RESUMO: Não obstante a definição de “natureza” parecer algo bastante simples, uma reflexão holística sobre as diversas abordagens desse conceito demonstra que além de existir uma polissemia do termo, há, sobretudo, na atual conjuntura economica, uma tentativa em elencar uma interpretação que se sobressaia entre as demais. Tal acepção sobre a “natureza”, alguma vezes transformada em uma imposição hermenêutica, é utilizada para lastrear a suposta legitimidade dos interesses de determinados setores da sociedade. Nesse contexto, compreender de fato as acepções sobre a “natureza”, isto é, buscar inferências sem reducionismos, mas pautado no paradigma da complexidade, torna possível compreender melhor as relações sócionaturais que caracterizam determinado ambiente. Por meio desse estudo, busca-se identificar os fatores preponderantes que levam os homens a tomarem decisões quando os mesmos encontram-se diante da relação dialética: crescimento econômico versus preservação do ambiente. Adotou-se uma metodologia norteada pela dialogicidade, a qual segundo Edgar Morin é capaz de aglutinar coisas que supostamente estariam apartadas, identificaram-se alguns marcos históricos, teóricos e epistemológicos definidores de intervalos de tempo-espaço cuja caracterização ao longo do trabalho demonstra existir uma relação intrínseca entre história, filosofia, conhecimento científico e a concepção da “natureza”. Espera-se compreender como as equipes multidisciplinares responsáveis pela elaboração dos RIMAs em Suape concebem o conceito de “natureza” e determinar como tal dimensão pode auxiliar na identificação da origem dos diversos conflitos socioambientais na região de Suape.
Palavras-chave: natureza, sociedade, Suape, Relatórios de impacto ambiental.
Introdução
Segundo Santos & Cigolini (2007), a idéia de “natureza” costuma ser tão vaga quanto controversa, ao mesmo tempo em que adquire considerável importância ao se admitir que, de uma forma ou de outra, o que se concebe como Natureza está subjacente a tudo o que se faz e se pensa sobre o ambiente (SANTOS, CIGOLINI, 2007 apud Springer, 2012).
Lenoble (1969) afirma que a natureza é uma divagação, algo pensado no espaço e no tempo. Ele assevera que “não existe uma Natureza em si, existe apenas uma Natureza pensada, (...). A natureza em si, não passa de uma abstração.”(LENOBLE, 1969).
Em uma digressão histórica sobre a evolução dessas significações do termo “natureza”, Santos (2006), informa que, em um primeiro momento:
“Quando a natureza ainda era inteiramente natural, apenas existia uma diversificação da natureza em estado puro, o movimento das partes, causa e consequência de suas metamorfoses, derivava de um processo proveniente exclusivamente das energias naturais desencadeadas.”
No decorrer dessa evolução histórica, tem-se a primeira presença do homem, ainda sem as “próteses que aumentassem seu poder transformador e sua mobilidade”, até aqui o “natural” predominava. Contudo, após o aperfeiçoamento dessas “próteses”, o cenário modifica-se, e o social passa a preponderar. O geógrafo baiano esclarece que a diversificação da natureza antes operada apenas por forças naturais, com a marcha do capitalismo, amplia tal diversificação. Daí surge uma tendência de que sobre tal diversificação da natureza se realize também uma outra diversificação, proveniente de forças sociais, tratando-se da divisão do trabalho (SANTOS, 2006).
“É a divisão do trabalho que tem a precedência causal, na medida em que é ela a portadora das forças de transformação, conduzidas por ações novas ou renovadas, e encaixadas em objetos recentes ou antigos, que as tornam possíveis.”
“É essa mesma divisão que cria uma hierarquia entre lugares e, segundo a sua distribuição espacial, redefine a capacidade de agir de pessoas, firmas e instituições. A divisão do trabalho supõe a existência de conflitos.”
“Entre esses conflitos alguns são mais relevante. O primeiro é a disputa entre o Estado e o Mercado.” (SANTOS, 2006, pp. 87-88).
Esse contexto de conflitos relacionados com a diversificação da natureza e divisão do trabalho é atinente à atual conjuntura socioeconomica do estado de Pernambuco.
Devido às crescentes taxas de incremento financeiro, diversos empreendimentos têm sido planejados para o estado. As facilidades tributárias e a confiança nos altos índices de crescimento têm atraído os investimentos e a instalação de diversas empresas. Diante desse quadro de vultosas aplicações monetárias, o Complexo Industrial Portuário de Suape (CIPS) desponta como maior receptor de investimentos em Pernambuco (SUAPE, 2015).
De fato, os investimentos são crescentes e as cifras favoráveis à economia pernambucana. Por exemplo, a renda per capita do município de Ipojuca tem chegado, nos últimos anos, a ser maior do que a da maioria dos demais municípios brasileiros (CEPLAN, 2014).
Todavia, todas essas taxas de crescimento econômico têm sido acompanhadas da prática de diversos delitos socioambientais. Desde que o CIPS foi criado, com o intuito de implantar diversas indústrias, sempre existiram inúmeros conflitos socioambientais (ALVES, 2011) Assim, torna-se necessário analisar em que grau o CIPS tem logrado êxito na tentativa de equacionar os conflitos decorrentes da substituição paulatina de um ecossistema natural exuberante que, outrora, dominava a região, com os requisitos de industrialização exigidos para a sua consolidação.
Diante desse cenário, grandes investimentos capazes de alavancar os índices de crescimento econômico do Estado, entretanto, ainda são insuficientes para preservar a biota local e melhorar a qualidade de vida das populações nativas. Tem-se constatado diversos conflitos, vislumbrados por Milton Santos, como anteriormente mencionados.
Nesse âmbito emergem críticas quanto ao modelo de desenvolvimento adotado pelo Estado. Indaga-se sobre a proporcionalidade das benesses trazidas pela implantação dos grandes empreendimentos em Suape, em comparação aos prejuízos deixados, por exemplo, pela supressão de vastas áreas de Mata Atlântica, de Restinga e de Mangue. Faz-se necessário analisar mais do que os investimentos que o CIPS está trazendo, é salutar investigar se o ambiente está sendo preservado, não só sob o aspecto antropocêntrico, mas, sobretudo, através de uma visão holística.
Na seara da legislação brasileira, a Política do Meio Ambiente (PNMA) foi instituída através da Lei Federal n° 6.938/1981, considerada um marco na área ambiental. A PNMA estabeleceu diversos instrumentos jurídicos para garantir que a tomada das decisões levasse em consideração a prevenção e o controle de atividades e empreendimentos potencialmente poluidores (MILARÉ, 2009). Dentre esses mecanismos destacam-se os Estudos de Impactos Ambientais (EIAs) e os Relatórios de Impacto Ambiental (RIMAs).
Atualmente, esse tipo de Avaliação de Impacto Ambiental (AIA) é um dos instrumentos mais importantes para a proteção dos recursos ambientais. A própria Constituição de 1988, no intuito de assegurar a efetividade desse direito, dogmatizou em seu Art. 225, Inciso IV, esse instrumento como sendo um dos deveres do Poder Público:
Exigir, na forma da Lei, para a instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade.
Apesar de o ordenamento jurídico brasileiro dispor de um grande conjunto de elementos judiciais e administrativos, cujo escopo é o de proteger os recursos naturais, isso não quer dizer que esses elementos apresentem eficácia concreta. Torna-se necessário verificar se esses instrumentos são eficazes.
Diante de todas estas questões, compreender, de fato, as acepções sobre a “natureza”, isto é, buscar inferências sem reducionismos, mas pautadas no paradigma da complexidade, tornará possível avaliar com maior eficiência as relações socionaturais que caracterizam a região de Suape. Através desse estudo acredita-se ser possível detectar com mais profundidade os fatores preponderantes que levam tanto o setor público como a iniciativa privada a tomarem decisões quando os mesmos encontram-se diante da relação dialética: crescimento econômico versus preservação do meio ambiente.
Por meio dessa investigação espera-se chegar a compreensão de como as equipes multidisciplinares responsáveis pela elaboração dos Estudos de Impacto Ambiental da região do Complexo Industrial Portuário de Suape (CIPS) concebem o conceito de “natureza” e como tal dimensão auxilia na prática de entender a origem dos diversos conflitos socioambientais na região.
Aporte metodológico e recorte espacial
Com o escopo de refletir, pautado no paradigma da complexidade, sobre as diversas maneiras de entender o conceito de “natureza”, optou-se nessa investigação por associar fatos históricos, conhecimentos filosóficos e conhecimentos científicos. Tais fatos, devido à persecução de um estudo melhor fundamentado receberam um duplo recorte no que tange ao espaço, ao âmbito de Suape, e no que diz respeito ao tempo, a uma breve cronologia desde a chegada dos primeiros europeus ao Cabo de Santo Agostinho até os dias atuais.
As diversas acepções da “natureza” num breve resgate histórico sobre a região de Suape:
Embora grande parte da literatura sobre Suape inicie o resgate histórico sobre a região a partir das décadas de 60 e 70, quando das primeiras iniciativas para a construção do Porto, insta registrar os fatos históricos pretéritos a essa etapa “inicial”. Conforme afirma Jacques Le Goff (1992), em sua obra “História e Memória”, “a memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado, para servir o presente e o futuro”.
Desse modo, investigar as memórias iniciais de Suape é relevante para o entendimento da atual dinâmica das relações socioambientais naquele espaço.
Vainsencher (2006), em seus estudos minuciosos sobre a história da região de Suape, informa que:
Cabe ressaltar que Suape era o nome de um ancoradouro existente na ilharga do Cabo, que ficava separado do mar por um cordão de recifes de arenito. Em sua extremidade norte, no qual desembocavam três rios importantes - o Massangana, o Tatuoca e o Ipojuca - uma muralha de aproximadamente 800 metros permitia o acesso de pequenas embarcações. Quando somente os índios viviam ali, o atual rio Massangana era chamado de Suape - que, em tupi, significa caminho incerto - devido à própria trajetória incerta desse rio. Desde o começo da civilização, então, por seu alto valor estratégico, a posição do Cabo de Santo Agostinho e a configuração das regiões adjacentes deram margem à utilização do estuário de Suape como base de infra-estrutura portuária, bem como à disputa de holandeses e portugueses pelo seu domínio, em grandes batalhas. Desde sempre, portanto, aquele estuário exerceu funções econômicas e estratégicas.
Dessa história propedêutica que traz breve relato dos primitivos que habitavam Suape é possível refletir sobre uma primeira conceituação do termo “natureza”. Na época do “descobrimento” do Brasil percebe-se que as descrições históricas colocam a natureza como algo que o homem pudesse dispor, como um subsídio para que ele conseguisse sobreviver. Embora existissem fenômenos adversos que causassem, inclusive, medo no homem daquela época, como os trovões e as enchentes, esses acontecimentos não eram tão relevantes, pois, apesar de tudo, a “natureza” estava ali, para servir ao homem, e era, como muito bem definiu Milton Santos (1994), “o tempo do homem amigo e da natureza amiga”.
Além dessa dimensão do conceito de “natureza” pelos primitivos, é possível, por meio desse excerto dos estudos de Vainsencher (2006), constatar outra concepção de “natureza”, desta vez, pelos primeiros homens brancos que habitaram Suape. Infere-se que a perspectiva desses homens brancos era consoante com a percepção predominante na época. Tratava-se do período da Expansão Marítima e de grande influência da Igreja Católica; desvela-se, nessa época, uma dimensão da “natureza” baseada na lógica estóico-cristã, a qual admitia a “natureza” como estranha, entretanto, não a admitia como algo hostil ou indiferente, pois, segundo tal tradição, a natureza foi criada por Deus para ser utilizada pelo homem. Nesse raciocínio, a “natureza” poderia até ser considerada “estranha” porque não era racional, mas era, sobretudo, uma ajuda material ao homem, pois sempre o fazia lembrar, através das catástrofes como o dilúvio, os vulcões e as tempestades, quão corrupta é a humanidade (PASSMORE, 1975).
Nesse diapasão, Passmore (1975) explica que, alguns anos depois, Francis Bacon ao defender a transformação da “natureza”, isto é, a recriação do Jardim do Éden, lutou contra a visão de que o homem era corrupto demais e de que a natureza era sagrada demais para ser tocada. Passmore (1975) esclarece que Bacon, para tal refutar tal crença, afirmou que foi o homem que Deus fez à sua própria imagem, não a natureza. Não obstante Bacon salvaguardar que o criador fez a natureza para o homem, é perceptível que sua visão sobre a mesma é muito similar à perspectiva estóico-cristã, o filósofo apreende a “natureza” com a dimensão utilitarista (PASSMORE, 1975).
Considerando o período posterior àquele em que a “natureza” deixa de ser algo estranho, o filósofo Gilberto Cotrimn (2006) faz a seguinte análise:
“Esse respeito e temor à natureza foi sendo gradativamente reduzido à medida que as sociedades tornavam mais complexas e desenvolviam novas formas de conhecer. Por meio do conhecimento racional, o homem foi se desprendendo dos elos míticos, sobrenaturais, que o ligavam à natureza. Esse processo foi iniciado nos séculos XVI e XVII com o desenvolvimento da ciência moderna, foi o “desencantamento” do mundo. A natureza passou a ser estudada e manipulada.”
Independentemente de qual medida da percepção utilitarista da “natureza” possa ser apreendida nesse primeiro contato dos portugueses com o território de Suape, seja no âmbito da lógica estóico-cristã ou do ponto de vista defendido por Bacon, é certo que a natureza, a partir desse momento, passou a ser vista como algo a ser mediatizado pelo homem.
Seguindo nessa breve descrição histórica sobre a região, Vainsencher (2006) relata:
“Um outro espaço, por sua vez, foi se formando no Cabo de Santo Agostinho, a partir da substituição da Mata Atlântica pela cultura da cana-de-açúcar, fazendo predominar, na região, a atividade econômica da agroindústria açucareira. Através dessa atividade, começou a verdadeira colonização daquelas terras, assim como a implantação das usinas. A vila do Cabo de Santo Agostinho foi criada por força do alvará de 27 de julho de 1811, e da Provisão Régia de 15 de fevereiro de 1812. Só a partir de 9 de julho de 1877 a cidade tomou o nome de Cabo de Santo Agostinho.
Durante muito tempo, e na maior parte do século XX, o distrito industrial de Pernambuco concentrou-se no município do Cabo, na Região Metropolitana do Recife, porque a capital do Estado não dispunha de um espaço adequado para tal finalidade. O crescimento das regiões urbanas, entretanto, veio provocar uma maior sobrecarga no Porto do Recife, o que contribuiu para se pensar em alternativas portuárias ao sul do litoral. O recôncavo do Cabo de Santo Agostinho, e uma área ao seu redor, foram escolhidos como a melhor e mais próxima opção.”
Dos ensinamentos da obra “Revolução Urbana”, de Henri Lefebvre (2004), que tratam dos três “campos” (rural, industrial e urbano), é possível, afirmar que esse período marca, justamente, o fim da época rural. Logicamente, com todas as ressalvas feitas por Lefebvre (2004) a respeito dos “campos cegos” e dos significantes flutuantes que a transição entre essas camadas possam conter (LEFEBVRE, 2004).
Historicamente, tem-se que o projeto de um Porto em Suape data de 1973, quando da elaboração do primeiro plano diretor para a área, não obstante a preocupação em concretizar tal projeto por meio de um instrumento de planejamento urbano, a verdade é que as obras em Suape iniciaram em 1977, quando da expropriação de 13.500 ha de terras de moradores tradicionais (PEREZ, GONÇALVES, 2012).
Existe em Suape um espaço altamente antropizado em que “o campo industrial substitui as particularidades naturais por uma homogeneidade metódica e sistematicamente imposta” (LEFEBVRE, 2004, p. 42). Tal metamorfose acontece nesse momento na maior parte do mundo, em obediência à razão, à lei, à autoridade, à técnica, ao Estado e à classe que detinha a hegemonia na época (LEFEBVRE, 2004).
É possível encontrar a apologia a esse processo de urbanização no EIA/RIMA sobre o Engenho Trapiche, empreendimento estudado pela empresa MONITORE que tinha por função, segundo a própria empresa, “implantar um projeto estruturado, voltado para atender a demanda por serviços, comércio, lazer e, sobretudo, moradias decorrentes do Complexo de Suape.” (MONITORE, 2013 -RIMA DO ENGENHO TRAPICHE, p. 8).
Hodiernamente, assim como ocorre na maioria dos espaços globalizados, Suape torna-se cada vez mais urbano e inserido na lógica da mais- valia: o ambiente servindo cada vez mais à formação do capital.
“A história do homem sobre a Terra é a história de uma rotura progressiva entre o homem e o entorno. Esse processo se acelera quando, praticamente ao mesmo tempo, o homem se descobre como indivíduo e inicia a mecanização do Planeta, armando-se de novos instrumentos para tentar dominá-lo. A natureza artificializada marca uma grande mudança na história humana da natureza. Hoje, com a tecnociência, alcançamos o estágio supremo dessa evolução.” (SANTOS, 1994, p. 5).
A visão da “natureza” nos Estudos de Impacto Ambiental
Segundo Neil Smith (1988), na obra “Desenvolvimento Desigual”, há um dualismo essencial que permeia toda a celeuma sobre a concepção da Natureza, trata-se da natureza externa e da natureza universal.
A natureza externa seria uma coisa, o reino dos objetos e dos processos que existem fora da sociedade, seria também a “fronteira que o capitalismo industrial frequentemente faz recuar” (SMITH, 1988). Essa natureza seria, basicamente, as águas, os rios, as tempestades, enfim, a natureza que está esperando para ser internalizada no processo de produção social (SMITH, 1988).
Do outro lado, a natureza universal contrapõe-se à natureza externa ao afirmar que a espécie humana é, na verdade, uma entre muitas na totalidade da natureza. Logo, os seres humanos e seu comportamento social são absolutamente tão naturais quanto os aspectos ditos “externos” da natureza (SMITH, 1988).
No cenário desse estudo percebe-se que alguns pontos dos RIMAs sobre Suape permitem a ilação de que existe a utilização da concepção da “natureza” exterior ao homem, principalmente quando da adoção das técnicas para avaliação dos impactos ambientais.
A análise de alguns Relatórios de Impacto Ambiental em Suape, embora se revistam de um discurso que defende a abordagem holística sobre os impactos socioambientais, na práxis, tem por escopo linearizar o debate e aplicar metodologias que reduzam as complexidades das relações socionaturais exclusivamente aos interesses antrópicos.
Nessa dimensão, a própria ideia de multidisciplinaridade é atacada por esses estudos como tentativa de legitimação da ideia de que a análise das questões ambientais pautada no paradigma da complexidade não otimiza a elaboração dos Estudos Ambientais.
“A grande mudança de paradigma nos últimos tempos é considerar que o homem como espécie humana, com toda sua complexidade, também é meio ambiente. Esta nova conceituação veio dificultar ainda mais o entendimento das definições ambientais, pois foram agregados novos conceitos atrelados diretamente às atividades humana, como por exemplo, a qualidade de vida, o desenvolvimento sustentável, os ecossistemas urbanos, os aspectos culturais e inclusive religiosos por citar só alguns deles.” (MORAES & ALBUQUERQUE, 2010 – RIMA DO ESTALEIRO PROMAR).
“Já o cenário de implantação foi analisado inicialmente através dos impactos positivos, e seguidamente dos impactos negativos, aplicando-se para isso a metodologia ad-hoc apoiada com uma matriz ponderativa que, a critério da equipe, consegue diminuir o grau de subjetividade envolvido normalmente neste tipo de abordagem.” (SOLUÇÃO ENGENHARIA, 2010 – RIMA DO CONTORNO RODOVIÁRIO DO CABO DE SANTO AGOSTINHO).
A teoria de Buffon modernizada nos Estudos Ambientais em Suape
Dentro dessa perspectiva de análise da percepção do conceito de “natureza” nos Estudos Ambientais em Suape percebeu-se que algumas abordagens dos RIMAs do CIPS, por vezes, ao realizarem o Diagnóstico Ambiental da área onde será implantado o empreendimento, cometem o mesmo equívoco que o naturalista Buffon (1707-1788) fez em sua época, isto é, uma análise reducionista.
O Conde de Buffon, por meio de sua Teoria da Degenerescência, afirmava que a fauna do Novo Mundo isto é, a fauna do continente americano, recém-descoberto, era inferior à fauna do Velho Mundo, pois, que essa primeira era originada de um processo de mutação, de decadência, uma verdadeira degeneração ocasionada pela transferência dos animais da Europa para as Américas (CAMPOS, 2010).
Buffon aderiu à concepção de “natureza” como algo exterior ao homem e também tinha a visão utilitarista de que a “natureza” é algo a serviço do homem, isto é, para o estudioso, a “natureza” estaria a serviço do homem para ser dominada. Também é possível verificar que Buffon analisa o espaço de modo bastante cartesiano, prezando pelo o que é fixo e invariável. Buffon reduz seu campo de visão e não faz uma análise capaz de abarcar as complexidades de um sistema, restringe suas observações a comparações com espécies da Europa e concluiu, de modo equivocado, que tudo que destoasse dos moldes europeus, seria inferior (CAMPOS, 2010).
Sobre tal acepção reducionista, Gerbi (1996) faz importante crítica, ventilando que tal dimensão sobre o Novo Mundo não foi ao acaso:
“Julgar a fauna e flora do Novo Mundo como imatura e degenerada equivalia a proclamar a do Velho Mundo madura, perfeito, idônea, capaz de servir de cânone e ponto de referência a qualquer outra fauna de outro recanto do globo. Com Buffon, o eurocentrismo se afirma na nova ciência da natureza viva. E por certo não é mera coincidência que isso acontecesse exatamente quando a ideia da Europa se tornava mais plena, completa e gargalhada.”.
Em paralelo à teoria buffoniana, algumas análises dos Relatórios de Impacto Ambiental, realizados por equipes multidisciplinares na região de Suape, retomam essa equivocada visão, pois, que menosprezam espécies animais nativas, comunidades tradicionais e a flora local em prol de possíveis vantagens econômicas que o empreendimento a ser implantado pudessem trazer ao homem, ou melhor, a uma parcela da sociedade.
Ver gratia, para ilustrar a subsunção de tal acepção a um caso concreto, traz-se trecho do RIMA do Estaleiro PROMAR S.A., elaborado pela empresa Moraes & Albuquerque. Tal RIMA utilizou a metodologia ad hoc para a avaliação ambiental da área (Ilha de Tatuoca) onde foi implantado o empreendimento (Estaleiro).
“De uma forma geral, o conjunto de impactos analisados esteve dentro do que se previa em função da essência do Empreendimento. Com efeito, os impactos positivos de maior relevância, ou seja, aqueles qualificados como de importância MUITO ALTA ou ALTA, estiveram associados à possibilidade de geração de emprego, renda e qualidade de vida. Estes impactos, e em geral todos os analisados de caráter Positivo, apresentam uma abrangência regional direcionada para o meio antrópico, contrariamente aos impactos negativos que em sua grande maioria apresentam abrangência pontual ou local com efeito nos meios físico-biótico. Significa isso a socialização da riqueza ecológica de uma área, através de uma equação da forma: Riqueza ecológica = benefícios sociais + compensação + mitigação.” (MORAES & ALBUQUERQUE, 2010 – RIMA DO ESTALEIRO PROMAR S.A, p.59).
A leitura atenta desse trecho reflete a adoção de uma visão fragmentada sobre a “natureza”, a qual reconhece o homem como algo apartado da natureza; identifica-se nesse trecho apenas o direito de preservação do meio ambiente específico da espécie humana.
Nessa percepção, a valoração dos impactos é realizada tendo-se o antropocentrsimo como parâmetro e não a complexidade das relações entre todas as espécies. Assim, a averiguação dos impactos positivos é reduzida às benesses trazidas ao homem, esquivando-se de trazer à baila qualquer suposta vantagem às outras espécies.
No que tange à análise dos impactos negativos, o RIMA aparta o homem da natureza ao formular uma construção interpretativa que faz parecer que o homem não será influenciado por quaisquer danos que a implantação do projeto possa trazer, pois, segundo o RIMA os efeitos serão apenas “nos meios físico-biótico”. Mas e o que seriam esses meios físicos-bióticos? O homem não faz parte desses meios? Com eles, o homo sapiens sapiens não interage?
Trata-se de uma visão equivocada, similar às inferências de Buffon sobre a “natureza” do Novo Mundo, as quais, segundo ele, tratava-se de uma natureza “bem menos ativa, bem menos variada, e podemos até dizer bem menos forte” (GERBI, 1996). Ainda sobre esse trecho, na parte final, de maneira bastante cartesiana e semelhante à toda rigidez sistemática de Buffon, esse trecho do RIMA do estaleiro PROMAR tenta reduzir todas as complexidades das interações da dinâmica socionatural a uma equação matemática.
Entretanto, a análise minuciosa dessa equação põe em evidência que a “riqueza ecológica” não é algo democrático para todas as espécies, mas favorável apenas (e, em uma visão economicista) para o homem. As próprias variáveis dessa equação não se relacionam com quaisquer benefícios para outras espécies, no máximo, como é o caso da compensação, apenas devolvem o que foi retirado, não existindo, portanto, nenhum acúmulo ou nenhuma riqueza para qualquer outra espécie que não a humana.
Estudos Ambientais elaborados sob essa perspectiva priorizam exposições que conclamam as benesses que o advento dos empreendimentos possam trazer e mitigam a exibição dos possíveis prejuízos, de tal modo que a Avaliação dos Impactos Ambientais é tomada pela imparcialidade, pela influência de fatores econômicos e políticos, e não por uma análise norteada pela complexidades de todas as relações socionaturais.
Para que a teoria de Buffon não se perpetue, as equipes multidisciplinares que elaboram os EIAs/RIMAs não devem polarizar erroneamente dados, conhecimentos e idiossincrasias dos diversos saberes (geografia, zoologia, engenharia, sociologia , botânica, dentre tantos outros) que são verdadeiros em si, mas não o são em oposição a outros dados, conhecimentos e particularidades. É preciso, verdadeiramente, buscar realizar, em todas as etapas de um EIA, a análise crítica e complexa das relações socioambientais de um ambiente.
Os recursos naturais e a “vocação” de Suape para região portuária
Através do breve resgate histórico realizado nesse ensaio sobre a região de Suape, ficou claro que o CIPS foi taxativamente apontado como o local apropriado para a instalação de uma área portuária e de indústria, inclusive desde a época da chegada dos primeiros europeus na região.
Tal acepção fundamentou-se, principalmente, sob o argumento de que os recursos naturais disponíveis em Suape são propícios para a implantação do Porto e de diversos outros empreendimentos. Entretanto, a premissa, a priori inconteste, de que a região de Suape, desde os tempos do descobrimento do Brasil, dispõe de uma vocação para ser uma área destinada aos serviços portuários e de indústrias exige reflexão anterior ao debate sobre se, de fato, a área é ou não vocacionada para esses serviços.
É preciso, prima facie, entender sob qual perspectiva se entende esses recursos naturais, na verdade, urge saber, epistemologicamente, qual o conceito que se tem sobre recursos naturais. Um dos muitos aspectos importantes sobre a compreensão acerca dos recursos naturais subjaz, particularmente, no escopo principal desse estudo. A análise da efetividade dos estudos de impacto ambiental em Suape só pode ser feita através de uma abordagem que contemple a formação socioespacial, isto é, buscar entender como são elaborados os EIAs na região perpassam, sobretudo, pela perquirição de como os atores sociais enxergam e modificam suas possibilidades materiais e imateriais.
Tal relevância sobre o sentido dos “recursos naturais” é atestada por Santos (2001):
Recursos são coisas, naturais ou artificiais, relações compulsórias ou espontâneas, ideias, sentimentos, valores. É a partir da distribuição desses dados que os homens vão mudando a si mesmos e ao seu entorno. Graças a essa ação transformadora, sempre presente a cada momento os recursos são outros, isto é, se renovam, criando outra constelação de dados, outra totalidade (SANTOS, 2006, p. 86).
Ainda nessa reflexão, o exímio geógrafo afirma que, muitas vezes, a análise sobre os recursos naturais de um lugar é realizada de modo bastante restrito, isto é, cada disciplina objetiva apenas elencar os recursos de acordo com suas idiossincrasias e terminam por descartar os demais ramos do saber; percebe-se, assim, que está presente a ausência de análise pautada pelo paradigma da complexidade.
Tal fracionamento a respeito da análise dos recursos naturais reflete-se na escolha do método para a avaliação dos impactos ambientais em Suape. A grande maioria dos modelos dos atuais EIAs/RIMAs relacionados aos empreendimentos da região utilizam-se do método ad-hoc e do método de listagem de controle.
O método ad-hoc consiste em reuniões com a participação de técnicos e cientistas especializados, que tenham conhecimentos teóricos e práticos em setores relacionados às características do empreendimento em análise. As Listagens de controle consistem no preparo, por especialistas, de listagens de fatores ambientais potencialmente afetáveis pelas ações propostas (BRAGA et al., 2005).
A análise dos EIAs/RIMAs elaborados pelas equipes multidisciplinares em Suape demonstram que tais empresas utilizam os mesmos métodos para diferentes tipos de empreendimentos. Segundo Braga et al. (2005) “a definição da metodologia a ser empregada para a avaliação dos impactos ambientais é tarefa específica de cada caso que se apresenta e deve partir da comparação entre os métodos de aplicação correntes.”.
Santos (2001) ensina que os recursos não possuem, per si, uma valoração absoluta. Ele afirma que o valor real dos recursos, seja recurso humano, de ideias, materiais, naturais, ou mesmo aporte financeiro, é função de sua qualificação geográfica.
Nessa perspectiva holística, os recursos têm a sua relevância através da significação global que todos e cada qual obtêm pelo fato de participar de um lugar:
Fora dos lugares, produtos, inovações, populações, dinheiro, por mais concretos que pareçam, são abstrações. A definição conjunta e individual de cada qual depende de uma dada localização. Por isso a formação socioespacial e não o modo de produção constitui o instrumento adequado para entender a história e o presente de um país. Cada atividade é uma manifestação do fenômeno social total. E o seu efetivo valor somente é dado pelo lugar em que se manifesta, juntamente com outras atividades.
Considerações finais
Os Estudos e Relatórios de Impacto Ambiental realizados em Suape utilizam, ainda em considerável parte de suas ações, uma visão utilitarista da “natureza”, por vezes dissociada de uma análise verdadeiramente complexa. Inferiu-se, por exemplo, que muitos dos EIAs intencionam, de modo similar à concepção estoicista, ventilar que os recursos naturais da região estão disponíveis para o uso e que a sua não utilização concretizaria um desperdício. Desse modo, percebe a visão cartesiana de que caberia ao homem conquistar e explorar essa “natureza”.
Destarte, observa-se que o conceito de “natureza” utilizado em alguns trechos dos EIAs/RIMAs é o que segrega o homem e o faz parecer como apartado de toda a biocenose. Se, por um lado, tais excertos dos Estudos ambientais traspassam, em certos momentos, uma compartimentalização das áreas sociológica, antropológica e filosófica de suas análises, por outro, exacerbam na “filosofia prática” e na “tecnologia baseada na ciência” com tecnicismos que tentam legitimar a ideia de que o espaço dispõe de maior valor apenas quando antropizado.
Com o escopo de defender os projetos dos empreendimentos, os EIAs priorizam dados técnicos, estatísticas e informações particularizadas, em detrimento de uma análise global e efetiva; configura-se o que Rutherford chamou de “a física e fazer coleções de selos” (PASSMORE, 1975) e acabam por não dar a devida efetividade que o Estudo ambiental requer, isto é, um trabalho que se paute nas complexidades das interações existentes no ambiente.
Referências
ALVES, José Luiz. Suape e sua trajetória histórica: um olhar geográfico. Pernambuco, 2011. 259f. Tese de Doutorado. Departamento de Ciências Geográficas. Programa de Pós-Graduação em Geografia. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal de Pernambuco, Pernambuco.
BRASIL – Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Texto constitucional. Brasília, DF, 1988.
______. – Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. Brasília, DF, 2001.
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