O art. 227, caput, da CF, prevê como dever da família colocar a salvo, as crianças e adolescentes, de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Trata-se do dever constitucional de cuidado, que além de um princípio orientador das relações parentais, é um direito fundamental das crianças e adolescentes, baseado na dignidade da pessoa humana (PEREIRA; TUPINAMBÁ, 2008).
O termo cuidado é substantivo masculino, que significa cautela, precaução, diligência e desvelo; agir com cuidado é, então, não ser desleixado, displicente e negligente (PRIBERAM, 2022). Enquanto princípio constitucional e direito fundamental, compreende-se por cuidado a “atitude de dedicar-se, de doar-se a algo ou alguém, desenvolvendo uma relação de confiança mútua entre o cuidador e aquele que recebe o cuidado” (MOCHI; ROSA, 2014, p. 405). Em síntese, “representa uma atitude de ocupação, de responsabilização e de envolvimento com o outro” (GAMA, 2008, p. 29).
Conforme dito, muito mais que um dever constitucional dos pais e demais responsáveis, o cuidado com as crianças e adolescentes é um direito fundamental destes, e que, por ser fundado na dignidade da pessoa humana, por expressa disposição do caput do art. 227, da CF, deve ter seu conteúdo extraído e alargado, ao máximo, para, assim, garantir proteção integral, em todos os contextos e ambientes, inclusive, virtuais.
Segundo Gonçalves (2015), as crianças e adolescentes atuais compõem a chamada “geração net”, que por nascerem rodeados de tecnologias informáticas fazem delas parte essencial de suas vidas. Neste mesmo sentido, Palfrey e Gasser (2011) os reconhecem como nativos digitais, por fazerem do mundo virtual seu mundo, das redes sociais sua comunidade, dos jogos on-line e das plataformas de streaming seu passatempo.
É inegável a importância da Internet para o desenvolvimento dos pequenos; neste ponto, concordamos com Santarém (2010), no sentido de que o uso dela é um direito fundamental, que deve ser garantido, por se tratar de eficaz instrumento de acesso à informação e de relevante ferramenta de sociabilidade.
O problema reside no fato de que além da “geração net”, o ambiente virtual é igualmente explorado pelos chamados “malandros do cyber-espaço”, que se valem das ferramentas tecnológicas, bem como da ingenuidade e imaturidade dos internautas infanto-juvenis para concretizar suas más-intenções (FIORELLI; MANGINI, 2016). Desta problemática emerge o dever de cuidado virtual, um novo paradigma de obrigação parental, que além de extraído da melhor interpretação do dispositivo constitucional acima referido, foi reforçado pela Lei 12.695/2014, melhor conhecida como Marco Civil da Internet, que em seu art. 29, caput, prevê:
Art. 29. O usuário terá a opção de livre escolha na utilização de programa de computador em seu terminal para exercício do controle parental de conteúdo entendido por ele como impróprio a seus filhos menores, desde que respeitados os princípios desta Lei e da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente.
O cuidado virtual há de ser exercido pelos pais e demais responsáveis, por se tratar de verdadeiro dever jurídico-normativo, cujo descumprimento enseja responsabilização por fato jurídico que a doutrina denomina de abandono digital (PINHEIRO, 2017).
O abandono digital pode ensejar responsabilidade criminal, tendo em vista que o art. 133, do CP, tipifica a conduta de “abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono”.
Ademais, o art. 13, §2º, alínea “a”, do mesmo Código, prevê que responde pelo resultado criminoso aquele que se omitiu quando por lei tinha obrigação de cuidado, proteção ou vigilância, que é o caso dos pais com os filhos, e dos tutores com os tutelados (MACHADO; AZEVEDO; SICA, 2013). Em síntese, se aqueles que estão sob cuidados forem vítimas de crimes cibernéticos, e, ficando provado que tal resultado ocorreu em razão de abandono digital, aquele que deveria agir para proteger o menor poderá igualmente ser responsabilizado pelo fato criminoso.
O abandono digital também gera responsabilidade civil, não apenas em face do menor abandonado, mas também de terceiros que venham a sofrer em razão do abandono, isto porque os incisos I e II, do art. 932, do CC, estendem, aos pais e tutores, a responsabilidade pelos atos dos que estejam – ou deveriam estar – sob seus cuidados, o que é bem ilustrado em julgado do TJRS, em que se condenou mãe a indenizar sujeito, que sofria cyberbullying, praticado pelo seu filho:
Trata-se de um menor que praticava na sua residência cyberbullying, inclusive utilizando o computador da sua mãe, o menor postava mensagens com teor ofensivo além de fazer montagens fotográficas levianas, como nas quais o autor de tal processo aparecia com chifres. Logo depois, o mesmo começou a receber mensagens com conteúdo ofensivo, no qual, o fez ingressar com uma ação cautelar visando a identificação do proprietário do computador que postava e enviava tais mensagens, chegando ao nome da mãe de um colega de turma. A mãe alegou em sua contestação que outros três jovens amigos do filho também faziam uso do seu computador e não poderia ser responsabilizada visto que não possuía conhecimento do feito. Segundo a relatora e desembargadora do caso Pires, aos pais incumbe o dever de guarda, orientação e zelo pelos filhos menores, respondendo civilmente pelos ilícitos praticados, uma vez ser inerente ao poder familiar, conforme o artigo 932 do Código Civil. Em primeiro grau, a Juíza em sua sentença argumentou que: os fatos são claros: em face da ausência de limites que acomete muitos jovens, vide os inúmeros casos de bullying e atrocidades cometidas por adolescentes que vêm a público, o filho da ré, e quem sabe outros amigos, resolveram ofender, achincalhar e fazer com que o autor se sentisse bobo perante a comunidade de Carazinho (TJRS. Carazinho. 1ª Vara Cível. Ação Indenizatória. Processo nº 009/1.07.0007296-3. j. 28/01/2009. p. 11/02/2009).
Se de um lado a tecnologia facilita, em muito, nossas vidas, de outro traz novos desafios, novas preocupações, novas responsabilidades, em especial, no que se refere ao exercício do poder familiar.
Pode-se concluir que o fenômeno da “tecnologização” da vida humana impôs novos contornos ao dever de cuidado com as crianças e adolescentes, que, por fazerem do mundo virtual seu mundo, necessitam, também, de cuidado virtual.
REFERÊNCIAS
FIORELLI, José Osmir; MANGINI, Rosana Cathya Ragazzoni. Psicologia Jurídica, 7. ed. São Paulo: Atlas, 2016.
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A parentalidade responsável e o cuidado: novas perspectivas. Revista do Advogado: Direitos Fundamentais da Criança e do Adolescente - o cuidado, São Paulo, ano XXVIII, n. 101, p. 29-36, dez. 2008.
GONÇALVES, Marta Sofia Andrade. Controlo e supervisão parental na internet: o caso dos pré-adolescentes. Orientador: Professor Dr. Pedro Quelhas Brito. 2015. 95 p. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Economia do Porto, Porto, 2015.
MOCHI, Tatiana de Freitas Giovanini; ROSA, Letícia Carla Baptista. Crianças e adolescentes negligenciados em âmbito familiar: uma violação ao princípio da paternidade responsável. In: MEZZAROBA, Orides et al, (org.). Direito de Família: Coleção Conpedi/Unicuritiba. 1. ed. Curitiba: Clássica Editora, 2014. v. 7, cap. 16, p. 397-423. ISBN 978-85-99651-95-7.
PALFREY, John; GASSER, Urs. Trad. Magda França Lopes. Nascidos na era digital: entendendo a primeira geração dos nativos digitais. Porto Alegre: Artmed, 2011.
PEREIRA, Tânia da Silva; TUPINAMBÁ, Roberta. O direito fundamental ao cuidado no âmbito das famílias, infância e juventude. Revista do Advogado: Direitos Fundamentais da Criança e do Adolescente - o cuidado, São Paulo, ano XXVIII, n. 101, p. 108-115, dez. 2008.
PINHEIRO, Patrícia Peck. Abandono digital. HuffPost Brasil, 26 jan. 2017. Disponível em: http://www.huffpostbrasil.com/patricia-peck-pinheiro/abandonodigital_a_21670532/. Acesso em: 15 mar. 2022.
PRIBERAM. Dicionário, 2022. Disponível em: https://dicionario.priberam.org/cuidado. Acesso em: 14 out. 2022.
SANTARÉM, Paulo Rená da Silva. O direito achado na rede: a emergência do acesso à Internet como direito fundamental no Brasil. Orientador: Prof. Dr. Cristiano Paixão. 2010. 158 f. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, Brasília, 2010.