não colocaremos isso em controvérsia. Adotaremos a nomenclatura acima transcrita, a qual nos parece adequada para a organização da pauta deste tópico do estudo.

Há, no Brasil, normas que procuraram estabelecer conceitos. É o caso, por exemplo, da já referida Resolução nº 11/2014, do CNCD/LGBT, que procura orientar a lavratura de boletins de ocorrência emitidos pelas autoridades policiais (artigo 1º, parágrafo 1º, incisos I e II). É o caso, também, da Resolução nº 2.26528, de 20 de setembro de 2019, do Conselho Federal de Medicina (artigo 1º, parágrafos 1º a 5º).

Quaisquer que sejam os termos empregados, o que importa é que o gênero é algo inerente à pessoa, é um direito da personalidade. É uma folha do leque da liberdade sexual a partir da percepção da própria pessoa a seu respeito, e a liberdade sexual é um direito da personalidade, como pontuam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery 29, merecendo, assim, toda a proteção jurídica aqui já abordada. O gênero de nascença não pode, assim, ser imposto à pessoa vitaliciamente, se esta com aquele não se identifica ao longo do desenvolvimento de sua consciência essencial.

Wandimara Pereira dos Santos Saes 30 nos traz uma noção da dignidade humana dada por Francisco Fernández Segado que tem bastante pertinência ao tema do gênero: corresponde à capacidade de livre autodeterminação de toda pessoa. No mesmo sentido, Giovanna Bianca Trevizani acrescenta que o procedimento cirúrgico é uma decisão que cabe exclusivamente ao indivíduo31.

Já comentamos a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4275/DF neste estudo, e vimos que, nela, o STF decidiu pela possibilidade de mudança de prenome e/ou de gênero em cartório por transgêneros, administrativamente, independentemente de cirurgias ou laudos. A par do que já comentamos sobre a ADI nº 4275/DF, acrescentamos que a fundamentação ao longo do acórdão é um rico repositório de raciocínio jurídico norteado por reflexões humanas em que se veem conceitos como gênero percebido e identidade de gênero.

Também já vimos que, por consequência dessa decisão, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou o Provimento nº 73, de 28/06/2018, para dispor sobre a averbação da alteração do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoa transgênero no Registro Civil das Pessoas Naturais (artigo 1º).

Vimos, ainda, que, diversamente do afirmado no artigo 1º, o Provimento nº 73/2018 não se restringe à pessoa transgênero. Seu artigo 2º trata do tema do gênero. A identidade autopercebida está alinhada com a percepção de gênero. Trata-se de como a pessoa se percebe, como ela se vê e se sente na sua dimensão de indivíduo e de célula do tecido social. Ora: e se a pessoa não se concebe como transgênero? Eis a sutil compreensão do âmago de toda essa discussão sobre direitos do público LGBT: o objetivo, o ponto final do debate é a pessoa humana, não os rótulos estampados sobre elas pelas outras pessoas. No mais, repita-se que, pelo artigo 4º, caput e parágrafo 1º, do Provimento, é a pessoa interessada que deve requerer conforme seja de sua vontade.

Também voltamos ao já comentado Decreto nº 8.727/2016, da Presidência da República, que analisamos quanto às suas disposições sobre o nome social. Esse Decreto também dispôs sobre “o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis ou transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional” (artigo 1º). O parágrafo único, inciso II, do artigo 1º, afirma identidade de gênero como “dimensão da identidade de uma pessoa que diz respeito à forma como se relaciona com as representações de masculinidade e feminilidade e como isso se traduz em sua prática social, sem guardar relação necessária com o sexo atribuído no nascimento”.

Reiteramos nosso posicionamento com relação à necessidade interpretativa de não circunscrever a identidade de gênero a travestis ou transexuais, devendo, em vez disso, ser estendida a todo indivíduo do público LGBT ou de fora dele, por ser um atributo da personalidade.

É nesse sentido que analisaremos o tema do procedimento de afirmação de gênero: como um direito da pessoa humana a partir de sua consciência de si mesma.

3.1. O procedimento de afirmação de gênero: considerações iniciais

O escritor Franz Kafka iniciou sua célebre obra “A metamorfose” assim32:

“Quando certa manhã Gregor Samsa despertou, depois de uma noite mal dormida, achou-se em sua cama transformado em um monstruoso inseto. Estava deitado sobre a dura carapaça de suas costas, e ao levantar um pouco a cabeça viu a figura convexa de seu ventre escuro e sulcado por pronunciadas ondulações, em cuja proeminência a colcha mal podia aguentar, pois estava visivelmente a ponto de escorregar até o solo. Inúmeras patas, lamentavelmente esquálidas em comparação com a grossura comum de suas pernas, ofereciam a seus olhos o espetáculo de uma agitação sem consistência.”

Vemos o drama fantástico de Gregor Samsa como uma metáfora para o drama real de muitos transexuais. Gregor Samsa, com sua consciência humana, sua vivência humana, suas experiências humanas, viu-se subitamente aprisionado num corpo que não correspondia a essa sua humanidade.

Cada transexual, em outra medida – vivenciada, não meramente literária –, pode se considerar um ser humano com corpo que não corresponde à sua própria percepção essencial de pessoa. Como coloca Giovanna Bianca Trevizani 33:

“O indivíduo transexual apresenta uma sensação de desconforto e impropriedade em relação à forma sexual anatômica, manifestando o desejo de viver e também o desejo de aceitabilidade como sexo oposto. Homens trans e mulheres trans reivindicam a transição ao gênero oposto por meio de uma intervenção médica, procedimento realizado por uma reposição hormonal e cirurgia de redesignação sexual.”

A ciência avançou e desenvolveu atos e procedimentos, incluindo cirurgias, que permitem a afirmação do gênero adequado à percepção da pessoa. A nomenclatura que nos parece mais atual para o tema é essa: procedimento de afirmação de gênero. Há outras denominações possíveis, cada qual criticada por uma ou outra impropriedade, tais como: transexualização, transgenitalização, redesignação de gênero, mudança de sexo, redesignação de sexo etc.

No sentido que adotamos aqui, o procedimento de afirmação de gênero consiste no conjunto cientificamente orientado de cuidados e assistência à saúde da pessoa transexual nas etapas pré-cirúrgica, cirúrgica e pós-cirúrgica.

Na seara jurídica, houve por muito tempo, no Brasil, ilicitude nos procedimentos de afirmação de gênero, notadamente no tocante à cirurgia sexual. Atualmente, o Código Civil trata do tema assim:

“Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.
Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial.”

A feliz ressalva da exigência médica é permissiva das cirurgias em questão, como está pacificado científica e juridicamente.

Do ponto de vista jurídico, o Enunciado nº 27634 do Conselho da Justiça Federal, incluído na IV Jornada de Direito Civil, é específico acerca das cirurgias:

“276. O art. 13 do Código Civil, ao permitir a disposição do próprio corpo por exigência médica, autoriza as cirurgias de transgenitalização, em conformidade com os procedimentos estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina, e a conseqüente alteração do prenome e do sexo no Registro Civil.”

Ainda na órbita jurídica, o mesmo Conselho da Justiça Federal estabeleceu o Enunciado nº 635, na I Jornada de Direito Civil, sobre o mesmo artigo 13 do Código Civil, para esclarecer o sentido da exigência médica (grifo do original):

“6. A expressão exigência médica contida no art. 13 refere-se tanto ao bem-estar físico quanto ao bem-estar psíquico do disponente.”

Do ponto de vista científico, o Conselho Federal de Medicina (CFM) editou a Resolução nº 1.652/2002, sucedida pela Resolução nº 1.955/2010 e, finalmente, pela edição atual, a Resolução nº 2.26536, de 20 de setembro de 2019. Esta norma trata de atualizar as “ações de promoção do cuidado às pessoas com incongruência de gênero ou transgênero, em especial da oferta de uma linha de cuidado integral e multiprofissional de acolhimento, acompanhamento, assistência hormonal ou cirúrgica e atenção psicossocial”, bem como de “disciplinar sobre o cuidado à pessoa com incongruência de gênero ou transgênero em relação às ações e condutas realizadas por profissionais médicos nos serviços de saúde, seja na rede pública ou privada”. É, assim, uma norma cientificamente norteadora do tema nas saúdes pública e privada, sem distinção. Seus arts. 4º e 5º tratam dos procedimentos envolvidos e das especialidades profissionais de saúde pertinentes.

Por fim, também vale mencionar uma Nota Técnica37 do Conselho Federal de Psicologia, aparentemente do ano 2013 (o documento não está datado), que registra o compromisso dos profissionais da Psicologia com o tema. Merecem destaque esses trechos:

“1. A Psicologia tem o desafio de garantir à população trans o respeito à dignidade e o acesso aos serviços públicos de saúde.”
“2. A transexualidade e a travestilidade não constituem condição psicopatológica, ainda que não reproduzam a concepção normativa de que deve haver uma coerência entre sexo biológico/gênero/desejo sexual.”

Portanto, parece-nos não restar dúvida da licitude do procedimento de afirmação de gênero, como medida sanitária, à luz de nosso ordenamento jurídico.

3.2. O procedimento de afirmação de gênero na saúde pública (SUS)

São duas as principais normas aplicáveis à saúde pública sobre a questão do gênero.

3.2.1. A Portaria nº 2.803/2013, do Ministério da Saúde

A Portaria nº 2.80338, de 19 de novembro de 2013, do Ministério da Saúde, que já citamos por prever o uso do nome social, regulamenta o que denomina Processo Transexualizador no SUS.

A Portaria pauta-se pela integralidade do cuidado ao paciente, abrangendo toda a atenção de saúde necessária para o processo de afirmação de gênero, nos termos de seu artigo 5º.

Os artigos 13 e 14 da Portaria são bastante relevantes: o artigo 13 lista as diversas especialidades profissionais de saúde mobilizadas, e o artigo 14 lista diversos atos e procedimentos a serem realizados.

Voltaremos a essa Portaria mais adiante.

3.2.2. A Portaria nº 457/2008, do Ministério da Saúde

A Portaria nº 45739, de 19 de agosto de 2008, do Ministério da Saúde, regulamenta a estruturação e aparelhamento do serviço público de saúde para o processo de afirmação de gênero.

Seu Anexo III contém as “Diretrizes Assistência ao Indivíduo com Indicação para a realização do Processo Transexualizador”, cujo item I-A consagra a identidade de gênero pelo critério da autodeclaração.

Voltaremos a essa Portaria mais adiante.

3.3. O procedimento de afirmação de gênero na saúde privada pela via particular

De modo bastante sumário, havendo o diagnóstico de incongruência de gênero nos termos da CID (sob pena de violação ao já comentado artigo 13 do Código Civil), todo o procedimento de afirmação de gênero pré-cirúrgico, cirúrgico e pós-cirúrgico é lícito aos pacientes e aos profissionais e estabelecimentos de saúde privados, na linha permissiva do artigo 199 da Constituição da República, se observadas as diretrizes científicas aplicáveis.

3.3.1. O procedimento de afirmação de gênero na saúde privada pela via do plano de saúde

Existe, de longa data, controvérsia acerca da cobertura do procedimento afirmação de gênero pelos planos de saúde, fomentada principalmente pela ausência de regulamentação clara e específica a respeito.

No presente estudo, analisaremos o tema dentro do habitat jurídico mais natural da matéria, que é o da saúde suplementar. Para esse mister, consideramos pertinentes apenas as abordagens do tema à luz da Lei nº 9.656/1998 (Lei dos Planos de Saúde), da edição vigente do rol da ANS (Resolução Normativa nº 465, de 4 de fevereiro de 202140) e da orientação da ANS por meio do Parecer Técnico nº 26/GEAS/GGRAS/DIPRO/2021.

3.3.1.1. A Lei dos Planos de Saúde (Lei nº 9.656/1998): o rol da ANS e as outras possibilidades de cobertura

É o artigo 10 da Lei nº 9.656/1998, que rege os planos41 de saúde42, que define primariamente as coberturas e as não-coberturas. Trata-se do plano-referência, isto é, o plano básico, as mínimas condições de cobertura (caput e parágrafos 4º, 12 e 13) e as exclusões de cobertura que são padrão (incisos I a X e parágrafo 1º).

No tocante às coberturas, o modelo adotado por nossa legislação é simples e decorre do caput e do parágrafo 4º do artigo 10: os planos de saúde devem cobrir tratamentos para as doenças previstas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial da Saúde (OMS), conhecida como CID, sendo que tais tratamentos constarão de uma listagem a ser editada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar, o rol da ANS. Ressalte-se que a CID não trata apenas de doenças 43, de modo que o termo legal doenças deve ser entendido mais amplamente no sentido de questões de saúde.

O rol da ANS deve, assim, ser a referência básica dos planos de saúde (artigo 10, parágrafo 12, da Lei nº 9.656/1998, e artigo 4º, inciso III, da Lei nº 9.961, de 28 de janeiro de 200044, que criou a ANS), o que significa que ele deve representar o patamar mínimo dos tratamentos necessários a cobrir todos os itens da CID.

Todavia, o rol da ANS nem sempre é exitoso nesse mister. Em socorro disso foi editada a Lei nº 14.45445, de 21 de setembro de 2022, que realizou alterações na Lei nº 9.656/1998 com vistas a prever mecanismos para suprimento das lacunas ou defasagens do rol da ANS. São eles: (i) a aplicação simultânea do Código do Consumidor; e (ii) criação do parágrafo 13 no artigo 10 para prever o procedimento de construção de coberturas extrarrol.

Portanto, em vista de haver previsão, na CID, da incongruência de gênero, parece-nos muito claro que o rol da ANS não poderia deixar de prever as coberturas necessárias ao seu tratamento, dentre as quais se destaca o procedimento de afirmação de gênero, cujo ápice é a cirurgia genital. Contudo, não é o que ocorre.

De fato, a própria ANS, por meio do Parecer Técnico nº 26/GEAS/GGRAS/DIPRO/202146, manifestou-se oficialmente47 sobre a inexistência de certas coberturas, pelo rol, para o procedimento de afirmação de gênero. Vale notar, todavia, que esse Parecer é anterior às inovações trazidas à Lei nº 9.656/1998 pela Lei nº 10.454/2022, e, portanto, ele ainda não considera as novas possiblidades de cobertura extrarrol.

Comecemos pelas coberturas extrarrol permitidas nos termos do novo parágrafo 13 do artigo 10 da Lei nº 9.656/1998:

“Art. 10. É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta Lei, exceto:
(...)
§ 12. O rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar, atualizado pela ANS a cada nova incorporação, constitui a referência básica para os planos privados de assistência à saúde contratados a partir de 1º de janeiro de 1999 e para os contratos adaptados a esta Lei e fixa as diretrizes de atenção à saúde.
§ 13. Em caso de tratamento ou procedimento prescrito por médico ou odontólogo assistente que não estejam previstos no rol referido no § 12 deste artigo, a cobertura deverá ser autorizada pela operadora de planos de assistência à saúde, desde que:
I - exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou
II - existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ou exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.”

Entendemos que serão quatro os requisitos para que o beneficiário do plano tenha direito à cobertura transcendente à do rol da ANS nos termos acima: (i) previsão do item na CID, conforme o caput desse artigo 10; (ii) não-enquadramento do procedimento entre aqueles legalmente definidos como não-cobertos, conforme incisos I a X do caput do artigo 10 e seu parágrafo 1º; (iii) prescrição, na forma do parágrafo 13 do artigo 10, do procedimento não previsto no rol; e (iv) cumprimento do disposto no inciso I ou no inciso II (este com duas hipóteses) do parágrafo 13 do artigo 10.

A nosso ver, a resposta afirmativa para a cobertura dos procedimentos de afirmação de gênero pode decorrer da hipótese do inciso I. Com efeito, ao se referir à existência de comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico, pensamos que normas aqui já comentadas preenchem esse quesito: a Resolução nº 2.265/2019 do CFM, a Portaria nº 2.803/2013 do Ministério da Saúde e a Portaria nº 457/2008 do Ministério da Saúde.

Em primeiro lugar, a Resolução nº 2.265/2019 do CFM. Sua Exposição de Motivos é clara quanto à autoridade dos dizeres da norma, elaborada com a participação do Ministério da Saúde48. A norma prevê o seguinte:

“Art. 11. (...)
§ 4º Os procedimentos cirúrgicos reconhecidos para afirmação de gênero estão descritos no Anexo IV desta Resolução.”

Seu Anexo IV cita os tais procedimentos cirúrgicos reconhecidos, e a leitura dos itens 3 e 4 nos permite concluir que se trata de listagem não-taxativa, porquanto permite que haja complementação com outros procedimentos. Apenas observamos que a neofaloplastia com retalho microcirúrgico de antebraço ou retalho de outras regiões prevista no item 2.3.2, letra “b”, do Anexo IV, poderá não ter cobertura por ser ali expressamente considerada experimental, o que, se confirmado, a faz incidir na hipótese legal de não-cobertura (artigo 10, caput, inciso I, da Lei nº 9.656/1998).

Em adição aos procedimentos cirúrgicos, a Resolução nº 2.265/2019 do CFM também confirma a recomendação do acompanhamento ambulatorial e da hormonioterapia, nos termos do Projeto Terapêutico Singular (a ser desenvolvido conforme o Anexo I da norma), envolvendo pediatra (em caso de pacientes com até dezoito anos de idade), psiquiatra, endocrinologista, ginecologista, urologista e cirurgião plástico, sem prejuízo de outras especialidades médicas que atendam à necessidade do Projeto Terapêutico Singular, além de outros profissionais da área da saúde (arts. 4º e 5º). Todo o Anexo II dessa norma trata da hormonioterapia, e o Anexo III trata do acompanhamento psiquiátrico.

Em segundo lugar, a Portaria nº 2.803/2013, do Ministério da Saúde. Também esta norma lista atos e procedimentos, pautando-se pela integralidade do cuidado ao paciente, merecendo atenção seu artigo 5º. O artigo 13 lista as diversas especialidades profissionais de saúde mobilizadas. Já o artigo 14 lista diversos atos e procedimentos a serem realizados, o que significa, naturalmente, que se trata de procedimentos reconhecidos. Há, na norma, restrições etárias para alguns dos procedimentos, assim como ocorre na norma do CFM.

Em terceiro lugar, a Portaria nº 45749, de 19 de agosto de 2008, do Ministério da Saúde, que regulamenta a estruturação e aparelhamento do serviço público de saúde para o processo de afirmação de gênero. Essa norma prevê a inclusão de tratamentos e procedimentos na organização do SUS em seus arts. 8º (tratamento hormonal pré-operatório à cirurgia), 9º (acompanhamento terapêutico multiprofissional, pré e pós-cirurgia) e 10 (cirurgia de redesignação sexual abrangendo orquiectomia bilateral, amputação peniana e construção de neovagina a partir da bolsa escrotal; e cirurgia das vias aéreas para alongamento das cordas vocais e tiroplastia para redução do Pomo de Adão com vistas à feminilização da voz).

Já o Anexo I da Portaria nº 457/2008 trata das equipes médicas mínimas (item 3.4.2) e dos recursos diagnósticos e terapêuticos (item 3.6). Por fim, o Anexo III contém as Diretrizes Assistência ao Indivíduo com Indicação para a realização do Processo Transexualizador (sic), mencionando algumas das especialidades da saúde a serem envolvidas, além de alguns dos procedimentos cirúrgicos – e ressalvamos que seu item 4 afirma que as cirurgias de transgenitalização do tipo construção de neofalo e metoidioplastia são experimentais, o que, se confirmado, as faz incidir na hipótese legal de não-cobertura (artigo 10, caput, inciso I, da Lei nº 9.656/1998).

Portanto, entendemos, pelo rito do parágrafo 13 do artigo 10 da Lei nº 9.656/1998, que a Resolução nº 2.265/2019 do CFM, conjugada com a Portaria nº 2.803/2013 do Ministério da Saúde e com a Portaria nº 457/2008 do Ministério da Saúde, constroem a cobertura extrarrol para todos os procedimentos ali previstos, obrigando a operadora a isso, nos termos das prescrições realizadas pelos profissionais de saúde que assistem o beneficiário.

Já pela ótica do inciso II do parágrafo 13 do artigo 10 da Lei nº 9.656/1998, na sua primeira hipótese – recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) –, verificamos que existem algumas recomendações da Conitec, no campo dos procedimentos de afirmação de gênero, como é o caso dos procedimentos previstos no Relatório nº 69, cujas conclusões foram oficializadas por meio da Portaria nº 11, de 15 de maio de 201450, abrangendo os procedimentos ali descritos.

Por fim, resta a segunda hipótese do inciso II do parágrafo 13 do artigo 10 da Lei nº 9.656/1998 – “recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais” –, que, a nosso ver, não deve ser de difícil atendimento em vista do atual nível de aceitação científica dos procedimentos de afirmação de gênero no mundo.

4. Conclusão

Como visto, a legislação brasileira (em sentido amplo, incluindo regulamentos) já dispõe sobre nome e gênero nas áreas da saúde pública e privada, consagrando, ainda que de maneira rarefeita e pouco sistemática, a proteção aos direitos constitucionais da população LGBT no tocante a nome e gênero.

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NERY JÚNIOR, Nelson, e NERY, Rosa Maria Andrade. Código Civil anotado e legislação extravagante. 2. ed. São Paulo: RT, 2003./p>

SAES, Wandimara Pereira dos Santos. Colisão de direitos fundamentais: princípio da dignidade humana como critério material de ponderação. In: Revista de Direito Constitucional e Internacional, ano 19, n. 76, julho-setembro de 2011. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 115-138.

TREVIZANI, Giovanna Bianca. Meu corpo, minhas regras: a transexualidade sob a luz do Direito Constitucional e as lacunas no Estado Democrático de Direito. In: DESLANDES, Keila (Coord.). Homotransfobia e direitos sexuais: debates e embates contemporâneos. São Paulo: Autêntica Editora, 2018. p. 89-101.

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