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Considerações sobre a flexibilização da sentença inconstitucional passada em julgado

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TRATAMENTO SUGERIDO PARA OS CASOS QUE LEVAM À REFLEXÃO SOBRE A QUESTÃO DA SENTENÇA INCONSTITUCIONAL PASSADA EM JULGADO.

Os casos apontados por aqueles que pretendem flexibilizar a coisa julgada, inegavelmente, incomodam o senso de justiça comum a todos [66]. Portanto, quem advoga a estabilidade das relações e a manutenção da coisa julgada não pode se furtar a apresentar, senão soluções, pelo menos caminhos para contornar os casos apresentados, sem ferir a coisa julgada. Procuraremos recomendar, para cada caso, o caminho mais adequado, segundo nosso entendimento, de maneira a manter a coisa julgada como valor absoluto.

Primeiramente, abordaremos a questão referente à paternidade: sentença transitada em julgado que determinou, antes da existência do exame de DNA que "A" era filho de "B". Posteriormente, com o avanço tecnológico e a descoberta de novo meio de prova, constatou-se que "B" não é pai de "A". Todavia, por força da coisa julgada, são filho e pai. Adotaremos o caminho apresentado por Ada Pellegrini Grinover. É possível que, sem se falar em flexibilizar a coisa julgada, a questão seja resolvida trazendo para o nosso ordenamento, a ação rescisória especial, que já existe no direito italiano. Em tal ação, o prazo inicial é deslocado para o momento do conhecimento da nova prova. "Surgindo o exame do DNA, é possível, pelo ordenamento italiano, mesmo que o trânsito em julgado tenha ocorrido há dez anos, recomeçar a contar o prazo para essa rescisória especial." [67]

De forma semelhante, pode-se tratar o caso da demanda ambiental que versava sobre a nocividade ou não de um produto, que teve o trânsito em julgado da sentença, cujo dispositivo determinava a não nocividade do produto. Posteriormente, novas descobertas científicas evidenciaram que o produto era nocivo. Aqui, também seria o caso de aplicação da ação rescisória especial. Face às novas descobertas científicas, novos meios de prova, inexistentes à época da prolação da sentença, seria aberto novo prazo para a proposição da rescisória. Tal Instituto é denominado de coisa julgada segundo a prova. Grinover ensinou que:

(...)como a coisa julgada somente colhe os fatos como eles se apresentam no momento da sentença, e não fatos futuros, nós chegamos, com toda a sinceridade, a aceitar a idéia de uma coisa julgada rebus sic standibus, uma coisa julgada enquanto os fatos estão assim, enquanto as coisas estiverem desse jeito. Por exemplo, na ação de alimentos, não é tecnicamente correto dizer, que a ação de alimentos não faz coisa julgada. Faz coisa julgada. Só que em respeito à cláusula rebus sic standibus, qualquer modificação posterior na situação de fato, leva à possibilidade de adaptar a coisa julgada à questão de fato superveniente. Ora, não falta, senão um pequeno passo, para que nós possamos sustentar que perante uma prova nova, que não existia no momento do processo, nós também possamos raciocinar com a coisa julgada, de acordo com a prova. A prova não pôde ser produzida no processo, porque não existia essa nova prova científica. Isso significa que também ela não é colhida por aquilo que nós, os processualistas, chamamos de eficácia preclusiva da coisa julgada e que nos diz, segundo o nosso Código, que todas as questões que foram abordadas, ou poderiam ter sido abordadas no processo, são cobertas pela eficácia preclusiva da coisa julgada. Essa prova não poderia ter sido produzida no processo, porque ela não existia à época e, portanto, a coisa julgada, dando um passo mais, assim como não pode cobrir fatos novos supervenientes, também se poderia sustentar que não pode cobrir provas novas supervenientes. Claro que nós teríamos que dar um prazo para o exercício dessa demanda, a partir da descoberta da prova nova, até porque, de contrário, nós vamos fazer um exame de DNA na ossada de D. Pedro I, para descobrir um descendente que não seja conhecido, e isso não seria pertinente. [68]

Fica a sugestão, ao nosso legislador, de acrescer o inciso X, ao artigo 485 do Código de Processo Civil, incluindo a ação rescisória especial [69].

Há ainda, os casos que possuem em comum a ofensa ao direito de propriedade e ao princípio constitucional da justa indenização. Temos: a) multiplicidade e superposição de sentenças transitadas em julgado condenando o poder público a indenizar a mesma área expropriada, mais de uma vez, ao mesmo proprietário, sem caber ação rescisória; b) o caso em que a área expropriada já pertencia ao expropriante; c) o caso em que após o trânsito em julgado da sentença de desapropriação, o pagamento foi postergado por culpa do ente expropriante, tendo o STF determinado nova avaliação; d) e finalmente, o caso em que a sentença de desapropriação foi proferida na época em que se perdeu o controle sobre a inflação. Assim, no período entre a avaliação do bem e o efetivo pagamento, a justa indenização se esvaía, pois não havia correção monetária e o proprietário perdia o imóvel.

Nos dois primeiros casos, parece-nos que o devido processo legal levou a decisão a conter uma injustiça (indenizar a mesma área expropriada, mais de uma vez ou a área expropriada já pertencia ao expropriante). Para nós, o caminho mais indicado é o de respeitar a sentença passada em julgado, em que pese a injustiça, ou inconstitucionalidade, mesmo porque o ente público [70] teve a oportunidade de se defender em um devido processo legal. O Estado democrático de direito possui valor maior que qualquer quantia a ser paga, ainda que injustamente, mas determinada por decisão judicial, com trânsito em julgado. Entretanto, caberia a apuração da responsabilidade daqueles que deveriam ter evitado tal situação (peritos, institutos de terras, procuradores, dentre outros). Quanto aos casos "c" e "d" parece-nos mais ser uma questão de ordem econômico-financeira, do que de direito. A sentença determinou a desapropriação e o valor a ser pago. Na época do efetivo pagamento, índices econômicos devem ser utilizados para que seja procedida a atualização do valor nominal a ser pago. Efetuar nova avaliação não nos parece o caminho mais adequado, pois conforme escreveu Nery Junior:

O objetivo da ação de desapropriação é consolidar juridicamente a propriedade do imóvel expropriado no patrimônio do expropriante. E, em contrapartida, condenar o expropriante a pagar o equivalente em dinheiro, no valor de mercado, da época da sentença. Na sentença o expropriante é condenado não a uma obrigação de entrega de coisa certa (imóvel), mas a pagar o equivalente, naquele momento, em dinheiro. A obrigação fixada na sentença é de dar (entregar quantia em dinheiro). O objeto da prestação, portanto, não é o imóvel expropriado (obrigação de fazer: entrega de coisa certa), mas a quantia em dinheiro (obrigação de dar: pagar quantia certa) fixada na sentença. Eventual atualização de valores depois do trânsito em julgado da sentença, durante o processo de execução, terá como objeto o dinheiro a que foi condenado o expropriante. Os procedimentos que têm sido empreendidos por alguns órgãos do Poder Judiciário, secundados por opiniões de parte da doutrina, de mandar atualizar o valor do imóvel, ofendem de maneira cabal e irremediável a garantia constitucional da coisa julgada (CF 1º, caput e 5º XXXVI), merecendo reprovação. [71]

O Professor José Joaquim Calmon de Passos, em palestra proferida no dia 14 de abril de 2005 no Seminário "Flexibilização da Coisa Julgada" promovida pelo Instituto dos Advogados Mineiros, apresentou soluções para problemas apresentados. No primeiro caso, Estados da federação brasileira foram condenados a pagar indenizações milionárias em processos judiciais de desapropriação nitidamente fraudulentos, com violação ao princípio constitucional da justa indenização. Para Calmon, a responsabilidade do juiz, do perito, do procurador do Estado, do governador, do procurador geral de justiça, em suma de todos que atuaram no processo, deve ser apurada. Ademais, havia vários recursos para impedir que isso acontecesse. Calmon invoca a lição de Pontes de Miranda, e diz

que uma perícia em descompasso com a realidade é uma falsa prova. E Pontes de Miranda, muito antes da relativização da coisa julgada, sustentava uma tese, que hoje está sendo recuperada, que dizia que, se a lei estabelece como fundamento para a ação rescisória a falsa prova, o prazo de decadência não pode decorrer automaticamente do trânsito em julgado da decisão. Porque você pode ter acesso à falsidade da prova num tempo já muito superior ao biênio. E o espírito da lei não foi consolidar a decisão que se baseou em falsa prova. Então, você pode perfeitamente, sem violentar o sistema, contar o prazo de dois anos, a partir da decisão do processo criminal que considerou a prova falsa, ou da comprovação de que você teve ciência da falsidade daquela prova, naquele momento. Caso uma perícia seja considerada falsa prova não precisa submeter à inalterabilidade da coisa julgada.

Para Calmon de Passos, de maneira semelhante, para aquele que é pai somente por força da coisa julgada, e obtém um laudo do exame de DNA confirmando a não paternidade, tal laudo é documento novo.

E continua na defesa da manutenção da coisa julgada:

Como é que o Estado legitima um agente político: o magistrado. O Estado legitima um procedimento que foi adotado. O Estado legitima uma série de recursos que foi ou poderiam ter sido utilizados. O Estado viabiliza um contraditório, que foi ou poderia ter sido utilizado. Se essa sentença desse juiz, essa sentença patológica, transitou em julgado, você está querendo que o sujeito se utilize da sua própria torpeza ou da sua própria inoperância, imperícia. Porque para uma sentença monstruosa dessa transitar em julgado é necessário: primeiro, que a decisão de primeiro grau não tenha sido objeto de apelação. Que o acórdão monstruoso não tenha sido objeto de recurso especial e que o aresto do Superior Tribunal de Justiça, vá para o Supremo Tribunal Federal (...).

O que você quer é premiar o displicente, o incompetente, o leviano, o descuidado, o inoperante às custas da garantia do sistema democrático. [72]

Não poderíamos deixar de anotar relevante caso evidenciado pelo professor José Joaquim Calmon de Passos [73]. Ele disse que a questão do pai que só é pai por força da sentença com trânsito em julgado, bem como todos as demais apresentadas, apenas servem para que a real pretensão dos desconsideracionistas seja encoberta. Segundo Calmon, o Brasil possui um sistema tributário constitucionalizado e, face às constantes alterações da legislação tributária, fica fácil obter-se a declaração de inconstitucionalidade de uma lei tributária. Entre a entrada em vigor da lei e sua declaração de inconstitucionalidade, há a incidência do tributo. Se a tese da flexibilização da coisa julgada inconstitucional prevalecesse, os tributos recolhidos aos cofres públicos seriam devolvidos aos contribuintes, sem limite no tempo, retroativamente, com correção monetária, juros e honorários de advogado, o que colocaria o Estado brasileiro em dificuldades. Os maiores beneficiários, certamente, seriam os grandes contribuintes. Nesse sentido, a flexibilização seria um grande instrumento de injustiça social. O homem comum nada tem a ganhar com a desconsideração da coisa julgada.

Outra questão relevante, e que pode solucionar alguns casos, é a das sentenças que não transitam em julgado. Tereza Arruda Alvim Wambier defende a tese de que "há certas sentenças (...) que não têm aptidão para transitar em julgado" e propõe que sejam chamadas de "sentenças juridicamente inexistentes". Ensina Tereza Wambier:

No que tange ao processo civil, toda a doutrina reconhece circunstâncias em que a sentença dada deve ser considerada inexistente juridicamente.

Estas circunstâncias se resumem na situação de um processo que, por alguma razão, não se constituiu juridicamente.

A grande maioria dos doutrinadores menciona uma série de requisitos, que, se inexistentes, impedem a formação do processo. O processo tem pressupostos de existência (jurídica, é claro). O que ocorre, no mundo dos fatos, quando estes pressupostos não são preenchidos é um "simulacro"de processo "aparente".

Os requisitos para que se considere um processo como sendo juridicamente existente são correlatos à definição clássica de processo, que praticamente o identifica com a relação jurídica que se estabelece entre autor, juiz e réu. Portanto, sem que haja um pedido, formulado diante de um juiz, em face de um réu (potencialmente presente, ou seja, citado) não há, sob o ângulo jurídico, propriamente um processo.

Claro que uma sentença de mérito proferida nestas condições e neste contexto é por "contaminação", sentença juridicamente inexistente, que jamais transita em julgado.

Portanto, não havendo coisa julgada, rigorosamente dir-se-ia neste caso não estarem presentes nem mesmo os pressupostos de cabimento da ação rescisória, descritos no caput do art. 485: sentença de mérito transitada em julgado." [74]

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No mesmo sentido, Luiz Guilherme Marinoni observa que:

Pontes de Miranda já sustentava, há muito tempo, a existência de sentenças nulas e inexistentes – que dispensariam rescisão, por meio de ação rescisória própria -, reconhecendo que "a sentença nula não precisa ser rescindida. Nula é; e a ação constitutiva negativa pode ser exercida ainda incidenter, cabendo ao juiz a própria desconstituição de ofício. [75]

Assim, parece-nos que se a sentença inexiste, ainda que venha a conter alguma inconstitucionalidade, não necessitará ser flexibilizada. Nestes casos, "é suficiente a ação declaratória para que se conheça o defeito, que até, a rigor, seria desnecessária." [76]


CONCLUSÃO

A flexibilização da sentença inconstitucional passada em julgado é uma idéia que inicialmente possui forte conteúdo sedutor, grande capacidade de atrair para si toda a aprovação. Especialmente quando relatados os casos, que se apresentam como um aparente "xeque-mate" para o valor justiça. Sobre isso afirma Nelson Nery Junior "Essa corrente está na moda, havendo até quem acredite que ela seja de vanguarda" [77].

Todavia, ultrapassada a comoção inicial resultado da apresentação dos casos, a análise mais aprofundada mostra que a sentença inconstitucional passada em julgado não pode ser objeto de ataque. Nessa direção foi o dizer de Calmon de Passos "exemplos que querem apenas reforçar uma tese que não comporta reforço nenhum..." [78] Por outro lado, os argumentos jurídicos que procuram sustentar a flexibilização são, data venia, simplistas.

Como nos ensinou Calmon de Passos, a coisa julgada é uma garantia do dominado. Garantia de que só uma vez, o dominador irá interferir na liberdade e no patrimônio do dominado, sob um mesmo fundamento. "O dominador não precisa da coisa julgada. Ele precisa de luz verde para que a sua dominação seja reiterada quantas vezes ele pretender" [79]. Como o Estado democrático de direito deve garantir a paz social e o bem comum, também deve garantir a coisa julgada. Portanto, podemos dizer que a fortaleza que abriga a coisa julgada é diretamente proporcional à vitalidade do Estado democrático de direito. A coisa julgada é conquista do cidadão comum, do governado. Não podemos admitir o menor ataque a essa conquista. Calmon lembra do perigo de fazermos pequenas concessões, de permitirmos pequenos ataques à coisa julgada, e depois, perdermos a oportunidade de reação, citando o poema, "No caminho com Maiakovski", de Eduardo Alves da Costa:

Na primeira noite eles se aproximam

e roubam uma flor

do nosso jardim.

E não dizemos nada.

Na segunda noite, já não se escondem;

pisam as flores,

matam nosso cão,

e não dizemos nada.

Até que um dia,

o mais frágil deles

entra sozinho em nossa casa,

rouba-nos a luz, e,

conhecendo nosso medo,

arranca-nos a voz da garganta.

E já não podemos dizer nada.

Assim, todo cerceamento de liberdades deve ser veementemente repudiado. E a flexibilização da sentença inconstitucional passada em julgado põe em risco nossa liberdade, é um ataque ao Estado democrático de direito, que nem a ditadura nazista usou.

Cumpre também lembrar que a flexibilização da sentença inconstitucional passada em julgado poderá gerar uma repetição sem fim de demandas, pois o vencido, muito possivelmente, se sentirá injustiçado (ainda que a decisão tenha sido objeto de todos os recursos possíveis ou que esteja esgotado o prazo para ajuizamento de ação rescisória e ainda que a decisão contenha intrinsecamente o exame do valor justiça) e, ao encontrar na decisão judicial alguma contrariedade à Constituição, submeterá ao Judiciário, novamente a mesma questão. Como o Judiciário já está com uma taxa de congestionamento [80] acima do desejável, a situação seria agravada.

O sistema processual civil brasileiro é considerado como um dos melhores do mundo. A flexibilização da sentença inconstitucional passada em julgado afetará substancialmente sua estrutura básica, "mas é equivocado, em qualquer lugar, destruir alicerces quando não se pode propor uma base melhor ou mais sólida." [81]

Ousaremos, aqui, pois, apresentar ao nosso legislador a sugestão de acrescer o inciso X, ao artigo 485 do Código de Processo Civil, incluindo a ação rescisória especial, também conhecida por rescisória secundum eventum probationis. Outra sugestão seria a de majorar o prazo para a propositura da ação rescisória. Tudo isso visando resguardar a sentença transitada em julgado, ainda que inconstitucional, que deve prevalecer em face da segurança jurídica e da preservação do Estado democrático de direito.

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Sobre o autor
Paulo Halfeld Furtado de Mendonça

bacharel em Direito e em Engenharia Civil, analista judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, pós-graduado em Direito Processual Civil e em Engenharia de Segurança do Trabalho

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENDONÇA, Paulo Halfeld Furtado. Considerações sobre a flexibilização da sentença inconstitucional passada em julgado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1513, 23 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10303. Acesso em: 19 abr. 2024.

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