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“Tone at the top” como “conditio sine qua non” do compliance

Leia nesta página:

É preciso cobrar real comprometimento da alta administração das organizações para com os programas de compliance, sob pena de funcionarem apenas como fachada para promoção da imagem organizacional.

Resumo: Tratou-se de uma pesquisa para apurar a importância do comprometimento da alta administração ou “tone at the top” para a efetividade dos programas de compliance, a partir da perspectiva proposta pela Lei 12.846/2013, conhecida como Lei Anticorrupção, e tendo em vista a famigerada Operação Lava Jato, que coloca em xeque tanto a Lei como os programas estabelecidos por sua influência. Para tanto foi coletada a opinião de especialistas através de obras e documentos sobre o tema e estabelecido dialogo entre os mesmos e as conclusões dedutíveis possíveis. Os resultados apontaram no sentido da imprescindibilidade do real comprometimento da alta administração das organizações para com os programas de compliance, sob pena de funcionarem apenas como fachada para promoção da imagem organizacional; expediente para a tentativa de burlar a aplicação de multas, conforme estabelecidas na Lei 12.846/2013; e/ou outros efeitos colaterais da implantação dos programas de compliance, que não àquele primordialmente ínsito na mens legis, qual seja o combate à corrupção, antes, pelo contrário, servindo como instrumento de corrupção ou ao menos para mascará-la.

Palavras-Chave: Compliance;tone at the top”; Lei 12.846/2013.

1 INTRODUÇÃO

Em uma sexta-feira, chuvosa e preguiçosa, no centro financeiro de uma das principais capitais do país, mais precisamente em um grande escritório de advocacia corporativo, às 17h48min, o advogado sênior toma seu café, confortavelmente recostado sobre sua cadeira, já vislumbrando o congestionamento que enfrentaria até o litoral, quando lhe é anunciada a ligação do CEO de um dos maiores clientes do escritório. O advogado prontamente atende a ligação:

- Boa tarde, como vai o Senhor e em que posso ajudá-lo?

- Boa tarde Doutor. Tudo ótimo! Segunda-feira iremos receber um novo possível investidor, muito importante e precisamos que o Doutor escreva aí para nós um Código de Conduta. O Doutor sabe que eu não ligo pra essas besteiras, mas sabe como são esses estrangeiros né!

O advogado quase derruba o seu café levantando incrédulo da cadeira:

- Mas como assim o Senhor quer que eu escreva hoje um Código de Conduta para a sua empresa, sem mais nem menos, sem saber quais são os seus valores?

O CEO responde irritado, alterando a voz:

- Valores! Advogado é tudo igual mesmo, só pensam em dinheiro! Como o Doutor vem me falar em valores uma hora dessas. Nós já não pagamos uma fortuna para vocês? Qualquer diferença a gente vê depois, o Doutor que não me deixe sem esse Código na segunda-feira ou vou procurar outro escritório. Passar bem! Paf tututututu.

A narrativa acima é uma anedota ficcional, embora qualquer semelhança com a vida real não seja mera coincidência.

Apesar dos programas de compliance terem finalidades legais próprias, as empresas que optam pela sua implementação podem ter objetivos diversos e até mesmo contrários àqueles previstos pelo legislador, principalmente no país em que se cunhou a expressão popular “Lei para inglês ver”.

Logo, cabe o questionamento se a mera formalização de instrumentos de compliance é capaz de, por si só, garantir a conformidade e a integridade das empresas, conforme os fins pretendidos pela legislação pertinente, bem como qual seria o fator preponderante para a efetividade dos programas de compliance.

Para responder está pergunta procedeu-se uma análise de alguns aspectos da Lei 12.846/2013, tendo em vista a sua proeminência no incentivo à implantação de programas de compliance no Brasil, à luz da Operação Lava Jato, que desafiou a efetividade da norma em questão, bem como a efetividade dos programas de compliance criados a partir da referida lei, de forma a prescrutar a real adesão da governança corporativa a esses programas.

Objetivou-se, assim, comprovar o grau de importância do “tone at the top” ou do “tom da liderança” para os esforços no sentido da conformidade pretendida pela lei.

Esta obra é o resultado de uma pesquisa de natureza básica, com abordagem qualitativa, com o objetivo exploratório e explicativo, realizada por meio de múltiplas técnicas procedimentais de coleta de dados, quais sejam, levantamento bibliográfico e documental, com ênfase na percepção de especialistas.

Os dados coletados foram interpretados por meio do método de análise de conteúdo, a partir de múltiplos referenciais teóricos.

Apresentou-se primeiramente alguns conceitos básicos fundamentais para a compreensão da temática, ainda que de forma bem sucinta, depois foi apresentada uma análise crítica de legislação brasileira anticorrupção específica e em pontos igualmente especificados. Na sequência, foram introduzidas as perspectivas teóricas autorais com diálogos conclusivos a partir dos textos citados.

2 O COMPLIANCE E A SUA FINALIDADE PRECÍPUA

Conforme leciona a jurista Marcella Blok:

O termo "Compliance" advém do verbo em inglês "to comply", ou seja, é o ato de cumprir, de estar em conformidade com os regulamentos internos e externos da organização. De forma sucinta, Compliance é o conjunto de esforços para atuar em conformidade com leis e regras diversas inerentes às atividades da empresa, assim como estar em consonância com códigos de ética e com as políticas de conduta internas da corporação de forma a mitigar, prevenir e buscar solucionar riscos de todos os tipos. (BLOK, 2020, p.3).

Este conceito já traz, em si mesmo, um pouco da importância e da finalidade da implementação de um programa de compliance nas organizações, todavia, conforme ressalta Daniel Paulo Paiva Freitas (2020, p. 28), “a criação dos programas de conformidade e integridade, desde o seu nascedouro, está diretamente relacionada a uma tentativa profissional e ética de evitar práticas de corrupção nas empresas.”

Deste modo, conforme Carvalho e outros, para que uma empresa tencione verdadeiramente os fins próprios do compliance (e não tão somente o incremento de uma falsa e insustentável imagem de empresa ética e confiável perante os seus stakeholders) é necessária a mudança de mentalidade de sua liderança, que deve visar além do lucro (ao qual a corrupção bem pode servir melhor, ao menos no curto prazo), passando a buscar também a sustentabilidade do empreendimento, que extrapola as questões ambientais, atingindo a boa fama, indispensável a longevidade dos negócios, frente a ampla concorrência na sociedade atual, bem como aos parâmetros éticos e legais impostos pelo mercado.

Daniel Paulo Paiva Freitas ainda destaca que os investidores preocupam-se com a rentabilidade de seus investimentos, que procuram proteger investindo em empresas que adotam práticas sadias de governança corporativa.

Sendo assim, as empresas podem se sentir tentadas a utilizarem os programas de compliance como um investimento financeiro indireto para aumentar seu valor de mercado.

O compliance também pode ser utilizado pelas organizações como uma espécie de seguro contra multas, por conta de disposições legislativas como as do artigo 7º, inciso VIII, da Lei 12.846/2013, que estabelece que: “Art. 7º Serão levados em consideração na aplicação das sanções: VIII - a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica;” (BRASIL, 2013).

Esses e outros possíveis efeitos “colaterais” da implantação dos programas de compliance tanto podem ser benéficos aos propósitos da lei, como podem defraudá-la, pois incentivam a criação indiscriminada de programas de compliance, por toda e qualquer organização, ainda que esta não tenha seus valores estabelecidos ou preocupações éticas.

Neste sentido, o professor Marcio Pestana enfatiza como ponto pacífico que o primeiro elemento componente do compliance, conforme determinado pela lei, é o: “envolvimento e comprometimento da alta administração” (PESTANA, 2016, p. 80), melhor explicitado a seguir.

3 “TONE AT THE TOP

Ao traçar as origens e o significado da expressão em questão, Isabel Franco esclarece que:

A expressão tone at the top (ou tone from the top, ou, ainda, tone of the top) começou a ser popularizada com a edição da Lei Americana Sarbanes-Oxley em 2002, após os escândalos envolvendo grandes companhias americanas nos anos 1990 (...), época em que o Congresso americano passou a colocar em xeque a responsabilidade dos altos executivos das empresas. Mais adiante, em 2008, o Congresso americano editou o Dodd--Frank Act, e, em 2010, a OCDE35 também publicou o Manual de boas práticas corporativas para promover a cultura da integridade ao qual 45 nações aderiram, colocando o tone at the top como ponto inicial dos programas de compliance.

O tone at the top se traduz como sendo o papel desempenhado pelos líderes na construção e na difusão de uma cultura corporativa de integridade e ética; é o que dá o tom e guia todas as demais atividades relacionadas. (FRANCO, 2019, p. 31).

A este respeito, cabe destacar as preciosas lições do professor Márcio Pestana:

Entre os administradores, sócios-gerentes, conselheiros e diretores há uma repartição de competências e atribuições, as quais, parte das vezes, decorre da própria determinação legal, parte fixada nos Contratos ou Estatutos Sociais.

Pois bem, no que mais de perto interessa à presente investigação, o aspecto que merece ser sublinhado é que todos os componentes da alta administração da pessoa jurídica deverão efetivamente engajar-se na política e no proceder das boas práticas, atuando proativamente – e não só reativamente – no sentido de estimular a sua estrita obediência, e prestigiando, induvidosamente, a sua prática efetiva.

Para tanto, deverão participar periodicamente de treinamentos, cobrar dos subordinados o reexame constante dos procedimentos e políticas até então adotados, numa diuturna atualização e aprimoramento correspondente, bem como aprovar os meios necessários e estimular as contratações de auditorias e de serviços de consultoria e assessoria jurídica de especialistas na matéria.

Aspecto essencial deverá, ainda, ser dispensado à exemplificaridade, ou seja, no exemplo que a alta administração deverá irradiar a todos os seus subordinados, forjando líderes, à sua vez, com isso cinzelando uma conduta ética e de boas práticas corporativa que se disseminará por todos os recantos da pessoa jurídica em questão, espraiando-se, inclusive, entre todos aqueles que venham com ela contratar.

A alta administração da pessoa jurídica, à evidência, tem um papel importantíssimo no aculturamento do pessoal e na mantença e propagação de uma política saudável e eficaz de boas práticas, sobretudo, no ponto, relativamente às relações que a empresa mantenha com a Administração Pública nacional e estrangeira. (PESTANA, 2016, p. 81).

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No mesmo sentido, a nossa Lei Anticorrupção, a Lei nº 12.846/13, é atualmente regulamentada pelo Decreto nº 11.129/22 , que em seu artigo art. 57, permanece definindo o que é um programa de compliance efetivo, estabelecendo, logo em seu primeiro inciso, a necessidade do “comprometimento da alta direção da pessoa jurídica, incluídos os conselhos, evidenciado pelo apoio visível e inequívoco ao programa, bem como pela destinação de recursos adequados.” (BRASIL, 2022).

O autor Daniel Paulo Paiva Freitas coloca a própria governança corporativa como um instrumento de combate à corrupção, afirmando a íntima relação da governança com os programas de compliance, ressaltando que: “Os gestores devem decidir sobre a implementação das condições de desenvolvimento, bem como acerca da efetiva manutenção de um profundo programa de integridade, o que representa a natureza intrínseca da forma como as empresas, em geral, são administradas.” (FREITAS, 2020, p. 84).

Dalila Martins Viol, ao apontar 3 grandes etapas mínimas necessárias para que um programa de integridade seja, de fato, uma barreira contra a corrupção, logo na primeira etapa, qual seja a elaboração de um plano de integridade, coloca como primeiro ponto a necessidade do exemplo da alta gestão para a implementação de instrumentos e mecanismos de integridade.

Da mesma forma, o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa -IBGC (2022) estabelece na minuta da 6ª edição do Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa, ente outras as propostas de: iniciar o código destacando a “Ética” como fundamento da Governança; atualizar os “Princípios da Governança Corporativa” e adicionar mais um princípio, o da “Integridade”; e Criar uma sessão específica sobre “Conflito de Interesse”.

O mesmo documento, ao discorrer sobre o Gerenciamento de riscos, controles internos e compliance e conduta, pontos 5.5 e 6, estabelece ainda que:

[…] Os agentes de governança têm a responsabilidade de assegurar que toda a organização conduza suas atividades e relações com base no propósito da organização e princípios de governança – refletidos em políticas, procedimentos e normas internas – e nos dispositivos legais e regulatórios aos quais a organização esteja submetida. A efetividade desse processo constitui o sistema de compliance.

Nesse sentido, a área ou o profissional de compliance deve dispor de recursos e ferramentas para gerenciar riscos e relacionamentos com partes interessadas, internas e externas, além de liderar a disseminação do tema pela organização. Convém salientar que, dependendo do porte e da maturidade da organização, a área ou profissional responsável pelo compliance pode atuar além da etapa inicial de atendimento às leis e aos regulamentos.

Práticas

a) Ações relacionadas a gerenciamento de riscos, controles internos e sistema de compliance devem estar fundamentadas no uso de critérios técnicos e éticos refletidas no código de conduta e nas políticas da organização. […]

f) A diretoria, auxiliada pelos órgãos de controle vinculados ao conselho de administração e pela auditoria interna, deve estabelecer e operar um sistema de controles internos eficaz para o monitoramento dos processos operacionais e financeiros, inclusive os relacionados com a gestão de riscos e de compliance. Deve avaliar ainda, pelo menos anualmente, a eficácia do sistema de controles internos, bem como prestar contas ao conselho de administração sobre essa avaliação. […]

6. CONDUTA

Os princípios de governança corporativa devem nortear as melhores práticas e a conduta dos agentes de governança a fim de proporcionar um ambiente íntegro. Assim como criar e preservar o valor da organização, seja sob aspecto financeiro ou relacionados à reputação, imagem, confiabilidade, excelência na atuação, entre outros ativos intangíveis.

Ainda que a constituição desse ambiente dependa de escolhas e condutas individuais, um sistema de compliance, constituído por mecanismos, estruturas e procedimentos internos podem auxiliar a organização a identificar, avaliar, priorizar, mitigar e monitorar riscos e possíveis inconformidades com as leis e as normas aplicáveis. (Veja item 5.5).

Dentre os instrumentos que podem compor o sistema de compliance, pode-se citar o código de conduta, o canal de denúncias, políticas organizacionais, mecanismos para administração e monitoramento de transações com partes relacionadas e de uso de informações privilegiadas. (IBGC, 2022, p. 57-61)

Somando-se a isto, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE (2016), no seu Guia de Programas de Compliance, condena expressamente a elaboração de programas “de fachada”; referencia diretamente o "Tone from the top”, que traduz como envolvimento da alta direção; destacando que:

O comprometimento genuíno da entidade é a base de sustentação de qualquer programa bem sucedido. Sem seriedade e efetiva intenção de conduzir os negócios de forma ética, o programa está fadado ao insucesso. Na prática, tal comprometimento se concretiza por meio dos seguintes atributos: envolvimento da alta direção, recursos adequados e autonomia e independência do gestor do programa. (CADE, 2016, p. 16).

A Controladoria Geral da União - CGU também não ficou atrás, e por meio de sua Portaria nº 909/2015, dispôs sobre a avaliação de programas de integridade de pessoas jurídicas, estabelecendo como obrigação das empresas a comprovação da efetividade dos programas de compliance adotados, para a minoração da multa prevista na Lei 12.846/2013, dispondo especificamente, no parágrafo 2º, do seu artigo 5º, que: “O programa de integridade meramente formal e que se mostre absolutamente ineficaz para mitigar o risco de ocorrência de atos lesivos da Lei nº 12.846, de 2013, não será considerado para fins de aplicação do percentual de redução de que trata o caput.” (CGU, 2015).

Carla Veríssimo reforça a importância do tone at the top, lembrando os esforços internacionais neste sentido:

O comprometimento da alta direção da empresa (tone at the top) é o determinante essencial para a cultura da organização. O apoio dos dirigentes ao programa de compliance e o comprometimento público influenciam as normas e os valores pelos quais a empresa se pauta e aos quais se espera a adesão de todos os empregados e parceiros comerciais. Na prática, o compromisso da administração com a prevenção da corrupção, por exemplo, deve passar, em primeiro lugar, por uma política de tolerância zero com atos de corrupção, quer em pequenos valores, quer em valores maiores, seja ela ativa ou passiva. Esse exemplo deve ser transmitido hierarquicamente dentro da empresa, aos gerentes, que têm contato direto com os empregados, em suas atividades cotidianas.

A Global Compact, iniciativa da ONU de promoção da sustentabilidade corporativa, exige o comprometimento da liderança da empresa contra a corrupção em todas as suas formas, sem o qual sua participação no programa não será aceita. […]

Sieber e Engelhart, em estudo empírico realizado no âmbito do programa de pesquisa do Max Planck Institute for Foreign and International Criminal Law, analisaram os programas de complian-ce adotados pelas empresas alemãs, verificando quais elementos eram adotados, e qual a importância percebida, pela empresa, da efetividade desses elementos. O tone at the top e os padrões morais foram considerados como as medidas mais efetivas, seguidos da criação de padrões éticos dentro da empresa, que sejam apoiados por colaboradores e pela alta direção (top management). (VERISSÍMO, 2017, p. 285 e 314)

Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo:

Isabel Franco é categórica ao afirmar a unanimidade entre pesquisadores e estudiosos do tema em apontar o tone at the top como o pilar mais importante dos programas de compliance, o que não deixa dúvidas de que, até por uma questão prática, não pode haver efetivamente um programa de compliance sem o comprometimento genuíno da alta administração das organizações.

4 O COMPLIANCE “PARA INGLÊS VER”

Segundo Edmo Colnaghi Neves (2021, p. 171), “A norma fundamental para as práticas de compliance no Brasil é a Lei Anticorrupção – Lei n. 12.846, de 1º de agosto de 2013 [...]”.

Fernanda Marinela, Tatiany Ramalho e Fernando Paiva, preferem nomear a Lei 12.846/2013, de “Lei de Improbidade Empresarial”, por vislumbrarem um paralelo com a Lei de Improbidade Administrativa, que tem como sujeito ativo o agente público, enquanto que a Lei 12,846/2013 prevê condutas administrativas e civis das organizações em suas relações com a Administração Pública, prevendo expressamente a valorização dos programas de integridade ou de compliance.

Para Francisco Schertel Mendes e Vinicius Marques de Carvalho:

O programa de integridade previsto na lei anticorrupção tem, assim, o objetivo central de encorajar providências concretas de governança empresarial focadas na prevenção, detecção e reparo dos atos lesivos ao patrimônio público.

Medidas de compliance focadas em anticorrupção não eram, até a promulgação da lei, disseminadas no Brasil. Eram apenas observadas em empresas que realizavam negócios internacionais, por isso adotavam práticas que se alinhassem às exigências da legislação de outros países, ou naquelas com programas voltados à observância de normas legais que não a de anticorrupção, mas as de defesa da concorrência, por exemplo.(MENDES; CARVALHO, 2017. P. 116)

Neste sentido, Carla Veríssimo leciona que:

A Lei n. 12.846/2013 foi editada para “suprir uma lacuna no sistema jurídico pátrio no que tange à responsabilização de pessoas jurídicas por atos lesivos à Administração Pública nacional e estrangeira”368, conforme é declarado em sua exposição de motivos. Havia necessidade de atender aos compromissos internacionais de combate à corrupção assumidos pelo Brasil com a ratificação da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (2003), no âmbito da ONU, com a Convenção Interamericana de Combate à Corrupção (1996), no âmbito da OEA, e com a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais (1997), da OCDE369. (VERÍSSIMO, 2017, p. 173)

Logo a Lei Anticorrupção, de 1º de agosto de 2013, é tipicamente uma “Lei para inglês ver”, pois, como visto acima, nasce em um contexto de resposta nacional a uma demanda legislativa internacional, além de que, assim vem sendo tratada por seus destinatários, conforme demonstrou a Operação Lava Jato, deflagrada em 17 de março de 2014, conforme narram os autores Fábio Kerche e Marjorie Marona, após a promulgação da Lei.

Sobre a mesma Operação Ana Cláudia Lopes da Silva acrescenta que:

a primeira fase da Operação Lava Jato, que em um primeiro momento tinha como foco a investigação de quatro organizações criminosas lideradas por doleiros que operavam em um mercado paralelo, sendo posteriormente recolhidas provas que envolviam um imenso esquema de corrupção envolvendo a Petrobras.

Somente no caso da Petrobrás, estima-se que o valor do dinheiro desviado ultrapasse a casa dos bilhões de reais. Apurou-se ainda que grandes empreiteiras estariam envolvidas nesse esquema de corrupção, formando um verdadeiro cartel, com o pagamento de propina aos mais altos executivos da Petrolífera entre outros funcionários públicos para obterem negócios. Essas propinas, de acordo com o que se apurou, variavam de 1% a 5% do valor total de contratos bilionários e que ainda eram superfaturados. [...]

Entretanto, vale citar que, até hoje, não houve nenhuma condenação no âmbito da Lei n.12.846/2013. Até o momento, as condenações que estão ocorrendo têm como base as leis penais propriamente ditas, que punem atos ilícitos como corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Até o momento nenhuma condenação pelo STF. (SILVA, 2020, p. 48)

Um outro fator que corrobora para a transformação da Lei Anticorrupção em letra morta é a tendencia do legislador pátrio em inverter a ordem lógica da teoria tridimensional do Direito, elaborada pelo jusfilósofo brasileiro Miguel Reale, supondo a transformação dos fatos e a incorporação dos valores a partir tão somente da promulgação da norma, quando na verdade a teoria explicita que da incidência dos fatos sociais e a partir da valoração social dos mesmos e que devem surgir as normas e não o contrário, sob pena do texto legal não encontrar adesão no corpo social.

Neste sentido os juristas Clóvis de Barros Filho e Sérgio Praça, ao discorrerem sobre como minimizar os males da corrupção, orientam no sentido do aproveitamento das crises políticas, que abririam rápidas “janelas” de oportunidades para mudanças, sendo que o primeiro motivo para que essas janelas se fechem seria justamente os agentes políticos acreditarem que podem resolver a questão por meio de mudanças legislativas, ressaltando que: “Mesmo que isso não seja necessariamente verdade, o fato de alguma ação ter acontecido acomoda os atores por algum tempo.” (BARROS FILHO; PRAÇA, 2021, p.108)

Corroborando com a constatação de que nosso legislador muitas vezes cria leis “para inglês ver”, temos o fato de que leis criadas por meios corruptos gozam de plena efetividade para os fins pretendidos, conforme constatou-se na própria Lava Jato, o que demostra que a falta de interesse genuíno ou vontade política também podem condenar as normas, ainda que justas e necessárias, ao mais absoluto ostracismo prático dentro do ordenamento jurídico.

Leandro Mitidieri Figueiredo esclarece que o ex-presidente de relações institucionais da Odebrecht, Cláudio Melo Filho, em delação premiada, ao Ministério Público Federal, no âmbito da Operação Lava Jato, informou que a empresa desembolsou, pelo menos, R$ 16,9 milhões para propinas à parlamentares e em doações de campanhas eleitorais, visando a aprovação de duas medidas provisórias, através das quais a empreiteira obteve, no mínimo, R$ 8,4 bilhões.

Diante de situações como essas resta a pergunta de quem aprendeu com quem a distorcer o “espírito das normas, o legislador ou o empresariado brasileiro? Talvez não dê pra responder quem nasceu primeiro, “o ovo ou a galinha, mas dá pra perceber que de fato os legisladores são representantes da sociedade na qual estão inseridos, são antes de tudo cidadãos forjados no “jeitinho brasileiro”.

Se o alto escalão das organizações empresariais consegue manipular as normas externas dessa maneira, que dirá as normas internas, criadas ao seu bel prazer, sem ter que despender quantias vultosas para tanto, fica muito mais fácil criar um mundo de “Alice no país das maravilhas”, com belos valores no papel, mas destituídos de qualquer implicação no dia a dia organizacional.

A respeito da edição da Lei 12.846/2013, Ciro Costa Chagas, além de apontar diversas falhas dessa norma, conclui que:

O que se vê é a "pressa" em editar normas supostamente educativas que, a nosso entender, de nada inovam [...]

A diminuição da corrupção é tarefa árdua, mas plenamente possível, desde que sejam efetivadas condutas necessárias e suficientes para tanto, e sem dúvida, isso somente será possível em um modelo normativo coeso, no qual combate às práticas corruptas não seja visto apenas com objetivo político, mas como elemento jurídico, circundado pelos direitos constitucional, administrativo e penal. (CHAGAS, 2020, p. 200)

José António Mouraz Lopes defende que há um labirinto factual, normativo e procedimental em torno da questão da corrupção, apontando como caminhos que podem ajudar à saída desse labirinto o não prosseguimento no caminho da falta de efetividade das políticas, das instituições e dos órgãos de controle; evitar o apelo tentador a uma vontade sistemática e pulverizadora de legislar, pois leis não faltam; buscar a coordenação entre os órgãos de controle, com vistas à união de esforços e ao compartilhamento de informações; e a recusa do caminho da facilidade e da demagogia que, ainda que seja atrativo, não conduz a qualquer saída.

A importante pesquisa sobre o fenômeno da proliferação dos programas de compliance nas organizações privadas e públicas do Brasil contemporâneo, realizada entre os anos de 2018 e 2019, de autoria de Dalila Martins Viol, apontou entre as suas conclusões que:

A teoria do novo institucionalismo também possibilitou explicar a multiplicação dos programas de integridade, considerando a interação entre as forças do contexto institucional, bem como as pressões da rede organizacional e a influência da estrutura interna de cada organização, levando em consideração os pilares regulador, normativo e cognitivo-cultural das instituições.

Constatou-se que as organizações estudadas não atingiram a etapa de sedimentação do processo de institucionalização dos programas de integridade, conforme descrito por Tolbert e Zucker (1999). Além disso observou-se, nos termos de Peci (2006), a influência do contexto institucional no processo de institucionalização dos programas de integridade por meio de dinâmicas de mercado, da legislação e dos efeitos da Operação Lava Jato. Já no campo organizacional, verificou-se influência da rede organizacional que, a depender do caso, envolvia fornecedores, acionistas, clientes, holding, órgãos reguladores, bem como entidades públicas celebrantes de acordos de leniência e a Polícia Federal. Por fim, a estrutura interna das organizações pesquisadas, como tamanho da organização, grupo profissional predominante, tutela dos fundadores, características do corpo funcional e disputas de poder, também influenciou a institucionalização dos programas de integridade. Outrossim, sob o prisma de Scott (2014) verificou-se, no processo de institucionalização, que o pilar regulatório foi influenciado pela legislação, notadamente a Lei n. 12.846/2013 e pelo Código de Conduta interno das organizações. No pilar normativo, destacaram-se os incentivos para a internalização dos programas de integridade por meio de diversos mecanismos. E, no pilar cognitivo-cultural, verificou-se o isomorfismo mimético, geralmente nos discursos de exaltação da integridade e de conduta ética, advindos de pressões em prol de um discurso anticorrupção.

Diante disso, foi possível concluir que a multiplicação dos programas de integridade decorreu, com predominância, dos mecanismos de isomorfismo coercitivo, notadamente pelas pressões advindas da legislação, bem como dos mecanismos de isomorfismo mimético nos discursos de ética e integridade. Ademais, foi possível concluir também que os programas de integridade nas organizações estudadas não estão sedimentados, sendo necessário, para isso, que as etapas iniciais do processo de institucionalização sejam superadas por meio da implementação de mecanismos e instrumentos conectados com o realinhamento cultural da organização, promovendo a assimilação dos valores e das práticas formalizadas nos documentos por todos os membros, de forma que eles os apliquem em suas ações cotidianas.

[…] Pode-se afirmar que, de maneira geral, a adoção de um programa de integridade por uma organização decorre do contexto institucional e não do seu potencial de criar uma barreira anticorrupção.

[…] Outrossim, sugerem-se pesquisas voltadas à verificação da eficácia dos programas de integridade em relação à prevenção da corrupção a fim de constatar sua importância, para além da legitimidade conferida às ações das organizações e da simbologia no âmbito social. (VIOL, 2021, p. 187-190)

Desta forma, resta nítido que há fragilidades nos mecanismos de combate a corrupção trazidos Lei 12.846/2013, que acabam por fomentar um compliance de fachada e esvaziar o conteúdo da norma.

Se até as próprias normas externas, provenientes de processo legislativo complexo, envolvendo a necessidade de convergência de diversos atores políticos e detentora do poder coercitivo estatal, podem carecer de efetividade e atender a interesses escusos, quanto mais as normas internas, provenientes do arbítrio das próprias organizações.

5 CONCLUSÃO

O compliance embora não seja uma exigência legal, acaba por se tornar uma obrigação prática do mundo corporativo atual, uma vez que fortalece a imagem das organizações perante os seus stakeholder, atraindo mais investimentos e aumentando seu valor de mercado; ajuda a evitar os mais diversos riscos organizacionais, que ameaçam a subsistência dos negócios; e pode minimizar as implicações de possíveis responsabilizações legais das empresas, por danos ou irregularidades praticados.

Para as organizações que pretendem se valer de tais benefícios, sem contudo pretender a real finalidade de combate à corrupção das ferramentas que o compliance institui, pode parecer suficiente estabelecer um verdadeiro teatro de conformidade e integridade, implantando um programa de fachada, com mecanismos inócuos que não refletem os reais valores de sua governança.

Entretanto, o tone at the top se mostra essencial e primário para a efetividade de todo e qualquer programa de compliance, pois, parafraseando o dito popular, palavras podem até convencer ou enganar, pelo menos até que a prática ou os escândalos que certamente virão provem o contrário; mas só o exemplo arrasta.

Como diz o texto sagrado de Jeremias 17. 9, o coração do homem é corrupto, de sorte que somente uma adesão real as normas de conformidade estabelecidas pode coibir os desvios na eticidade empresarial e como só o exemplo arrasta o tone at the top, sem sombra de dúvidas, é a conditio sine qua non do compliance.


Referências:

BARROS FILHO, Clóvis; PRAÇA, Sérgio. Corrupção parceria degenerativa. Campinas, SP: Papirus 7 Mares, 2015.

BLOK, Marcella. Compliance e governança corporativa. 3ª ed. Rio de Janeiro, RJ: Freitas Bastos, 2020.

BRASIL. [Decreto nº 11.129, de 11 de julho de 2022]. Regulamenta a Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira. Brasília, DF: Presidente da República, [2022]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2022/Decreto/D11129.htm. Acesso em: 15 dez. 2022.

BRASIL. [Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013]. Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidente da República, [2013]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm. Acesso em: 15 dez. 2022.

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Sobre a autora
Ingrid Cristine Vieira Ferreira Nunes

Professora, Advogada e psicoterapeuta, mestre em Estudos Jurídicos com ênfase no Direito Internacional, pós-graduada em Direito Público, Direito Digital e Compliance e Docência e Gestão no Ensino Superior.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NUNES, Ingrid Cristine Vieira Ferreira. “Tone at the top” como “conditio sine qua non” do compliance . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7198, 17 mar. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/103010. Acesso em: 21 nov. 2024.

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