INTRODUÇÃO
A temática da destinação de valores provenientes da tutela de direitos transindividuais há muito acende discussões doutrinárias e divergências jurisprudenciais.
Na Argentina, defendia Jorge Mario Galdós que a reparação material e moral coletiva, quando em dinheiro, fosse destinada a Fundos Públicos ou de Garantias ou de Afetação específica2. No mesmo sentido, para Gabriel Stiglitz e Augusto M. Morello, o destino de toda ou parte da condenação deveria se ligar com o matiz do social, sendo efetuadas a um fundo de recuperação, reconversão ou eliminação das causas do dano coletivo3.
No Brasil, a Lei 7.347/85 orientou-se no sentido de reverter as indenizações pelo dano causado a um fundo específico. Nesse sentido, dispõe, no caput de seu art.13, ipsis verbis:
Havendo condenação em dinheiro, a indenização pelo dano causado reverterá a um fundo gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e representantes da comunidade, sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens lesados.
A Lei 9008/95, ao regulamentar o Conselho Gestor do Fundo de Defesa de Direitos Difusos, versou de forma mais específica sobre a destinação dos recursos do referido Fundo, ao dispor que:
Os recursos arrecadados pelo FDD serão aplicados na recuperação de bens, na promoção de eventos educativos, científicos e na edição de material informativo especificamente relacionados com a natureza da infração ou do dano causado, bem como na modernização administrativa dos órgãos públicos responsáveis pela execução das políticas relativas às áreas mencionadas no § 1º deste artigo4.
Sobre o Fundo de Defesa de Direitos Difusos, sublinha José dos Santos Carvalho Filho:
Necessário se faria, em consequência, que o legislador previsse o destino da indenização em dinheiro a que fosse condenado o réu na ação. Como não poderia ela destinar-se aos grupos que sofreram os danos, foi concebida a instituição de um fundo, sob controle do Estado, o qual, para não perder a conexão com os tipos de interesses protegidos, seria destinado à reconstituição de bens lesados.5
Explica, ainda, Xisto Tiago de Medeiros Neto:
(…) a parcela em dinheiro decorrente de condenação judicial nas ações coletivas não visa a reconstituir um específico bem material que seja passível de quantificação em valor exato, mas sim, a estabelecer, de um lado, sancionamento à parte ofensora, e ensejar, de outro, uma destinação apta a propiciar a reversão da parcela pecuniária em proveito da coletividade, aspecto que equivaleria a uma reparação traduzida como uma espécie de compensação indireta6.
Na seara dos interesses coletivos relativos à criança e ao adolescente, tem-se destinado o valor da condenação ao Fundo para a Infância e Adolescência (FIA), em conformidade com o que prevê o art. 214 da Lei 8.069/907.
Registra Maria Celina Bodin de Moraes que a solução de destinar esses valores a fundos benemerentes, conquanto seja defensável, ainda precisa de maior desenvolvimento no nosso país8.
Recentemente, em ação civil pública ajuizada pelo MPF, veio à tona a existência de contingenciamento ilegal e aplicação indevida das verbas vinculadas ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos (FDD) na conta única do tesouro com a finalidade de apresentar à sociedade superávit de contas públicas infladas pelos valores contingenciados do fundo.
1. DESTINAÇÃO DE VALORES PROVENIENTES DA TUTELA DE DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS TRABALHISTAS
No âmbito da Justiça do Trabalho, na falta de fundo próprio e específico, as indenizações por ofensa a interesse difuso e coletivo, ainda que relacionadas ao prejuízo moral, foram, gradativamente, sendo revertidas ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), criado pela Lei 7.998/909 com a finalidade de custear o Programa de Seguro-Desemprego, o pagamento do abono salarial e o financiamento de programas de educação profissional e tecnológica e de desenvolvimento econômico.
Entretanto, a verificação concreta de descompasso dos objetivos precípuos do FAT com a finalidade imposta pela disposição legalitária do art. 13 da Lei 7.347/85, tangencialmente à necessidade inarredável de recomposição dos bens lesados, fez emergirem contundentes e embasadas críticas doutrinárias à irrefletida reversão de valores ao FAT.
Em tal sentido escreve, com percuciência, Xisto Tiago de Medeiros Neto10:
A restrição levantada encontra respaldo em dois pontos fundamentais: o primeiro, está em que na gestão do FAT não há a participação do Ministério Público do Trabalho, aspecto que contraria a exigência estampada no artigo 13 da Lei nº 7.347/85; o segundo, decorre do evidente distanciamento das finalidades legais básicas deste Fundo (custeio do seguro-desemprego, pagamento do abono salarial e financiamento de programas de desenvolvimento econômico) do objetivo específico de se promover a recomposição ou reconstituição de direitos ou interesses transindividuais trabalhistas violados, requisito que também está previsto na mencionada norma legal.
No mesmo sentido, convém trazer a lume os escólios de Rodrigo Carelli11:
dentre as funções do FAT por lei impostas não está nenhuma que possa reconstituir os bens lesados protegidos pela atuação do Ministério Público do Trabalho. (…) O seguro-desemprego tem como destinatários, por óbvio, desempregados, além de remunerar contratos suspensos para requalificação profissional. O abono salarial, por sua vez, é uma quantia de auxílio ou incremento da renda do trabalhador, pago anualmente àqueles que percebem até dois salários mínimos. Já os programas de desenvolvimento econômico podem, indiretamente, gerar empregos, mas a qualidades destes, ou o respeito às leis trabalhistas não são protegidos, exigidos ou fiscalizados pelo fundo, nem mesmo é exigida essa contrapartida. A regra, então, é que os benefícios das verbas arrecadadas pelo FAT vão para os desempregados, e não para os empregados. Visa a criação de renda para os desempregados ou a geração de atividade econômica que possa, em tese, criar empregos. Parece algo óbvio, mas que não acontece, é que os financiamentos realizados pelo BNDES –Banco Nacional de Desenvolvimento, a partir de verbas do Fundo de Amparo ao Trabalhador, deveriam ter como exigência de contrapartida o respeito aos direitos dos trabalhadores. O que se vê, em verdade, são altos empréstimos a grandes empresas, sem nenhuma exigência de respeito aos direitos trabalhistas e geração mínima de postos de trabalho dignos.
Igualmente pertinentes são as lições de Marcelo Freire Sampaio Costa para quem “o FAT não se enquadra nas exigências do citado art. 13 do diploma de regência da ação civil pública, porquanto não é gerido por Conselho Federal ou Estadual, nem muito menos tem participação dos Ministérios Públicos em sua gestão”12.
Assim, em decorrência da flagrante inaptidão do FAT e de outros fundos correlatos para cumprir o desiderato de reconstituição dos bens lesados, tem-se, paulatinamente, construído soluções mais adequadas a assegurar que os valores em dinheiro advenientes de condenação em ação civil pública sejam revertidos “em benefício efetivo da própria coletividade atingida pela lesão ou em prol da comunidade na qual se encontra inserida, na área territorial onde ocorreu a violação”13.
por força da aplicação dos princípios fundamentais da adequação e efetividade da tutela jurisdicional e da reparação ampla e integral dos danos individuais ou transindividuais, além do inegável reconhecimento dos amplos poderes do juiz na condução e solução eficaz do processo coletivo, exige-se, sob a égide do novo arcabouço constitucional, uma interpretação com ele coerente e conforme, a possibilitar decidir o órgão judicial (a pedido da parte autora ou de ofício) pela destinação das parcelas pecuniárias da condenação em dano moral coletivo ou em multa, para o atendimento de finalidades específicas, estabelecidas no caso concreto, e não o encaminhamento exclusivo desses valores para um fundo genérico, opção que, reconhece-se, afasta-se do desiderato da recomposição do interesse coletivo, sob a forma de uma compensação direta ou indireta para a coletividade14.
Pode-se, assim, exigir que o ofensor realize o ressarcimento na forma específica, ao promover ou financiar campanha publicitária ou educativa; efetuar obra específica; adquirir e entregar bens a determinadas entidades públicas ou privadas; executar certo projeto de cunho social, dentre outras possibilidades15.
Portanto, em vez de simplesmente aparelhar o FAT, é possível proceder ao direcionamento social da indenização pelos danos causados a direitos metaindividuais “que terá o condão de alcançar, com maior eficácia, a conexão (nexo temático) entre a destinação da condenação pecuniária com o interesse coletivo lesado”16.
Esse ressarcimento na forma específica, em vista da situação concreta, pode ser exemplificado com a determinação, na decisão condenatória, de cursos voltados à formação de dirigentes visando à adoção de práticas empresariais voltadas à prevenção do assédio moral organizacional em ação coletiva em que restou reconhecida tal prática, ou a condenação para a realização de cursos técnicos voltados a incrementar a formação da classe trabalhadora, em vista de acidente fatal ocorrido justamente por falta de instrução técnica de empregado17.
Nesse sentido, foi aprovado o Enunciado 12 da 1ª Jornada e Direito Material e Processual do Trabalho:
AÇÕES CIVIS PÚBLICAS. TRABALHO ESCRAVO. REVERSÃO DA CONDENAÇÃO ÀS COMUNIDADES LESADAS. Ações civis públicas em que se discute o tema do trabalho escravo. Existência de espaço para que o magistrado reverta os montantes condenatórios às comunidades diretamente lesadas, por via de benfeitorias sociais tais como a construção de escolas, postos de saúde e áreas de lazer. Prática que não malfere o artigo 13 da Lei 7.347/82, que deve ser interpretado à luz dos princípios constitucionais fundamentais, de modo a viabilizar a promoção de políticas públicas de inclusão dos que estão à margem, que sejam capazes de romper o ciclo vicioso de alienação e opressão que conduz o trabalhador brasileiro a conviver com a mácula do labor degradante. Possibilidade de edificação de uma Justiça do Trabalho ainda mais democrática e despida de dogmas, na qual a responsabilidade para a construção da sociedade livre, justa e solidária delineada na Constituição seja um compromisso palpável e inarredável.
Sob os influxos das construções doutrinárias e jurisprudenciais que reclamavam o direcionamento dos montantes pecuniários impostos como indenização por danos causados a direitos metaindividuais para a finalidade específica de reconstituição dos bens lesados, o legislador ordinário inseriu o § 2º ao art. 13 da Lei 7347/85, o qual se orienta no sentido de que condenações e acordos se tornem o mais próximo possível da reconstrução do bem lesado, via tutela ressarcitória na forma específica18.
Conforme os escopos buscados, a condenação pode recair sobre a pessoa do lesante, além ou em vez de recair sobre o seu patrimônio. Nesses casos, impõe-se ao ofensor, por exemplo, medidas que se traduzem em obrigação de fazer, com a adoção de determinado comportamento ou prática de certa conduta que possam satisfazer os interesses do lesado e, também, servir como fator de desestímulo para a prática de novas condutas. Dessa forma, “em razão dos objetivos visados pelo autor e à luz das circunstâncias, pode o juiz fazer incidir o ônus da condenação sobre o patrimônio do lesante, sua pessoa ou ambos”19.
2. DESTINAÇÕES SOCIAIS (OU “ALTERNATIVAS) PROMOVIDAS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO
A prática do direcionamento social dos montantes a título de indenização pelos danos causados à coletividade tem ocorrido nos termos de ajustamento de conduta firmados no âmbito do Ministério Público do Trabalho, bem como nos acordos homologados em sede de ação civil pública20.
Invocam-se, para tanto, o art. 5º da Resolução 179/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP21) e a Resolução 179/2020 do Conselho Superior do Ministério Público do Trabalho (CSMPT)22. Registre-se que, no âmbito da ADC n. 12 e ADI n. 3.367, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a competência normativa do Conselho Nacional de Justiça, podendo-se sustentar a aplicação da mesma lógica ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).
No contexto da pandemia ocasionada pelo novo coronavírus (SARS-COV-2), foi emitida a recomendação Conjunta PRESI-CN n. 3/2021 do CNMP que instou, respeitada a independência funcional, os membros do Ministério Público brasileiro a articularem a apresentação de projetos de destinação emergencial de recursos aos Fundos de Direitos Difusos para ações de enfrentamento à pandemia do Coronavírus-19, tal qual a transferências para fundos de saúde (art. 1º).
Ao defender o direcionamento social dos recursos oriundos de atuação finalística do MPT, o atual Procurador Geral do Trabalho, José de Lima Ramos Pereira, invoca a doutrina francesa denominada cy-près:
“Em francês, cy-prés nos remete à expressão ‘o mais próximo possível’. Sua aplicabilidade é verificada de modo originário nos países que adotaram o sistema de commom law, nas hipóteses de doação ou de testamento em que a autoridade judicial atua para dar ao capital afetado a destinação que melhor atenda aos anseios originais do titular do direito transmitido. Trata-se de uma doutrina destinada à realização de atos de caridade, ou seja, trusts de caridade.
Sua gênese não corresponde à criação de um mecanismo apto a reger a destinação de verbas pecuniárias decorrentes da atuação em sede de conflito judicial, mas no decorrer dos anos, tornou-se uma alternativa para que as condenações e acordos em class actions – sistema norte-americano – tornassem mais próximos do objetivo almejado: a reconstrução do bem lesado, mediante a recomposição dos prejuízos, via tutela específica, seja pela via direta; seja pela via indireta, o que é mais comumente verificado no âmbito das ações coletivas.
(...)
O estudo da doutrina cy-prés leva-nos a concluir que o ordenamento jurídico pátrio internalizou seus fundamentos, de modo a incorporar a teoria “do mais próximo possível”, em cumprimento ao mandamento de se buscar a recomposição dos prejuízos sofridos pelas vítimas dos direitos violados. É o que se busca pela atuação do MPT, quando da reversão dos recursos oriundos de sua atuação: quando possível, além de recompor os bens lesados, tende a promover a melhoria da situação da sociedade antes de lesada pela conduta ilícita processada, julgada e reparada”23.
Dentre as destinações alternativas promovidas pelo MPT pode-se mencionar, exemplificativamente: a) o aparelhamento e a modernização administrativa de instituições públicas (PF, PRF, Polícia Militar, Bombeiros, CEREST’s, Fiscalização do Trabalho etc.); b) a construção de escolas, hospitais e postos de saúde; c) doações a entidades públicas ou privadas sem fins lucrativos.
Em tais destinações, o MPT, além de priorizar a reversão para pessoas e localidades diretamente impactadas pelo dano, tem se empenhado em buscar correlação entre a destinação e a matéria que ensejou a atuação da instituição, ou, em não sendo possível tal correlação específica, o (a) membro (a) oficiante tem se esforçado por garantir a pertinência da destinação com as metas institucionais prioritárias do Ministério Público do Trabalho.
O direcionamento social, promovido pelo MPT, dos recursos oriundos de multas decorrentes do descumprimento de termos de ajustamento de conduta (TAC) e de indenizações trabalhistas provenientes de ações e acordos judiciais, tem, contudo, enfrentado resistências.
Em 2018, o Tribunal de Contas da União (TCU) emitiu parecer, no processo n.º TC 007.597/2018-5, no qual manifestou posicionamento contrário à reversão de valores ao Centro de Reabilitação e Assistência em Saúde do Trabalhador do Município de Campina Grande/PB, ao tempo em que deixou assentado o entendimento de que todo e qualquer recurso decorrente da atuação finalística do MPT, judicial ou extrajudicial, deve ser destinado ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD).
Em 2019, a MP 905, felizmente não convertida em lei, dispôs, em seu art. 21, serem receitas vinculadas ao Programa de Habilitação e Reabilitação Física e Profissional, Prevenção e Redução de Acidentes de Trabalho o produto da arrecadação, dentre outros, de valores relativos a: multas ou penalidades aplicadas em ações civis públicas trabalhistas decorrentes de descumprimento de acordo judicial ou termo de ajustamento de conduta firmado perante o Ministério Público do Trabalho; danos morais coletivos decorrentes de acordos judiciais ou de termo de ajustamento de conduta firmado pelo Ministério Público do Trabalho.
Em fevereiro de 2020, a AGU emitiu o Parecer n.º 110/2019/DECOR/CGU/AGU, no qual veiculou entendimento no sentido de que, na seara trabalhista, os valores destinados à indenização de direitos difusos ou coletivos em sentido estrito, bem como as multas eventualmente pagas por força de descumprimento dos TACs, deverão ser direcionados ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD) ou ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Na ocasião, proibiu, expressamente, o recebimento de destinações pelo Ministério do Trabalho. A Presidência da República conferiu efeito vinculante ao referido parecer no âmbito da administração pública federal24.
Em 2021, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, deferiu medida cautelar nas ADPFs 568 e 569 para determinar que cabe à União a destinação de valores decorrentes de condenações criminais, colaborações premiadas ou outros acordos, desde que não haja vinculação legal expressa. A cautelar igualmente veda que os montantes sejam distribuídos de maneira vinculada, estabelecida ou determinada pelo Ministério Público, por termos de acordo firmado entre o MP e o pagador ou por determinação do órgão jurisdicional em que tramitam esses procedimentos25.
Em fevereiro de 2022, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) ajuizou a ADPF 944, em desfavor de "decisões judiciais proferidas no âmbito da Justiça do Trabalho, em ações civis públicas, nas quais, ao invés de haver ordem de reversão dos valores das condenações a um Fundo gerido por um Conselho Federal, nos termos do art. 13 da Lei 7.347/1985, outras destinações vêm sendo dadas".
Em contundente crítica à ADPF 944, pontua a Procuradora do Trabalho Ana Cláudia Nascimento Gomes:
A jurisdição constitucional não deve comportar tutela de situações jurídicas individuais e concretas, como decorrem, por exemplo, daquelas decisões citadas pela CNI na ADPF 944/DF, em tese, passiveis de impugnações/recursos próprios no âmbito da Justiça do Trabalho, inclusive com a garantia do devido processo legal e do contraditório aos autores das ações coletivas (MPT ou sindicatos profissionais) e com respeito aos beneficiários de boa-fé das reversões sociais (aliás, o próprio SESI/SENAI já fora beneficiário em reversões do MPT5). Por reforço de razão, em consequência, também não é cabível ADPF para desconstituição de coisa julgada formal e material, como estão acobertados por essa garantia constitucional acordos homologados pela Justiça do Trabalho ou decisões irrecorríveis dela, cuja desconstituição existe ação própria (rescisória), em prazos e em condições bastante limitados, sempre assegurados o contraditório e ampla defesa das respectivas partes do processo originário26.
Atento a essa onda refratária às destinações sociais, o MPT tem reforçado a autonomia institucional e a independência funcional, que respaldam a instituição e o (a) membro (a) oficiante a conferir destinação alternativa quando esta for a melhor solução para a tutela resolutiva do interesse público primário. Nesse sentido, orienta-se a Nota Técnica 02/2022 do MPT, emitida pelo Grupo de Trabalho (GT) Reversões, o qual monitora os movimentos políticos que têm por escopo mitigar a atuação do parquet trabalhista, provocando, assim, atalhamento constitucional das funções ministeriais.
Ressalve-se, contudo, que qualquer caso de reversão de bens ou recursos decorrentes da atuação finalística do Ministério Público do Trabalho pressupõe, em regra, decisão fundamentada e indicação expressa da pertinência do ato com os objetivos e metas institucionais; da existência de mecanismos efetivos de fiscalização do atendimento da finalidade social da reversão; da regularidade do beneficiário quanto às obrigações inerentes ao Regime do FGTS e a inexistência de débitos previdenciários e judiciais trabalhistas, ressalvadas algumas hipóteses excepcionais (art. 9º da Resolução 179/2020 do CSMPT)27.
3. JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO
O entendimento prevalecente adotado pela jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, à luz do artigo 13 da Lei 7.347/85 e da Lei 7.998/90, é no sentido de que os valores decorrentes de astreintes ou indenizações a título de danos morais coletivos devem ser revertidos ao Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT:
"(...) B) RECURSO ORDINÁRIO DO SINDICATO DAS EMPRESAS DE TRANSPORTE DE PASSAGEIROS DO ESTADO DO AMAZONAS - SINETRAM. PROCESSO SOB A ÉGIDE DA LEI 13.467/2017. DISSÍDIO COLETIVO DE GREVE. DESTINAÇÃO DA MULTA APLICADA POR DESCUMPRIMENTO DE DECISÃO LIMINAR EM CONTEXTO DE GREVE. Embora o art. 537, § 2º, do CPC determine que o valor da multa fixada para cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer seja destinado ao demandante - no caso dos autos, o Sindicato da categoria econômica -, nas ações coletivas, existe o entendimento de que as multas sejam direcionadas à reconstituição dos bens coletivos lesados, conforme ocorre nas ações civis públicas. Como se sabe, as ações coletivas recebem específico tratamento do sistema jurídico brasileiro, pelas distintas regras em diplomas normativos que constituem o denominado, pela doutrina, ‘microssistema da tutela coletiva’. Tais regras são produto da adequação que o Direito precisou fazer para enfrentar os problemas e pretensões de caráter coletivo, inerentes à sociedade de massas, e são efetivamente aplicáveis ao processo coletivo do trabalho, por integração jurídica (art. 8º, caput, e 769 da CLT). A propósito, a Lei de Ação Civil Pública (Lei 7.347/85) dispõe, em seu art. 13, que, ‘havendo condenação em dinheiro, a indenização pelo dano causado reverterá a um fundo gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e representantes da comunidade, sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens lesados’. No caso concreto , é manifesto o caráter coletivo da tutela deferida pelo TRT, que, no contexto de uma greve realizada no transporte coletivo urbano na cidade de Manaus/AM, buscou resguardar o interesse da população em geral, qual seja, o funcionamento do serviço em patamar razoavelmente aceitável, considerando o direito de greve contraposto e a natureza essencial da atividade (art. 10 da Lei 7.783/89). Por outro lado, o envolvimento de interesses individuais das Empresas que exploram a atividade econômica, representadas pelo Sindicato patronal, não retira a preponderância da natureza coletiva da multa cominatória, que foi fixada em prol dos interesses da comunidade (art. 11 da Lei 7.783/89). A esse respeito, a compreensão da SDC/TST, no julgamento do RO-1001190-38.2019.5.02.0000 (DEJT 05/08/2021), ocasião na qual se decidiu, por maioria de votos, que não cabe ao Poder Judiciário eleger a instituição beneficiada pelo montante arrecado a título de multa por descumprimento de decisão liminar em contexto de greve, sendo que a reversão do valor ao Fundo de Amparo ao Trabalhador atenderia ao critério objetivo da Lei da Ação Civil Pública (art. 13). Em conformidade com essa linha de entendimento, não logra êxito, no caso concreto, a pretensão do Sindicato patronal de ser beneficiado pelo valor arrecadado. Tampouco pode prevalecer a decisão do Tribunal Regional, que destinou o montante arrecadado para entidades sem fins lucrativos a serem designadas em momento posterior. Pelo exposto, dá-se provimento parcial ao recurso ordinário para determinar a reversão do valor da multa ao Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT." (ROT-203-04.2018.5.11.0000, Seção Especializada em Dissídios Coletivos, Relator Ministro Mauricio Godinho Delgado, DEJT 03/02/2022).
(...) 2. DANOS MORAIS COLETIVOS. INDENIZAÇÃO. DESTINAÇÃO. FUNDO DE AMPARO AO TRABALHADOR (FAT). Nos termos do artigo 13 da Lei nº 7.347/85, a jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de que as indenizações a título de danos morais coletivos devem ser revertidas ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Precedentes. Recurso de revista não conhecido.‖ (ARR - 646- 12.2014.5.09.0594, Relatora Ministra: Dora Maria da Costa, Data de Julgamento: 18/10/2017, 8ª Turma, Data de Publicação: DEJT 20/10/2017.)
(...) ASTREINTES - INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS COLETIVOS - CUMULAÇÃO - VALIDADE - DESTINAÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL COLETIVO AO FUNDO DE AMPARO AO TRABALHADOR (FAT) 1. Nos termos do art. 3º da Lei nº 7.347/85, a Ação Civil Pública pode ter por objeto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer‘. Em que pese o texto da norma legal utilize a conjunção ‗ou‘, é certo que a expressão deve ser interpretada em sentido aditivo. Julgados do Eg. Superior Tribunal de Justiça. 2. Assim, é lícita, no procedimento de Ação Civil Pública, a cumulação da condenação à reparação de dano moral coletivo com obrigação de fazer ou não fazer mediante imposição de multa diária (astreintes). 3. Quanto à destinação do quantum indenizatório, a jurisprudência desta Eg. Corte, com fundamento no artigo 13 da Lei nº 7.347/85, estabeleceu-se no sentido de que as indenizações a título de dano moral coletivo podem ser revertidas ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Agravo de Instrumento a que se nega provimento.‖ (AIRR - 129800-58.2006.5.02.0077, Relatora Ministra: Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, Data de Julgamento: 04/10/2017, 8ª Turma, Data de Publicação: DEJT 06/10/2017.)
DESTINAÇÃO DO QUANTUM INDENIZATÓRIO (arguição de violação do artigo 13 da Lei nº 7.347/85 e divergência jurisprudencial). A jurisprudência desta Corte, à luz do artigo 13 da Lei nº 7.347/85 e da Lei nº 7.998/90, é a de que os valores decorrentes de indenizações a título de danos morais coletivos devem ser revertidos ao Fundo de Amparo ao Trabalhador- FAT. Precedentes, inclusive da 3ª Turma. Recurso de revista conhecido por violação do art. 13 da Lei 7347/85 e provido. (...).‖ (RR - 1053-77.2010.5.03.0027, Relator Ministro: Alexandre de Souza Agra Belmonte, Data de Julgamento: 15/02/2017, 3ª Turma, Data de Publicação: DEJT 17/02/2017.)
INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS COLETIVOS. DESTINAÇÃO AO FUNDO DE AMPARO AO TRABALHADOR - FAT. JUROS DE MORA E CORREÇÃO MONETÁRIA. 1. No tocante à destinação da indenização por danos morais coletivos ao Fundo de Amparo ao Trabalhador - FAT, a decisão do Tribunal Regional encontra-se de acordo com a jurisprudência assente no âmbito desta Corte Superior (Precedentes). Assim, inviável a admissibilidade da revista (Súmula 333/TST). 2. Quanto aos juros de mora e correção monetária, cumpre assinalar que, tratando-se de matéria disciplinada pela legislação infraconstitucional, inviável a admissibilidade da revista por violação do artigo 5º, II, da Constituição Federal. Com efeito, eventual afronta ao referido dispositivo apenas ocorreria de forma indireta (Súmula 636/STF), não atendendo, pois, ao disposto no artigo 896, c, da CLT. No tocante aos juros de mora, destaca-se ainda que, conforme bem observado pelo Regional, a tese da Recorrente da respectiva incidência ‗apenas a partir do trânsito em julgado encontra óbice no artigo 39, §1°, da lei 8.177/91 (...).‘ Não há falar, portanto, na violação desse dispositivo de lei. Recurso de revista não conhecido.‖ (RR-89900-34.2007.5.03.0068, Relator Ministro Douglas Alencar Rodrigues, 7a Turma, DEJT 18/8/2017.)
PRELIMINAR DE NULIDADE DO ACÓRDÃO REGIONAL POR NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL (...) OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER - RESPONSABILIDADE POR ATO DE TERCEIRO NÃO CARACTERIZADA - DESTINAÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL COLETIVO AO FUNDO DE AMPARO AO TRABALHADOR (FAT) 1. Não procede a alegação de que a Ré foi condenada a indenizar ato por culpa exclusiva de terceiro, na medida em que a condenação imposta teve por fundamento lista suja, elaborada pela Ré, contendo nomes de trabalhadores que não poderiam ser admitidos por empreiteiras por ela contratadas. Assim, ainda que a decisão de admitir os trabalhadores fosse das empreiteiras, a ação é fundada no fato de que a Ré elaborou a lista negra, não sendo possível afirmar que há condenação por ato praticado por terceiro. 2. Quanto à destinação do quantum indenizatório, a jurisprudência desta Eg. Corte, com fundamento no artigo 13 da Lei nº 7.347/85, estabeleceu-se no sentido de que as indenizações a título de dano moral coletivo podem ser revertidas ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). (...) Recurso de Revista parcialmente conhecido e provido.(RR-115100- 03.2004.5.01.0004, Relatora Ministra: Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, Data de Julgamento: 24/02/2016, 8ª Turma, Data de Publicação: DEJT 11/03/2016.)
RECURSO DE REVISTA. DANO MORAL COLETIVO. DESTINAÇÃO DA INDENIZAÇÃO DEFERIDA. FUNDO DE AMPARO AO TRABALHADOR - FAT. ARTIGO 13 DA LEI N.º 7.347/85. Cinge-se a controvérsia a saber a quem deve ser revertida a indenização deferida em ação de indenização por dano moral coletivo. Na diretriz do art. 13 da Lei n.º 7.347/85, a indenização para a coletividade de trabalhadores a título de compensação pelos danos sofridos deve ser revertida ao Fundo de Amparo do Trabalhador - FAT para o custeio de programas assistenciais. Desse modo, a indenização por dano moral coletivo não pode ser revertida aos membros da categoria profissional do Sindicato autor, mormente diante do fato de que a condenação a dano moral coletivo não é voltada diretamente à pessoa do trabalhador lesado, ou ao seu representante, já que suas consequências extrapolam a esfera individual dos envolvidos e repercutem nos interesses extrapatrimoniais da coletividade. Recurso de Revista conhecido e provido. (...) Recurso de Revista conhecido em parte e provido.‖ (RR-1854-32.2010.5.03.0111, 4ª Turma, Relatora Ministra Maria de Assis Calsing, DEJT 26/6/2015.)
Malgrado seja esse o entendimento majoritário, no âmbito do TST, há julgados, aqui e ali, referendando a destinação social do montante, em vez do puro e simples aparelhamento do FAT:
Conhecido por violação ao artigo 5º, V e X, da CF, dou provimento ao recurso de revista para restabelecer a sentença que condenou a reclamada ao pagamento de indenização a título de danos morais coletivos no valor de R$ 800.000,00 (oitocentos mil reais), a ser destinado a entidades filantrópicas, assistenciais regulares e sem fins lucrativos situados no Estado do Rio Grande do Sul (local de ocorrência dos danos). (TST – 2a Turma – Processo n.o RR-542-39.2013.5.04.0741 – Rel. Min. Maria Helena Mallmann – Julgado em 06/06/2018)
RECURSO DE REVISTA - CONTRATO DE APRENDIZAGEM - COTAS - DANOS IMATERIAIS COLETIVOS . Nos termos do art. 429 da CLT, as empresas devem reservar percentuais mínimos para os trabalhadores aprendizes, de forma a, cumprindo sua função social, assegurar experiência profissional mínima indispensável para o ingresso no mercado de trabalho, assegurando dignidade humana e igualdade de oportunidades aos trabalhadores, princípios inscritos no texto constitucional (arts. 1º, III e IV, 3º, IV, 5º, caput, 7º, XXX e XXXIII, e 170, III, e 173, I). 2. O desrespeito a norma de tal natureza, que reserva cotas aos aprendizes, alcança potencialmente todos aqueles trabalhadores sem experiência profissional situados na mesma localidade do estabelecimento comercial, que poderiam ser contratados pela ré, o que, por si só, demonstra o caráter lesivo e reprovável da conduta empresarial. 3. No caso, é impossível afastar da conduta da ré o caráter ofensivo e intolerável, que atinge potencialmente todos aqueles trabalhadores sem experiência profissional situados na mesma localidade da empresa, que poderiam ser contratados pela ré. 4. Por conseguinte, a reclamada deve ser condenada ao pagamento de indenização por danos imateriais coletivos. Precedentes desta Corte Superior. Decide a 2ª Turma, por unanimidade, conhecer do recurso de revista por divergência jurisprudencial e, no mérito, dar-lhe provimento para condenar a Reclamada ao pagamento da indenização por danos imateriais coletivos no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), a serem revertidos ao fundo de direitos difusos ou às instituições e projetos ligados à seara laboral que atuem na garantia de emprego aos aprendizes, a ser definido na fase de liquidação, observada a região geográfica onde se situa a empresa ré, à critério de indicação do Ministério Público do Trabalho com o acompanhamento da própria Justiça do Trabalho em relação à aplicação do valor deferido. Custas pela ré acrescidas no importe de R$ 200,00 (duzentos reais)." (RR-654-23.2017.5.09.0096, 2ª Turma, Relatora Desembargadora Convocada Margareth Rodrigues Costa, DEJT 10/06/2022).
CONCLUSÕES
Entende-se que a destinação de valores provenientes da tutela de direitos transindividuais, não obstante ainda alvo de controvérsias e resistências doutrinárias e jurisprudenciais, deve priorizar a reconstituição específica do bem lesado e aproximar-se da ideia de tutela ressarcitória na forma específica.
Trata-se de conclusão que decorre da interpretação literal do art. 13 da Lei 7.347/85, bem como das Resoluções 179/2017 do CNMP e 179/2020 do CSMPT, defensável, portanto, de lege lata e não meramente de lege ferenda. Nesse sentido, as destinações sociais (ou “alternativas”), caso atendem à finalidade de reconstituição específica do bem lesado, são plenamente cabíveis e estão expressamente amparadas no ordenamento pátrio.