Em 14/02/2023, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça através do REsp n. 1.717.144/SP, entendeu que a suspensão do cumprimento de sentença, em virtude da ausência de bens passíveis de excussão, por longo período de tempo, sem nenhuma diligência por parte do credor, não pode dar ensejo à suspensão da fluência dos juros e da correção monetária pela configuração da supressio, porquanto a pendência da ação que busca a concretização do título judicial impede que se gere no devedor a expectativa de inexigibilidade do débito.
Antes de prosseguir aos comentários acerca da omissão da parte para caracterização da suppressio, cumpre tecer comentários acerca do instituto.
A suppressio é um conceito correlato à boa-fé objetiva, oriunda do direito comparado (assim como surrectio e tu quoque). E, sua utilização deve-se ater como função integrativa, suprindo lacunas do contrato e trazendo deveres implícitos às partes contratuais (TARTUCE, 2009, p.120).
Assevera Ruy Rosado de Aguiar Júnior (2003, págs. 254 e 255):
“Um direito não exercido durante determinado lapso de tempo não poderá mais sê-lo, por contrariar a boa-fé. O contrato de prestação duradoura que tiver permanecido sem cumprimento durante longo tempo, por falta de iniciativa do credor, não pode ser motivo de nenhuma exigência, se o devedor teve motivo para pensar extinta a obrigação e programou sua vida nessa perspectiva”.
Acrescenta ainda que “malgrado se aproxime da figura do venire contra factum proprium, dela se diferencia basicamente, pois, enquanto no venire a confiaça em determinado comportamento é delimitada no cotejo com a conduta antecedente, na suppressio as expectativas são projetadas apenas pela injustificada inércia do titular por considerável decurso do tempo, somando-se a isso a existência de indícios objetivos de que o direito não mais seria exercido”.
Neste sentido, merece destaque doutrina de Judith Martins-Costa (2018, p.473):
“Uma outra distinção ainda há de ser feita entre as figuras da rejeição ao comportamento deslealmente contraditório no curso de uma relação obrigacional. Há situações em que a contraditoriedade desleal não decorre de dois atos sucessivos de uma mesma pessoa, ou da malícia de quem quer se valer de ato próprio censurável, nem da violação de uma estrutura sinalagmática, mas é indiretamente ocasionada pelo descompasso entre o não uso de um direito subjetivo ou de uma faculdade, durante certo tempo, em vista de uma relação negocial. Este não uso pode criar na contraparte – contra a qual poderia ter sido dirigido o direito subjetivo do credor da prestação – a confiança na estabilidade de situação. Assim, o seu exercício posterior, modificando a situação que estava estabilizada pelo tempo, provoca uma surpresa que abala o estado de confiança na situação criada. Nesse caso, por concreção da boa-fé, cogita-se de o devedor pedir ao juiz a limitação (ou a “paralisação”, “tolhimento”, “supressão” ou mesmo a “extinção”) do exercício do direito subjetivo do credor. Esse efeito é denominado de suppressio, figura em cujo cerne está a estabilidade e/ou a previsibilidade do comportamento, manifestada sobretudo pela consolidação no tempo de certas situações”
Durante o julgamento do REsp 1.643.203, a Terceira Turma do STJ utilizou o instituto da supressio para negar o pedido de indenização de direitos autorais feito por um compositor que criou as vinhetas "Rádio Globooo" e "Fluminenseee" em 1969, e que foram veiculadas permanentemente na programação da emissora sem cobrança por mais de 40 anos. O relator do caso, ministro Marco Aurélio Bellizze, destacou que a vitaliciedade dos direitos autorais não é suficiente para afastar a incidência da supressio, e defendeu uma análise da boa-fé objetiva em consonância com os fundamentos essenciais e principiológicos dos direitos autorais.
Segundo o ministro, as vinhetas foram utilizadas como marca sonora da Rádio Globo desde a sua criação, com o conhecimento e consentimento do autor. Essa relação amistosa de utilização da obra protegida gerou na emissora a expectativa legítima de que poderia continuar utilizando os jingles na programação, até que o compositor modificou sua postura de forma abrupta, décadas depois. O ministro ainda enfatizou que a parte utente agiu de forma condizente com a boa-fé objetiva, e que seus atos externados e indicados pelo próprio recorrente evidenciam que acreditava utilizar a obra de forma gratuita, lícita e contratualmente consentida. Por isso, concluiu que não havia base legal para a condenação das empresas a pagar a indenização pelos direitos autorais.
No julgamento do REsp 1.879.503, a Terceira Turma aplicou a doutrina da supressio para manter um ex-empregado e sua esposa no plano de saúde coletivo contratado pela empresa em que ele trabalhava, mesmo após mais de uma década de seu desligamento. Embora a Lei 9.656/1998 estabeleça um limite de dois anos para a permanência do ex-empregado no plano, o empregador manteve a cobertura para o casal e eles assumiram o pagamento integral das contribuições.
Os ministros consideraram que a longa permanência dos beneficiários no plano criou neles a legítima expectativa de que não seriam excluídos da assistência à saúde, o que violaria o princípio da boa-fé objetiva. A relatora, ministra Nancy Andrighi, explicou que, segundo o princípio da responsabilidade pela confiança, aquele que gera confiança em alguém deve assumir responsabilidade pelos danos causados, citando a doutrina da supressio como um exemplo de responsabilidade pela confiança, que permite a supressão de uma obrigação contratual se o credor não a exigir e gerar a legítima expectativa de que a supressão continuará no tempo.
Ante o exposto dos julgados anteriores, a relevância do REsp 1.717.144/SP se corrobora justamente pela não aplicação do instituto da suppressio nos processos de execução.
O ministro relator Antonio Carlos Ferreira, no Recurso Especial supracitado, entendeu que a fim de estabelecer a supressio e a consequente perda do direito subjetivo de exigência ou criação, é necessário investigar concretamente a importância jurídica da omissão da parte e seu impacto na convicção da outra parte, que confia que o direito não será exercido.
No presente caso, a supressio não é aplicável como forma de extinção do direito do exequente, nem de uma parte deste, uma vez que a suspensão do processo de execução em razão da inexistência de bens não gerou no executado a expectativa legítima de que o direito não seria mais exercido. É importante lembrar que o direito do recorrente foi de fato exercido quando a ação foi ajuizada e o cumprimento da sentença transitada em julgado foi iniciado. Embora certas adversidades a que estão sujeitos os processos judiciais possam atrasar seu desenvolvimento ou mesmo a concretização dos direitos das partes, essas circunstâncias não são verdadeiramente relevantes para qualificar uma omissão como capaz de extinguir o direito. Neste diapasão, o exequente permanece em uma situação de espera e o elemento significativo para a suspensão do processo e o atraso na concretização do direito reconhecido na sentença não é a sua omissão, mas sim a ausência de patrimônio passível de ser usado para cumprir a obrigação.
Por fim, cumpre destacar o alegado pelo próprio ministro:
“Infere-se, pois, que não se pode caracterizar a relevância jurídica da paralisação do processo como causa para a extinção do direito, integral ou parcialmente, pela ocorrência da supressio. O efeito do tempo, no processo e na evolução nominal da obrigação, evidentemente pode exigir das partes a ação segundo determinados padrões de conduta – standards comportamentais –, em especial decorrentes do princípio da boa-fé objetiva, mas, no caso em questão, repita-se, não se encontram presentes os pressupostos para a configuração do instituto da supressio e, por tal razão, não há fundamento para a exclusão da incidência dos juros e da correção monetária.”
Pode-se concluir, portanto, que a omissão por parte do credor se justifica em razão da inexistência de bens do devedor. Sendo assim, não tinha incutido no executado a expectativa legítima de que não seria mais exercido o direito do exequente.
Referências:
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. 2 ed. Rio de Janeiro: AIDE, 2003. Págs. 254-255
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Saraiva, 2018, pág. 473. Livro digital.
TARTUCE, Flavio. Direito Civil, v.3, 3.ed. 2009. Pág. 120.