Resumo: O presente artigo científico trabalhou com a controvertida temática do Direito Penal do inimigo, em uma perspectiva de descobrir a sua influência ideológica, de modo prático, no âmago do ordenamento jurídico-penal brasileiro. Ademais, paralelamente à essa investigação, buscou-se aclarar a existência de uma relação teórica entre a tese e a corrente do movimento punitivista, a julgar pela busca em comum de ambas por normas mais rígidas em desfavor de transgressores reincidentes e de alta periculosidade. Para tanto, foi imprescindível se debruçar inteiramente na compreensão do tema, desde a junção das peças que deu origem à concepção da ideia, percorrendo por outras etapas inexoráveis do desenvolvimento do debate teórico, até a circunstância elementar que determinou se o objetivo desse ensaio seria alcançável. Ao final, pôde-se confirmar a presença cada vez mais frequente da matéria, ainda que de forma flexibilizada, no espírito das leis pátrias, o que gera preocupação para o futuro do Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: Direito Penal do inimigo. Ordenamento jurídico brasileiro. Movimento moderno punitivista. Dignidade da pessoa humana.
Sumário: 1. Introdução. 2. Arquitetura jurídica do Direito Penal do inimigo. 2.1. Conceito e características. 2.2. Origem. 2.3. Atual sistema penal do inimigo junto ao ordenamento jurídico brasileiro. 2. 4. Movimento moderno punitivista. 2. 5. Direito Penal do inimigo: existe afronta ao ordenamento jurídico brasileiro. 3. Conexão do Direito Penal do inimigo e o movimento punitivista. 4. Conclusão. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo tem o interesse em buscar a existência da polêmica teoria do Direito Penal do inimigo, do autor e professor alemão Günther Jakobs, dentro do ordenamento jurídico-penal brasileiro, e simultaneamente, traçar um paralelo com o movimento punitivista, a fim de discutir se há algum vínculo entre os objetos teóricos comparados, na busca incessante em reprimir severamente a impunidade, ainda que com ofensa a direitos e garantias fundamentais.
Nesse contexto, primeiramente, apresenta-se a estrutura formada pela união de todos os elementos que, de alguma maneira, influenciou decisivamente no momento da criação da tese que aqui se pretende explanar, para que possa ser possível entender como essa combinação multidisciplinar deu origem a um ambiente propício para que Jakobs pudesse ter êxito em seu trabalho, apresentando para o mundo a figura do inimigo.
Na sequência, passa-se a explorar o conceito que alguns teóricos deram a respeito do vocábulo inimigo, cada qual com a sua peculiaridade, a fim de demonstrar assim que existem diferenças dentro da própria essência do tema. Ademais, ainda no mesmo tópico, são apresentadas as principais características que Günther Jakobs acredita traduzir fielmente o conteúdo do seu pensamento.
Em seguida, entra-se na parte histórica da tese, ou seja, no período em que o seu mentor utilizou de todos os recursos cabíveis para criá-la, todavia, não se ficará restrito somente ao momento específico em que surgiu de fato aquilo que receberia o nome de Direito Penal do inimigo, será descrito também, ainda que vagamente, o recorte da concepção de outros filósofos que serviram de parâmetro para o autor conceber o seu ideal à sua maneira.
A partir deste ponto, parte-se para uma análise do teor de algumas normas penais pátrias, a fim de discutir uma possível introdução das ideias de Günther Jakobs, ainda que de forma relativizada, haja vista a admissibilidade cada vez mais frequente por parte da Sociedade, que puxada fortemente pela crescente violência dos últimos tempos, poderia levá-la a aceitar qualquer meio para caçar a figura do inimigo, inclusive uma teoria voltada para a guerra.
Imediatamente após isso, ausenta-se da esfera exclusiva do tema Direito Penal do inimigo e se inicia um afunilamento do debate para tratar a respeito dos principais movimentos de política criminal da modernidade, especificamente, com ênfase na corrente punitivista, visto que é aquela que mais se aproxima do discurso implantado na teoria do autor alemão, ou seja, propor uma repressão mais rígida à criminalidade.
Na penúltima seção, o questionamento se volta para saber se a essência do trabalho mental de Jakobs obedece aos princípios fundamentais da Carta Magna brasileira, visto que isso é uma condição essencial para adentrar juridicamente nas normas penais, logo, a sua aquiescência não depende apenas da vontade popular, tem que ser exclusivamente pelo crivo da legalidade, pois, do contrário, poderia pôr em risco ao Estado Democrático de Direito, e é justamente o que esse tópico irá procurar analisar.
Finalmente, chega-se ao último, e provavelmente, o mais importante tópico desse trabalho, pois é neste ponto que serão postos paralelamente o Direito Penal do inimigo e o moderno movimento punitivista, com a finalidade de discutir uma possível relação existencial entre ambos, visto que se destacam na defesa do mesmo prisma, ou seja, punição máxima e menos direitos aos transgressores da lei.
Para chegar em toda essa contextualização, fez-se o uso de um método descritivo-analítico, por meio de um estudo alicerçado basicamente em um agrupamento bibliográfico, com essência em alguns livros, em especial, naquele que foi escrito pelo autor Günther Jakobs. Ademais, o ensaio também se baseou em artigos publicados na internet sobre o tema, bem como na própria letra de várias leis já normatizadas, tudo isso voltado para solucionar o problema aqui exposto.
Por fim, acredita-se que a temática seja bastante relevante para ser debatida no meio acadêmico, pois, apesar de polêmica, pouco se discute sobre a teoria do Direito Penal do inimigo e o que ela traz quando implantada no ordenamento jurídico, inclusive entre aqueles que deveriam defender a norma de qualquer tipo de ilegalidade, porque fazer o Direito corretamente também exige conhecer o seu lado nocivo.
2. ARQUITETURA JURÍDICA DO DIREITO PENAL DO INIMIGO
Iniciar uma conjectura para dar vida a qualquer tipo de pensamento sempre estará embasado em diversos cenários que estruturam as situações, momentos ou atitudes que, de alguma maneira, possam vir a influenciar positivamente no ato de sua criação, ao ponto de dar sustentação para que a ideia possa a vir ser concebida, e isso não foi diferente para a teoria do Direito Penal do Inimigo, oriunda do autor alemão Günther Jakobs, mesmo com todo o tom pejorativo carregado pelo termo.
Obter o alcance de como esse movimento originou-se é essencial para fins de embasamento, ter noção do ambiente que motivou o autor a dar esse passo importante, o que ele utilizou para arquitetar juridicamente a sua tese. Sendo assim, no ano de 1985, quando Jakobs apresentou a todos pela primeira vez o que seria a mentalização do seu trabalho, inicialmente, utilizou-se do Código Penal Alemão, vigente à época para exemplificar a existência do que seria batizado pelo próprio como inimigo, conforme descrito a seguir na obra Lições de direito penal do inimigo (POLAINO-ORTS, 2014, pg. 29):
Em concreto, Jakobs constatava a existência de alguns – poucos - exemplos do Código penal alemão que compartilhavam entre si algumas características, mais agravadas, que os diferenciavam do resto de preceitos - muito mais numerosos do mesmo texto penal. O primeiro grupo chamou de Direito penal do inimigo, enquanto para o segundo reservou o termo de Direito penal do cidadão.
Nesse sentido, amparando-se por esse dispositivo jurídico, o autor procurou construir a identidade da sua abstração mental, com base em outros períodos históricos, em que seria possível ter a mesma situação levantada por ele, ou por vezes, ainda muito pior, visto que a utilização de meios como a tortura ou outras penas cruéis eram bem mais comuns. Ademais, cimentou também a sua concepção com ideias de outros pensadores que se associavam a sua opinião a respeito de um tratamento mais rigoroso a certos criminosos.
Além do mais, politicamente falando, ainda se estava vivendo o fim do período da Guerra Fria, o que fazia o mundo se dividir entre capitalistas e socialistas, gerando um ambiente de conflito iminente a todo instante. Ao mesmo tempo, internamente, os Estados Unidos, a maior potência mundial, praticava uma política criminal de repressão, que foi evoluindo até chegar à figura do terrorista, taxado como o novo inimigo a ser perseguido (ZAFFARONI, 2007), como sendo todo aquele que caminhava na contra mão estatal.
Com tudo isso, convivendo dia a dia com a criminalidade exacerbadamente crescente, além de ser bombardeada por uma imprensa baixa, transmissora de más notícias, surge a representação amedrontada da sociedade que, em um ato de total desespero, exige do Estado o desenvolvimento imediato de leis mais severas que, de alguma maneira, possam trazer de volta a sensação de paz.
Dessa forma, pode-se afirmar que todos esses elementos juntos foram alinhados por Günther Jakobs, consequentemente, o autor pôde construir uma estrutura sólida e interligada entre os pontos, para que fosse possível estabelecer sobre a armação a sua fundamentação teórica acerca do conceito do Direito Penal do inimigo, teoria polêmica tão discutida nos últimos tempos, mas de agrado de grande parcela da população.
2.1. CONCEITO E CARACTERÍSTICAS
Primeiramente, adentrar em qualquer tipo de tema exige-se, desde logo, a sua conceituação, bem como a definição das suas características, a fim de direcionar aqueles que, futuramente, busquem entender melhor o assunto. Isso não é diferente com o Direito Penal do Inimigo, principalmente, por tratar-se de um conteúdo ainda não explorado como deveria ser, talvez, por preconceito que traz a forte negatividade do termo inimigo.
Diante disso, traz-se a palavra do jurista e magistrado argentino Eugenio Raúl Zaffaroni para ajudar a conceituar algo tão espinhoso como é a figura do inimigo e, para isso, o autor utiliza-se de outro teórico, de outra época totalmente aquém, que é o alemão Carl Schmitt, o qual alimenta as suas ideias no direito romano para desenvolvê-las. É exatamente isso que se expõe na obra O inimigo no Direito Penal (ZAFFARONI, 2007, pg. 21):
Para este teórico do Estado absoluto, o inimigo não é qualquer sujeito infrator, mas sim o outro, o estrangeiro, e basta, em sua essência, que seja existencialmente, em um sentido particularmente intensivo, de alguma forma outro ou estrangeiro, de modo que, no caso extremo, seja possível ocorrer com ele conflitos que não podem ser decididos nem através de um sistema de normas pré-estabelecidas nem mediante a intervenção de um tertius descomprometido e, por isso, imparcial.
Nota-se que o conceito utilizado dar a entender que é algo típico de um Estado ditatorial, em que a exceção seria a regra, isto é, em que expulsa determinadas pessoas do convívio em sociedade, tratando-as de forma desumana, por presumir que isso traria de volta a paz à coletividade. Todavia, esse pensador ainda se mantém preso à concepção da antiguidade em que o inimigo não seria um ser infrator, mas um simples estrangeiro.
Além disso, percebe-se que tal ideia não é a defendida por esse autor, por entender que a sua aceitação é totalmente incompatível com o Estado de direito, o que traria grandes prejuízos para qualquer sociedade em que fosse aplicada, pois daria margem para a prática de condutas cruéis por parte das autoridades, características durante o Absolutismo. É o que se pode afirmar em outra passagem (ZAFFARONI, 2007, pg. 25) do autor argentino:
O conceito mesmo de inimigo introduz de contrabando a dinâmica da guerra no Estado de direito, como uma exceção à sua regra ou princípio, sabendo ou não sabendo (a intenção pertence ao campo ético) que isso leva necessariamente ao Estado absoluto, porque o único critério objetivo para medir a periculosidade e o dano do infrator só pode ser o da periculosidade e o do dano (real e concreto) de seus próprios atos, isto é, de seus delitos, pelos quais deve ser julgado e, se for o caso, condenado conforme o direito. Na medida em que esse critério objetivo é abandonado, entra-se no campo da subjetividade arbitrária do individualizador do inimigo, que sempre invoca uma necessidade que nunca tem limites, uma Not que não conhece Gebot.
Na tentativa de criar um território propício para estabelecer um conceito para o vocábulo inimigo, trabalhado dentro de uma perspectiva funcionalista do termo, em harmonia com as ideias de seu mentor, o alemão Günther Jakobs, o autor Miguel Polaino-Orts procura descrever, com as suas palavras, na obra Lições de direito penal do inimigo (POLAINO-ORTS, 2012, pg. 60), o que seria de fato a associação correta do adjetivo inimigo, ao mesmo tempo, dizer aquilo que não seria considerado conceito. É o que surge na seguinte passagem:
Para definir a noção funcionalista de inimigo, deve-se dizer também o que não é esse conceito. No sistema funcionalista esse conceito se desvincula plenamente dos antecedentes pseudorreligiosos, políticos, bélicos, etc. do termo “inimigo”. O inimigo não é, pois, o estrangeiro, nem o adversário ou dissidente político nem tem uma conotação bélica ou militar, religiosa ou moral: em duas palavras, a definição do inimigo é uma tarefa exclusiva do Direito, não da Política. Na semântica jakobsiana, dito termo não é, nem sequer, um adjetivo qualificativo, tampouco – muito menos – desqualificativo, mas uma categoria científico-descritiva, como o são outras muitas noções jurídico-penais indiscutíveis 8v. gr., “sujeito – criminalmente – perigoso” ou “inimputável”). Como estas últimas também o termo “inimigo” encontra base na realidade, isto é, não tem qualidade de conceito fundante: quer dizer, não pretende converter, constituir nem configurar ninguém em inimigo; unicamente se trata de uma descrição da realidade, que não implica modificação alguma da regulação material.
Assim, percebe-se que Günther Jakobs não procura vincular o seu pensamento a respeito da palavra inimigo com nenhuma descrição anterior, pois entende que é papel apenas do Direito, e não da Política, fazer isso. Ademais, dentro da sua definição, o termo não se enquadra como um simples adjetivo, mas em uma categoria científico-descritiva, ou seja, busca-se associar o vocábulo inimigo de acordo com a realidade dos fatos que acontecem dentro de uma sociedade, sem qualquer característica de fundar meramente uma nova concepção.
Observa-se que criar e se manter em um conceito estático dentro dessa teoria é algo bastante complexo, inclusive para o próprio precursor do que se entende atualmente sobre o Direito Penal do Inimigo. Inicialmente, no ano de 1985, para ser mais exato, Jakobs entendia que o termo inimigo estava vinculado à ideia de fonte de perigo, criando-se, assim, uma dicotomia dentro da matéria penal. É exatamente isso que o autor Eduardo Saad-Diniz descreve na obra Inimigo e pessoa no direito penal (SAAD-DINIZ, 2012, pg. 107):
Na afamada conferência de maio de 1985 em Frankfurt amMain, GüntherJakobs anuncia o problema do inimigo no debate das ideias penais, assemelhando-se a um direito de emergência contra as “fontes de perigo” ao bem jurídico. Ali surgia a cisão entre um direito penal de proteção do bem jurídico contra o inimigo e um direito penal de proteção da liberdade do cidadão.
Nesse diapasão, dispõe ainda em sua obra (SAAD-DINIZ, 2012, pg. 107-108) que, na trajetória das últimas décadas, Günther Jakobs foi ajustando a maneira de refletir a respeito do tema, de forma que foi relativizando o seu pensamento crítico inicial, em que o Direito Penal do Inimigo só caberia em casos excepcionais, passando a aceitar a legitimação com o intuito de combater os chamados inimigos. Isso é o que se descreve a seguir:
Em momento posterior, nos idos do ano 2000, Jakobs descreve a discussão da despersonificação e reconhece a identidade de uma “não-pessoa”, sobre a qual deveria recair reação penal ostensiva, já sem equivalência funcional ao direito de emergência. Em 2004, incentiva a especialização do direito penal contra inimigos: não se deve reconhecer a qualidade de pessoa (a não-pessoa) que puser em perigo outra pessoa, elaborando diferenciação entre uma personalidade real e um potencial fático de perigo. Em seus estudos mais recentes, 2006 e 2008, Jakobs descreve por definitivo que a reação penal informa combate ao inimigo.
Essa transformação que acontece e que leva a Jakobs a evoluir a sua concepção acerca do vocábulo inimigo dentro da sua própria teoria, ocorre, primeiramente, com o endurecimento das normas penais em face das condutas delitivas, principalmente nos Estados Unidos, com a chamada política criminal Law and Order, que surgiu na década de 1980, cujo objetivo era diminuir a criminalidade nos grandes centros urbanos americanos.
Além disso, o surgimento da figura do terrorista de maneira frequente, em especial, com a queda das torres gêmeas, no ano de 2001, e aos ataques do grupo ETA a Madrid, no ano de 2004, faz com que o autor alemão, partidário do sistema funcionalista ou radical, defenda a manutenção da norma violada pelo autor, ao invés do bem jurídico, por entender que somente assim irá reafirmar o valor da lei perante a sociedade.
Em busca de trazer um conceito que traduza fielmente aquilo que Günther Jakobs quis implantar com o termo inimigo, traz-se novamente a figura do autor espanhol Miguel Polaino-Orts, reconhecido por muitos como um dos discípulos do autor alemão, que após uma análise profunda da teoria do Direito Penal do Inimigo, trouxe na sua já referida obra (POLAINO-ORTS, 2014, pg. 63) o que seria ideia sobre o vocábulo, que diz:
Inimigo é quem, inclusive mantendo intactas suas capacidades intelectiva e volitiva, e dispondo de todas as possibilidades de adequar seu comportamento à norma, decide motu proprio se autoexcluir do sistema, rejeitando as normas dirigidas a pessoas razoáveis e competentes, e se despersonalizando-se a si mesmo mediante a manifestação exterior de uma ameaça em forma de insegurança cognitiva, que – precisamente por colocar em perigo os pilares da estrutura social e o desenvolvimento integral do resto dos cidadãos (pessoas em Direito) – há de ser combatido pelo ordenamento jurídico de forma especialmente drástica, com uma reação assegurativa mais eficaz. Esta situação se circunscreve a garantir e restabelecer o mínimo de respeito para a convivência social e os direitos fundamentais dos cidadãos: o comportamento como pessoa em Direito, o respeito das demais pessoas e – em consequência – a garantia da segurança cognitiva dos cidadãos da norma.
Segundo Miguel Polaino-Orts, o inimigo surge por vontade própria, pois, estando ciente dos seus atos, bem como com toda a disposição de oportunidades possíveis para corrigir a sua conduta, prefere continuar em erro, consequentemente, excluindo-se da sociedade em que vive, com a decorrente perda de personalidade por sua continua manifestação de ameaça à norma, colocando em xeque todos os outros considerados como pessoas de direito. Diante disso, o Estado ver-se na obrigação de combater de maneira eficaz aquele perigo, a fim de garantir que os outros cidadãos continuarão a respeitar a lei.
Após estabelecer o conceito do termo inimigo em consonância com a essência jakobsiana, neste momento, passa-se a pontuar detalhadamente as principais características que determinam o conteúdo da própria teoria do Direito Penal do Inimigo, pois elas reunidas que irão definir a exceção (o não Direito) que se encontra infiltrada dentro das normas legalmente positivadas nos diversos ordenamentos jurídicos existentes.
O autor Manuel Cancio Meliá, que também teve a sua parcela de contribuição na confecção da obra Direito Penal do Inimigo: noções e críticas, descreve que, na visão de Günther Jakobs, existem três características elementares que identificam claramente a teoria aqui debatida, que os Estados modernos têm utilizado no momento de positivar normas penais na busca incessante por combater a figura do inimigo. Assim o escritor mexicano (JAKOBS, 2012, pg. 90) dispõe no livro:
Segundo Jakobs, o Direito Penal do inimigo se caracteriza por três elementos: em primeiro lugar, constata-se um amplo adiantamento da punibilidade, isto é, que neste âmbito, a perspectiva do ordenamento jurídico-penal é prospectiva (ponto de referência: o fato futuro), no lugar de – como é o habitual – retrospectiva (ponto de referência: o fato cometido). Em segundo lugar, as penas previstas são desproporcionalmente altas: especialmente, a antecipação da barreira de punição não é considerada para reduzir, correspondentemente, a pena cominada. Em terceiro lugar, determinadas garantias processuais são relativizadas ou inclusive suprimidas.
A primeira característica faz menção a uma antecipação punitiva do fato delitivo propriamente cometido, isto é, o legislador passar a se preocupar em positivar os atos preparatórios, seja para criar obstáculos para o não cometimento de crimes já existentes na norma, passando-se a punir passos do inter criminis que antes seriam impuníveis, com o intuito de evitar a lesão ao bem jurídico tutelado pelo Estado, seja na criação da figura dos crimes de perigo abstrato, por entender que a sua consumação é muito mais lesiva em comparação a outros delitos, como por exemplo, o crime de terrorismo.
No segundo elemento, a referência é em relação a uma desproporcionalidade na medida da sanção do delito praticado, inclusive o fato de antecipar a punibilidade não é levado em consideração para reduzir o tempo de pena em abstrato de forma correspondente à ação criminalizada, indicando claramente um flagrante meio de intimidação em face daquele que põe em risco a sociedade, no caso, o inimigo.
Por fim, o terceiro atributo trata de relativizar ou até mesmo suprimir determinadas garantias processuais do indivíduo que é reconhecido como risco iminente para a coletividade, por entender que se deva extirpar o inimigo do convívio social, pois, do contrário, a pena não alcançará a sua eficiência máxima, desacreditando totalmente em uma possível ressocialização do autor do fato.
Cabe ressaltar que vários autores descrevem outras inúmeras características ou acrescentam àquelas que Jakobs há descrito como as elementares de sua teoria, assim como há outras concepções para o vocábulo inimigo, como em qualquer debate teórico, no entanto, buscou-se fazer a análise apenas do âmago das ideias de seu mentor, até porque isso não é objetivo principal deste trabalho.
2. 2. ORIGEM
Trata-se de uma teoria que ganhou notoriedade a partir do ano de 1985, por meio do jurista e professor alemão Günther Jakobs, quando este começou a defender a ideia de existência de dois tipos de Direito Penal, sendo que um seria direcionado para o Cidadão, como mera forma de manutenção da norma, e outro para o Inimigo, um risco que deve ser extirpado do meio social, ainda que possa vir a ferir o próprio Direito.
Segundo esse autor (JAKOBS, 2012), o primeiro termo faz alusão àquele que mesmo violando a norma penal, deve continuar a manter o seu status de cidadão e ter uma nova oportunidade de retornar ao convívio em sociedade. Enquanto que o segundo ponto trata daquele tipo de indivíduo que, por seu comportamento perigoso, acaba por desmerecer certas garantias processuais fundamentais, para que possa ser devolvida a sensação de segurança cognitiva à coletividade.
Continuando em uma linha mais contemporânea, cujo objetivo é demonstrar mais claramente como será essa distinção dentro da esfera penal, passa-se a citar outro autor, que é considerado um grande discípulo de Günther Jakobs, Miguel Poliano-Orts desenvolve, em grande parte de seus pensamentos, similitudes com o conceito trazido pelo autor alemão, em que reflete especificamente na figura da pena uma manifesta demonstração do tratamento que será ofertado para o cidadão e para o inimigo. É isso o que se observa na obra Lições de direito penal do inimigo (POLAINO-ORTS, 2014, pg. 15-16):
A pena é encarada não apenas como acontecimento sensivelmente perceptível, mas também, e talvez principalmente, como dotada de um significado: comunica que a norma continua a ser determinante apesar do comportamento criminoso que colocou em cheque sua capacidade de servir como modelo institucionalizado de orientação social. Tal raciocínio é compatível com o direito penal do cidadão, “tipo ideal” em que o autor do delito é tido como pessoa racional que, de um modo geral, observa seus deveres para com o coletivo, sendo seu delito um deslize pontual. Logo, este “cidadão”, “pessoa-em-direito”, é considerado capaz de figurar como receptor da comunicação sancionatória; e a esta modalidade de direito penal cumpre um papel de otimização da proteção das esferas de liberdade. Lógica bastante diversa é a do direito penal do inimigo. Direcionando-se àqueles indivíduos que, em virtude de seus comportamentos especialmente perigosos, não prestam suficiente segurança cognitiva à sociedade, este segundo “tipo ideal” não vislumbra seus destinatários como “cidadãos”, “pessoas-em-direito”, mas sim focos de perigo (“inimigos do bem jurídico”) a serem neutralizados por meio de uma coação penal que, nestes termos, perde seu caráter comunicativo.
Percebe-se pelo que foi descrito acima que a pena é vista como um meio de comunicação para o infrator tido como cidadão, informando-o da continuação da validade da norma que foi infringida por este, através de uma punição privativa de sua liberdade. Diferentemente disso, ela deixa de repassar o seu caráter comunicativo no momento em que é direcionada para aquele sujeito que for considerado um inimigo, pois busca neutralizar não uma pessoa, um ser de direitos e garantias, mas um foco de perigo, o qual não deveria receber outra resposta que não fosse uma simples coação penal pelos seus crimes.
No entanto, na parte em que expõe que não há essa comunicação do teor da pena para o inimigo, por tratar-se de seres perigosos, o autor espanhol diverge de seu mestre, pois, para ele, continua-se a manter o seu caráter informativo, porém, ao invés de informar que houve uma simples violação, deseja-se dizer que há um endurecimento da mensagem, com o objetivo de retirar e manter o risco longe da sociedade. É justamente o que se descreve em seguida na referida obra (POLAINO-ORTS,2014, pg. 16):
Miguel Polaino-Orts, neste ponto divergindo de seu mestre Jakobs, ressalva que, mesmo neste distinto universo punitivo, a pena continua a veicular uma comunicação estabilizadora de expectativas, diante tanto do inimigo (“pessoa em potencial”) como também da sociedade (transmitindo às “pessoas-em-direito” que a norma continua vigente). A diferença é que, no direito penal do inimigo, a reação penal é fortificada para se tornar “especialmente asseguradora”.
Apesar do contexto relativamente recente a respeito do surgimento dessa teoria, inclusive destrinchando a divisão da matéria penal em duas formas que se associam a um período mais moderno, com Estados democráticos de Direito que trabalham de acordo com a legitimidade das normas, e ainda exemplificando isso por meio da atuação da pena em ambos os casos, na verdade, o conteúdo que embasa a tese de Günther Jakobs encontra origem em pensadores filosóficos como Rousseau, Fichte, Hobbes e Kant.
Em relação aos dois primeiros, aquele que afronta a lei, deve ser tratado desde já como um inimigo, como um ser irrecuperável para conviver em sociedade, não havendo qualquer distinção ante a gravidade dos delitos provocados, se foi praticado de maneira intencional ou involuntária. É o que descreve o mentor em sua obra Direito Penal do Inimigo – Noções e Críticas (JAKOBS, 2012, pg. 24-25):
São especialmente aqueles autores que fundamentam o Estado de modo estrito, mediante um contrato, entendem o delito no sentido de que o delinquente infringe o contrato, de maneira que já não participa dos benefícios deste: a partir desse momento, já não vive com os demais dentro de uma relação jurídica. Em correspondência com isso, afirma Rousseau que qualquer <<malfeitor>> que ataque o <<direito social>> deixe de ser <<membro>> do Estado, posto que se encontra em guerra com este, como demonstra a pena pronunciada contra o malfeitor. A consequência diz assim: <<ao culpado se lhe faz morrer mais como inimigo que como cidadão>>. De modo similar, argumenta Fichte: <<quem abandona o contrato cidadão em um ponto em que no contrato se contava com sua prudência, seja de modo voluntário ou por imprevisão, em sentido estrito perde todos os seus direitos como cidadão e como ser humano, e passa a um estado de ausência completa de direitos>>.
Ainda que a teoria busque fazer uma distinção entre cidadão e inimigo dentro da normativa jurídica penal, Günther Jakobs não é partidário de uma exclusão sem precedentes de qualquer indivíduo que pratique um fato descrito como crime, como defendido radicalmente por Rousseau e Fichte. Dessa forma, o autor continua a dizer em seu livro (JAKOBS, 2012, pg. 25-26):
Não quero seguir a concepção de Rousseau e de Fichte, pois na separação radical entre o cidadão e seu Direito, por um lado, e o injusto do inimigo, por outro, é demasiadamente abstrata. Em princípio, um ordenamento jurídico deve manter dentro do Direito também o criminoso, e isso por uma dupla razão: por um lado, o delinqüente tem direito a voltar a ajustar-se com a sociedade, e para isso deve manter seu status de pessoa, de cidadão, em todo caso: sua situação dentro do Direito. Por outro, o delinquente tem o dever de proceder à reparação e também os deveres têm como pressuposto a existência de personalidade, dito de outro modo, o delinquente não pode despedir-se arbitrariamente da sociedade através de seu ato.
Portanto, nota-se que o próprio criador da teoria não é totalmente autoexcludente daquele que se enquadraria no perfil de inimigo, pelo contrário, ele acredita que o infrator deve sofrer todas as sanções em sintonia com a gravidade dos seus atos e, ao mesmo tempo, ter a oportunidade de poder regressar ao convívio social. Para isso acontecer, antes deveria reparar o dano causado, demonstrando, assim, que não há uma extirpação pelo próprio crime cometido, como defendido por Rousseau e Fichte.
Outro nome que surge com grande influência é do contratualista inglês Thomas Hobbes, que também trabalha com a figura da eliminação do ser reconhecido como inimigo, no entanto, diferentemente dos outros pensadores, somente deve ser tratado de tal forma aquele que causar um delito de alta traição contra o Estado soberano. Em sua obra (JAKOBS, 2012, pg. 26), Hobbes é descrito da seguinte maneira:
Hobbes tinha consciência desta situação. Nominalmente, é (também) um teórico do contrato social, mas materialmente é, preferentemente, um filósofo das instituições. Seu contrato de submissão – junto a qual aparece, em igualdade de direito (!), a submissão por meio da violência – não se deve entender tanto como um contrato, mas como uma metáfora de que os (futuros) cidadãos não perturbem o Estado em seu processo de auto-organização. De maneira plenamente coerente com isso, Hobbes, em princípio, mantém o delinquente, em sua função de cidadão: o cidadão não pode eliminar, por si mesmo, seu status. Entretanto, a situação é distinta quando se trata de uma rebelião, isto é, de alta traição: <<Pois a natureza deste crime está na rescisão da submissão, o que significa uma recaída no estado de natureza... E aqueles que incorrem em tal delito não são castigados como súditos, mas como inimigos>>.
Há ainda a contribuição filosófica de Kant no embasamento teórico da tese de Günther Jakobs, em que trabalha como uma forma de contratualismo que traça o que seria uma evolução do mundo natural para o social, regrando e limitando o poder do Estado, a fim de evitar arbitrariedades contra aqueles que se submetem as suas normas, no entanto, cede liberdade para qualquer indivíduo obrigar outro que se nega a participar da vida em sociedade. Assim o autor (JAKOBS, 2012, pg. 26-27) retrata a figura de Kant:
Para Rousseau e Fichte, todo delinquente é, de per si, um inimigo; para Hobbes, ao menos o réu de alta traição assim o é. Kant, que fez uso do modelo contratual como ideia reguladora na fundamentação e na limitação do poder do Estado, situa o problema na passagem do estado de natureza (fictício) ao estado estatal. Na construção de Kant, toda pessoa está autorizada a obrigar qualquer outra pessoa a entrar em uma constituição cidadã.
Observa-se que o ideal contratualista de Kant permitia a qualquer sujeito integrado ao seu modelo padrão de sociedade a obrigar literalmente aqueles que não estivessem submetidos às regras do Estado, ao ponto de expulsar quem se negasse a entrar, caso não se retirasse, deixando de tratá-los como seres de direito, consequentemente, passando a considerá-los como inimigos. Desta forma, cita-se mais a respeito da figura desse inimigo (JAKOBS, 2012, pg. 27):
Consequentemente, quem não participa na vida em um <<estado comunitário-legal>> deve retirar-se, o que significa que é expelido (ou impelido à custódia de segurança); em todo caso, não que ser tratado como pessoa, mas pode ser <<tratado>>, como anota expressamente Kant, <<como um inimigo>>.
Assim sendo, ainda que os seus pensamentos se configurem de modos diferentes, todos chegam a um ponto em comum: o inimigo. Desta forma, percebe-se que a teoria analisada em questão possui raízes muito mais antigas do que se pudesse imaginar. Ademais, todo o esboço filosófico de Günther Jakobs é muito mais extenso que esses poucos autores, que delineiam para outras perspectivas, no entanto, o que quis se mostrar é que não se trata de um tema estritamente contemporâneo exclusivo do seu precursor.
2.3. ATUAL SISTEMA PENAL DO INIMIGO JUNTO AO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
É paradoxo pensar que uma tese tão agressiva quanto à teoria do Direito penal do inimigo exista, muito menos sobreviva dentro do ordenamento jurídico brasileiro, haja vista a tendência atual de defesa dos direitos humanos, todavia, paralelamente a isso, há aqueles membros da sociedade que defendam o contrário, ou seja, a aplicação dela, e é justamente essa parte que, por ser maioria, faz valer a sua vontade, permitindo a disseminação massiva de diversas normas contaminadas por excessiva rigidez, inclusive nos dias atuais.
Partindo-se do momento logo após o nascimento da Constituição Federal de 1988 para utilizar como parâmetro de análise, visto que o ciclo antecessor foi o período da ditadura militar no país (1964-1985), um intervalo de tempo em que muitos direitos fundamentais foram violados, inclusive existindo sequelas até o momento atual, podendo-se levantar a afirmação que o grande marco normativo contemporâneo com traços da tese do alemão Günther Jakobs foi implantado por meio da lei n° 8.072/90, denominada Lei de Crimes Hediondos.
A referida norma supracitada criou um rol de crimes considerados repugnantes pela sociedade, algo que não existia até então, fruto de um clamor público cada vez mais frequente em face da violência desenfreada, principalmente, nos grandes centros urbanos, e ao longo de sua existência, essa lei foi passando por múltiplas mudanças, na maioria delas, com o acréscimo de outros tipos penais como hediondos.
Da mesma forma, outro dispositivo que pode ser reconhecido como jakobsiano é a lei n° 9.614/98, popularmente chamada como a Lei do Abate, que alterou o Código Brasileiro de Aeronáutica, autorizando a derrubada de aeronaves que fossem consideradas perigosas pelas autoridades, que pudessem ferir de alguma forma a soberania nacional. Cabe ressaltar que o protocolo de atuação só foi regulamentado em 2004 para ser realizado em locais desabitados, posteriormente, em 2014, modificou-se para ser praticado também em lugares habitados, podendo, assim, atingir pessoas completamente inocentes.
Ao longo desses anos, o legislador brasileiro deu origem a outras leis de cunho penal com teor de enfrentamento ao chamado inimigo de Jakobs, consequência de uma política criminal totalmente repressiva, preocupada somente em punir o agente infrator, sem qualquer tipo de caráter ressocializador, que se intensificou na virada do século XXI, como um possível efeito indireto da perseguição ao terrorismo iniciada pelos Estados Unidos, no entanto, aqui, isso se voltou para as organizações criminosas, popularmente conhecidas como facções, que já estavam assombrando a coletividade.
À vista disso, seguindo essa tendência de alimentar uma sociedade cada vez mais faminta por justiça, primeiramente, o Estado brasileiro criou a lei n° 10.826/03, o famoso Estatuto do Desarmamento, acreditando que iria diminuir o problema do grande número de homicídios com a proibição do comércio de armas. Um ponto interessante de salientar a respeito é que o porte de arma deixou de ser uma simples contravenção penal para tornar-se um crime bem mais grave, inclusive passando a ser equiparado a hediondo.
No mesmo roteiro, algum tempo depois surgiu a tendenciosa lei n° 11.343/06 (Lei de Drogas), que apesar de deixar de tratar a figura do usuário como um criminoso, haja vista que absteve de puni-lo com penas privativas de liberdade, passando a tratá-lo como um ser doente, inclusive com maior receptividade a modelos de tratamento de saúde, no geral, o dispositivo absorveu o continuísmo da política de repressão às drogas da norma antecedente, isto é, mantendo ou até mesmo piorando a punibilidade.
Hodiernamente, pode-se afirmar que a introdução mais recente surgiu por meio da polêmica lei n° 13.964/19 (Lei do Pacote Anticrime), que trouxe mudanças rígidas em diversas leis penais, como por exemplo, no Direito Penal, Processo Penal e na Lei de Execução Penal (LEP), já que esse dispositivo aumentou o tempo máximo da pena de reclusão, que passou de 30 para 40 anos, ampliou o rol dos crimes hediondos, apenas para citar algumas alterações.
Cabe salientar mais uma vez que há outras inúmeras leis que carregam a essência da teoria defendida por Günther Jakobs, seja antes ou depois da CF/88, e que tratar sobre todas iria prolongar muito, ficando por concentrar-se numa mera citação dessas normas, o que não é o objetivo a ser dito, apenas buscou-se exemplificar com algumas delas, a fim de demonstrar a existência de tal perversidade jurídica penal, bem como a desvairada evolução permanente que parece que não terá fim tão cedo. Portanto, o atual panorama demonstra que o Direito Penal do inimigo continuará a ser um grande parceiro do legislador brasileiro.
2.4. MOVIMENTO MODERNO PUNITIVISTA
Em geral, o significado do verbo punir associa-se a um castigo cruel, muito rígido, desumano, que deve ser ofertado em face de uma pessoa que praticou um erro grave, e traçando um paralelo para o contexto jurídico penal, um movimento dito como punitivista incorpora esse simples sentido do vocábulo (punir), mas que sai do campo puramente semântico e procura trabalhar efetivamente no combate à criminalidade, em que se busca a sentença máxima como objetivo primordial.
Acontece que, nos últimos tempos, muito em virtude da globalização da comunicação em massa, a política criminal desenvolveu-se amplamente e deu cabo ao surgimento de três grandes movimentos: o punitivismo, o abolicionismo e minimismo penal. De todos eles, somente o punitivismo exerceu o pensamento de tratar o infrator da norma como um ser que não deveria pertencer à sociedade, indo fortemente de encontro ao ideal processado por Günther Jakobs.
Para que fique mais claro esse embate de correntes, cabe destacar que o abolicionismo entendia que a norma penal não era utilizada de forma igual, trazendo prejuízos para as classes mais desfavorecidas, algo que não acontecia entre os mais ricos, logo, defendia a extinção de todos os sistemas penais, por entender que trazia sofrimento apenas para aqueles que não tinham condições financeiras.
Já o minimismo se parecia em parte com o objetivo buscado pelo abolicionismo, pois entendia que a repressão provocada pelo Direito Penal gerava mais violência, no entanto, de forma aparentemente legal, só que não defendia a extinção dos sistemas como o movimento anterior, por entender ser importante o Estado ainda manter um mínimo para repreender os transgressores da norma, mas adstrito para os casos considerados mais graves.
Em contraponto aos movimentos supracitados, o punitivismo teve um maior número de adeptos, e aí está a principal diferença, visto que era o único que trazia em sua essência a continuidade de um modelo mais repressivo, em razão do grande crescimento da violência nas grandes cidades. Essa modalidade de pensamento foi ganhando forma nos Estados Unidos a partir da década de 1970, por meio do programa Movimento Lei e Ordem, mas que teve um grande impulso após a queda das torres em gêmeas, em 2001. É isso o que descrito na sua obra O inimigo no Direito Penal (ZAFFARONI, 2007, pg. 65):
No 11 de setembro de 2001, esse sistema penal encontrou um inimigo de certa substância no chamado terrorismo. Ao mesmo tempo, tomou emprestada a prevenção do discurso penal legitimante e pretendeu apresentar a guerra contra o Iraque como preventiva. Como nunca antes, fica evidente a identidade do poder bélico com o poder punitivo na busca desesperada do inimigo.
Cabe reforçar que ocorreram diversos outros momentos violentos (globais ou regionais) que marcaram a sociedade de uma forma geral, em que a dimensão se tornou muito maior por conta da ampla divulgação que a mídia passou a transmitir, gerando um clima de total instabilidade na contenção da violência, criando um campo fértil para a exigência de normas cada vez mais rígidas, porém, sem sombra de dúvidas, o que ocorreu no dia 11 de setembro de 2001 foi um marco para o punitivismo moderno.
Ademais de reforçar a ideia de que a imprensa fortalece a ascensão desse movimento mais repressivo, sem qualquer objetivo de informar o que se passa de fato, com caráter puro e exclusivo de criar pânico nas pessoas, descreve ainda em sua obra (ZAFFARONI, 2007, pg. 69) que essa corrente é um novo tipo de autoritarismo, totalmente aquém do modelo antigo, o qual ele intitula de autoritarismo cool.
Este novo autoritarismo, que nada tem a ver com o velho ou o de entresguerras, se propaga a partir de um aparato publicitário que se move por si mesmo, que ganhou autonomia e se tornou autista, impondo uma propaganda puramente emocional que proíbe denunciar e que, ademais – e fundamentalmente –, só pode ser caracterizado pela expressão que esses mesmos meios difundem e que indica, entre os mais jovens, o superficial, o que está na moda e se usa displicentemente: é cool. É cool porque não é assumido como uma convicção profunda, mas sim como uma moda, à qual é preciso aderir para não ser estigmatizado como antiquado ou fora de lugar e para não perder espaço publicitário.
Trazendo isso mais para o cotidiano brasileiro, é abismal a quantidade de programas policiais que bombardeia a televisão das pessoas, além dos próprios telejornais tradicionais que têm a violência como um de seus carros-chefes principais dos noticiários, implantando a máxima que o certo é punir com mais rigor e a qualquer preço, exigindo, assim, a criação de novos tipos penais, com penas exacerbadamente altas, sem mencionar outras formas de diminuir o problema, muito menos de tentar ressocializar aqueles que acabam virando vítimas de um sistema penitenciário ineficaz.
Além disso, esse panorama serve mesmo é de plataforma para muitos apresentadores crescerem profissionalmente, bem como para os políticos que desejam passar uma mensagem de salvador da pátria, que acabam alçando, assim, algum cargo eletivo, enquanto que a população, na maioria das vezes, deixando-se levar pela emoção e acreditando em uma suposta mensagem de apoio aos seus problemas, acaba dando o seu aval para qualquer mudança na norma que tenha um caráter mais punitivo.
Isso fica fácil de demonstrar quando se busca na história exemplos reais que aconteceram no processo de criação de dispositivos essencialmente repressivos, com o objetivo de dar uma resposta rápida a uma sociedade carente por justiça, como no caso da lei 8.072/90, que trata dos crimes hediondos, que surgiu após a grande repercussão popular que se deu com o sequestro do empresário Abílio Diniz, em 1989. Ainda na referida lei, houve a inclusão poucos anos depois do homicídio qualificado no rol de crimes hediondos, que foi fruto da morte da atriz Daniela Perez, em 1992, que seguiu a um processo similar ao caso citado anteriormente.
Continuando ainda no mesmo discurso, o autor argentino descreve em sua obra (ZAFFARONI, 2007, pg. 70) que, no contexto da América Latina, e isso também inclui o próprio Brasil, os sistemas penais se caracterizam fortemente pela utilização de medidas cautelares, como a prisão preventiva, utilizando-se disso como ferramenta usual para manifestar o controle sobre aqueles que transgridem as normas e põem em risco a coletividade. É isso que se pode compreender da seguinte passagem:
A característica mais destacada do poder punitivo latino-americano atual em relação ao aprisionamento é que a grande maioria – aproximadamente ¾ - dos presos está submetida a medidas de contenção, porque são processados não condenados. Do ponto de vista formal, isso constitui uma inversão do sistema penal, porém, segundo a realidade percebida e descrita pela criminologia, trata-se de um poder punitivo que há décadas preferiu operar mediante a prisão preventiva ou por medida de contenção provisória transformada definitivamente em prática. Falando mais claramente: quase todo o poder punitivo latino-americano é exercido sob a forma de medidas, ou seja, tudo se converteu em privação de liberdade sem sentença firme, apenas por presunção de periculosidade.
Para uma simples análise da situação carcerária das prisões brasileiras, não se necessita estar de posse de dados concretos para ter-se a certeza que a manutenção de presos provisórios é uma realidade nua e crua do Brasil, tanto é verdade que, com a implantação da lei 13.964/19 (Pacote Anticrime), o juiz passou a ter a obrigação de revisar a prisão preventiva a cada 90 dias, algo que não acontecia anteriormente, o que ocasionava de muitos detentos passarem bastante tempo encarcerados sem nenhum tipo de pena em abstrato.
Portanto, pode-se afirmar que o movimento punitivista moderno é o mesmo que foi intitulado por Zaffaroni como o autoritarismo cool, o qual teve início nos Estados Unidos e que, posteriormente, teve a ideia seguida por vários países, inclusive pelo Brasil, ainda que o padrão sul-americano seja considerado precário pelo mesmo autor (ZAFFARONI, 2007), pois se preocupou apenas em marginalizar o infrator.
Além disso, esse modelo fincou-se e se desenvolveu amplamente dentro do ordenamento jurídico brasileiro, estando presente em diversas normas pátrias, pois tem um apoio massivo da mídia, que se utilizando da emoção, consegue persuadir a sociedade que se encontra refém da violência, que entende que o melhor é simplesmente punir com mais rigidez, mesmo que isso também possa interferir em sua liberdade.
2.5. DIREITO PENAL DO INIMIGO: EXISTE AFRONTA AO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Apesar de parecer um questionamento aparentemente fácil de ser respondido, visto que a própria Carta Magna de 1988 é reconhecida como sendo a Constituição Cidadã, na prática, isso não é bem assim, pois, como já descrito anteriormente, o ordenamento jurídico penal brasileiro, seja no próprio Código Penal/Processual Penal ou em diversas leis extravagantes, possui vários traços característicos da teoria do Direito Penal do inimigo.
Inicialmente, cabe ressaltar que tal pensamento de tratar o infrator de maneira mais rígida a ponto de reconhecê-lo como um inimigo, inclusive atacando diretamente direitos e garantias fundamentais, ofende um dos princípios mais importantes (se não for o maior), que é o da Dignidade da Pessoa Humana, o qual se encontra logo como um dos fundamentos que deve reger a República Federativa do Brasil, conforme o art. 1º, inc. III, da CF/88, que assim dispõe:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
III – a dignidade da pessoa humana;
Além disso, ainda no bojo da CF/88, especificamente em seu artigo 5º, considerado um dos mais importantes, pois nele estão dispostos os direitos e garantias fundamentais do cidadão, que imbuído fortemente pelo Princípio da Igualdade, busca proteger a todos de qualquer tipo de inviolabilidade, até mesmo aqueles que estão em confronto com a lei. Ademais, em afronta à Carta Magna, esse princípio não aceita que a norma seja utilizada para ganhar vantagens ou para castigar as pessoas (MELLO, 2000), consequentemente, fica nítida a ofensa que o tratamento do infrator como inimigo traria ao ser aceito pelo ordenamento jurídico brasileiro.
No entanto, tal divergência acontece porque o crescimento massivo da criminalidade, unido a uma excessiva lentidão processual, com a consequente impunidade dos infratores na maioria dos casos, faz surgir defensores ferrenhos da tese de Günther Jakobs, os quais aceitam relativizar garantias processuais, ainda que a norma principal defenda o contrário e que isso possa trazer prejuízos irreparáveis, a fim de punir com mais rigor aqueles que violam a lei, acreditando que outros não irão cometer os mesmos erros, o que na prática não acontece de fato.
Por outro lado, existem os garantistas da norma constitucional, cuja lei maior surgiu após um período pós-ditadura, momento este que tolheu, por bastante tempo, direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, o que refletiu no instante da sua criação, em que só de pensar em permitir a introdução do Direito Penal do Inimigo no ordenamento jurídico brasileiro, ainda que de maneira residual, traz na memória a possibilidade de um retorno a uma similar fase sombria. Isso faz com que esse pensamento continue a ser o majoritário, impedindo que o tratamento como inimigo seja aceito, ainda que de maneira vaga.
Justamente por tratar-se de uma norma criada em um Estado Democrático de Direito, em que a defesa dos direitos fundamentais foi uma pauta fortemente levantada em sua origem e que continua a ser cobrada sempre que sofre com alguma ilegalidade, cujas leis infraconstitucionais também devem segui-la, inclusive a penal, essa discrepância não deveria haver porque põe em risco o próprio Estado. É exatamente isso o que está descrito na obra O inimigo no Direito Penal (ZAFFARONI, 2007, pg. 172):
A função do direito penal de todo Estado de direito (da doutrina penal como programadora de um exercício racional do poder jurídico) deve ser a redução e a contenção do poder punitivo dentro dos limites menos irracionais possíveis. Se o direito penal não consegue que o poder jurídico assuma esta função, lamentavelmente terá fracassado e com ele o Estado de direito perecerá. Nesse sentido, o direito penal é um apêndice indispensável do direito constitucional do Estado de direito, o qual se encontra sempre em tensão dialética com o Estado de polícia.
De acordo com esse autor (ZAFFARONI, 2007), a norma penal tem a função de controlar a utilização do poder punitivo de forma ilimitada dentro de um Estado Democrático de Direito. Para alcançar tal objetivo, o ente político tem que respeitar os preceitos fundamentais da ordem constitucional, pois o Direito Penal carrega a essência vital da norma mãe, no entanto, se tal fato não acontece, ele correrá o risco de desaparecer, visto que abrirá espaço para o cometimento de arbitrariedades frente a todos, não apenas para os criminosos.
Apesar de ser flagrante a ilegalidade que essa tese carrega quando utilizada em uma sociedade democrática, o que se ver atualmente é o surgimento cada vez mais frequente de inúmeras normas com vestígios do pensamento de Günther Jakobs, bem como a sua aceitação de forma aparentemente legal, visto que o forte apelo punitivo reclamado pelo povo tornou-se algo como sanção a qualquer preço, não à toa que o Poder Legislativo acaba criando leis com pouquíssima ou nenhuma discussão, com o objetivo de apenas dar uma resposta rápida e não ser acusado de omissão, porém, ao mesmo tempo, fruto dessa produção legislativa desordenada, muito são os casos de pedido de reconhecimento de inconstitucionalidade que, na maioria, saem vencedores.
Portanto, a inclusão do Direito Penal do Inimigo no ordenamento penal brasileiro ofende veementemente a Constituição Federal, pois mesmo que o infrator deva ser castigado duramente por qualquer crime que tenha praticado, ele não deixa de ter os seus direitos e garantias assegurados. Do mesmo modo, não se deve nem aceitar parcialmente a introdução dessa teoria, pois isso seria a porta de entrada para um processo de crescimento para tornar qualquer risco em inimigo da sociedade.