Medidas legais e ações institucionais que contribuem para a erradicação do trabalho escravo contemporâneo

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18/04/2023 às 12:32
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RESUMO

O presente artigo visa contextualizar ações institucionais e medidas legais cabíveis a fim de combater o trabalho escravo contemporâneo no Brasil, entre elas, a existência da “Lista Suja” de empregadores autuados por trabalho análogo ao de escravo, a edição da Lei nº 14.946 de 2013, do Estado de São Paulo, e a atuação do Ministério do Trabalho e Previdência Social (MTP) e de outras entidades.

Palavras-chave: trabalho escravo contemporâneo; lista suja; atuação interinstitucional; Lei 14.946/13 de SP.

1. Introdução

O trabalho escravo contemporâneo tem sido combatido com a utilização, pelo poder público, de diversos meios coercitivos, junto, também, a importante atuação do Ministério do Trabalho e Previdência Social. Igualmente, novas leis estaduais estão sendo editadas, tendo como objetivo a erradicação desse mal. Dessa forma, algumas dessas medidas e desses meios serão analisados e estudados no decorrer deste artigo.

2. “Lista Suja”

A “Lista Suja” é uma Portaria do Ministério do Trabalho e Previdência Social (MTP) composta pelo nome de empregadores que forem autuados, pela Auditoria Fiscal do Trabalho, por estarem utilizando-se de mão de obra em condições análogas à de escravo. Sua criação adveio da Portaria nº 1.234/2003, do MTE, atualmente substituída pela Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 4 de 11/05/2016.

O nome do empregador, pessoa física ou jurídica, é incluído nesse rol da seguinte forma, como prevê o art. 2º, da Portaria Interministerial nº 4 de 11/05/2016, in verbis:

Art. 2º O Cadastro de Empregadores será divulgado no sítio eletrônico oficial do Ministério do Trabalho e Previdência Social (MTPS), contendo a relação de pessoas físicas ou jurídicas autuadas em ação fiscal que tenha identificado trabalhadores submetidos à condições análogas à de escravo.

§ 1º A inclusão do empregador somente ocorrerá após a prolação de decisão administrativa irrecorrível de procedência do auto de infração lavrado na ação fiscal em razão da constatação de exploração de trabalho em condições análogas à de escravo.

§ 2º Será assegurado ao administrado, no processo administrativo do auto de infração, o exercício do contraditório e da ampla defesa a respeito da conclusão da Inspeção do Trabalho de constatação de trabalho em condições análogas à de escravo, na forma dos art. 629 a 638 do Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 (Consolidação das Leis do Trabalho) e da Portaria MTPS nº 854, de 25 de junho de 2015.

§ 3º A organização e divulgação do Cadastro ficará a cargo da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE), inserida no âmbito da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), do Ministério do Trabalho e Previdência Social.

§ 4º A relação a ser publicada conterá o nome do empregador, seu número de inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ) ou no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF), o ano da fiscalização em que ocorreram as autuações, o número de pessoas encontradas em condição análoga à de escravo, e a data decisão definitiva prolatada no processo administrativo do auto de infração lavrado.

Esta listagem é atualizada semestralmente pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social e, conforme o site deste Ministério1, sua última modificação deu-se em 05 de abril de 2023. Nela foram adicionados os nomes de 132 novos empregadores, em contrapartida com a exclusão de 17 empregadores, uma vez que cumpriram todos os requisitos exigidos para sua retirada da lista.

2.1. Consequências práticas da inclusão do nome na “Lista Suja”

Esse cadastramento de empregadores realizado pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social coaduna perfeitamente com o princípio da publicidade, expresso no art. 37, caput, da Constituição Federal de 1988. Isso porque a população e os órgãos públicos podem inteirar-se sobre quem comete esse tipo de ilegalidade.

Outro efeito prático que a lista traz para a sociedade é a não aceitação por parte dos próprios consumidores em adquirir produtos que tiveram, no decorrer de sua cadeia produtiva, a utilização de mão de obra em condições análogas à de escravo. A consciência social dos cidadãos de bem fará com que todos busquem optar por produtos que não sejam "sujos" pelo uso do trabalho escravo. Essa ação realizada pelo MTP pode até mesmo afetar as relações comerciais externas, pois existem muitas empresas estrangeiras sérias que não realizam parcerias econômicas com companhias que cometem esse ilícito contra o trabalhador (PINTO, 2008).

Para os órgãos públicos, as consequências advêm da perda de acesso a recursos financeiros provenientes de instituições estatais, além da supressão de benefícios fiscais, prejuízos para a participação em licitações, entre outras perdas. Exemplo disso é a Portaria nº 1.150/2003, elaborada pelo Ministro da Integração Nacional, que prevê o envio semestral da lista elaborada pelo Ministério do Trabalho e Previdência para os bancos administradores dos Fundos Constitucionais de Financiamento, que possuem a recomendação de negarem a concessão de créditos, sob a supervisão do Ministério da Integração Nacional, para todos aqueles que façam parte do Cadastro de Empregadores que utilizem trabalho em condições análogas à de escravo.

A Federação Brasileira de Bancos2 (FEBRABAN), que é a organização central representativa do setor bancário brasileiro, possui orientação para que bancos privados não concedam créditos àqueles que desrespeitarem os direitos trabalhistas e, consequentemente, forem autuados pelas autoridades fiscais do trabalho.3 Existem até mesmo supermercados que são contrários à aquisição de mercadorias provenientes de produtores rurais infratores dessa norma. 4

Outro importante ente que objetiva a erradicação do trabalho escravo é o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social5. Ele tem como proposta a veiculação desse Cadastro de Empregadores, juntamente em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a ONG Repórter Brasil, formulando um pacto para a erradicação do trabalho escravo contemporâneo.

A Justiça do Trabalho, por ser, após as modificações trazidas com a Emenda Constitucional nº 45/2004, a competente por julgar as solicitações judiciais dos empregadores para a retirada de seus nomes do cadastro, tem um papel primordial na análise do caso em espécie, pois deve primar pela rejeição de manobras processuais que anseiam apenas o desencaminhamento da aplicação efetiva da Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 4 de 11/05/2016. Sobre isso, Paulo Luiz Schmitd afirmou (2005, p. 307):

[...] ao trazer para a Justiça do Trabalho as demandas decorrentes das mais variadas e diferentes relações de trabalho, não está alterando apenas o lugar e o juiz perante o qual apresentará a sua reclamação. Está alterando, isso sim, a forma de enfrentar o problema da desproteção social em muitos aspectos.

Dessa forma, pode-se concluir que as previsões contidas na Portaria nº 04/2016 não tem vinculação direta com as limitações financeiras ocasionadas por ela, pois tais restrições são fruto do anseio cada vez maior da sociedade e do Poder Público de alcançar a total erradicação do trabalho escravo moderno. Alcançando esse difícil objetivo, chega-se ao que Melina Silva Pinto arrematou (2008, p. 1112):

Assim ocorrendo, faz-se letra viva da Constituição da República, cujo art. 1º, III, eleva à condição de fundamento do Estado Democrático de Direito à dignidade da pessoa humana, e o art. 3º, I, define como objetivo fundamental do país a construção de uma sociedade mais justa, livre e solidária.

2.2. Análise dos argumentos contrários a “Lista Suja”

As Portarias responsáveis pela criação da “Lista Suja”, ao longo dos anos, vêm sofrendo críticas por parte de uma parte da sociedade, principalmente pelos grandes empresários. Baseiam seus critérios em princípios como da reserva legal e da legalidade, de direito de propriedade, da presunção de inocência, do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório (PINTO, 2008).

O direito de propriedade é um direito fundamental do cidadão garantido pelo art. 5º, XXII, da Constituição Federal de 1988. A afronta indicada pelos críticos ao cadastramento, quanto a esse ponto, refere-se à limitação que a lista ocasiona ao restringir o acesso de produtores rurais ao financiamento público da atividade produtiva privada.

Tal argumento não procede, tendo em vista a necessidade de a propriedade cumprir sua função social, como estabelece o art. 5º, XXIII, da CRFB. Ela compreende o alcance do bem social, que é alferido quando é cumprida a utilidade e necessidade social do bem, junto ao equilíbrio de interesses. A propriedade privada é considerada como um princípio da ordem econômica, indicando que é permitido a apropriação privada dos meios de produção, já que o Brasil é um Estado capitalista (PAULO, 2008). No entanto, o art. 170, III, da CRFB dispõe que a função social da propriedade é também um dos princípios da ordem econômica, reforçando a tese de que ela é necessária na garantia da existência digna de todos e da concretização da justiça social (SILVA, 2009).

Dessa forma, juntamente com os direitos assegurados aos proprietários sob suas posses, o ordenamento jurídico firmou deveres essencialmente sintetizáveis como o modo de uso adequado da propriedade. Por esse motivo é que existe previsão legal, no art. 184, da CRFB, para a União realizar a desapropriação de propriedades que não cumprem tal dever. Assim, quando os donos das terras não utilizam em seus domínios mão de obra com as garantias mínimas exigidas pelas normas jurídicas, essas áreas não estarão cumprindo a sua função social, como prevê o art. 186, III, da CRFB, cabendo suas desapropriações.

Diante disso, João Humberto Cesário (2011, p. 147) traz uma crítica sobre o tema:

Ora, se em última instância é legítimo à União, nos termos do §2º do art. 184 da CRFB, editar um decreto declarando o imóvel como de interesse social, para fins de instauração do procedimento de desapropriação, por certo será muito mais lícito que, por via dos Ministérios competentes, publique portarias que visem coibir a existência da repugnante prática da servidão contemporânea, com expressa vedação ao financiamento público da atividade incapaz de cumprir sua função.

Outro argumento utilizado por aqueles que são contra esse Cadastro de Empregadores é sobre a legalidade das Portarias nº 04/2016, nº 1.234/2003 e nº 1.150/2003 que amparam a “Lista Suja”. Eles questionam a competência administrativa dos Ministros para edição de alguns atos administrativos, como essas portarias, por exemplo. Aduzem que a criação desse cadastro foi amparada apenas por simples Portarias, sem a existência de lei que a resguardasse. Comparam essa situação ao cadastro de inadimplentes (CADIN), que teve a necessidade de uma lei para sua elaboração, fazendo-se necessário, por isso, a existência de lei anterior para também tornar legal a “Lista Suja”.

Contrapondo esse argumento utilizado, os defensores do Cadastro entendem que é totalmente plausível que a União, através dos Ministros de Estado, busque critérios administrativos para selecionar a realização de investimentos apenas naqueles empreendimentos que são sérios e lícitos, ao invés de valorizarem aqueles que objetivam apenas o lucro desmedido, transpondo os limites da lei (CESÁRIO, 2011).

O Ministério do Trabalho e Previdência tem como função resguardar a execução pelas empresas da legislação de proteção aos direitos trabalhistas, tendo com um de seus objetivos específicos a erradicação do trabalho escravo e degradante, através de atuações de fiscalização coordenadas pela Secretaria de Inspeção do Trabalho, órgão do ministério6. Por isso, em 2003, objetivando alcançar esses objetivos narrados anteriormente, o Governo Federal lançou o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo7, o qual possui 76 medidas para extinguir esse mal. Exemplo dessa disposições são as ditas “cláusulas impeditivas para a obtenção e manutenção de crédito rual quando comprovada a existência de trabalho escravo ou degradante”8 (CESÁRIO, 2011).

Sabe-se, também, que o Ministro do Trabalho e Previdência Social dispõe de competência administrativa para a elaboração de atos administrativos essenciais ao cumprimento dos objetivos que o próprio Ministério possui, como no caso em espécie, já que o MTP tem a obrigação de erradicar o trabalho escravo. Não se deve esquecer, igualmente, que os atos administrativos gozam de legalidade e veracidade até prova em contrário. Diante disso, é conveniente expor o pensamento de Jean Rivero (2002, p. 99) sobre o princípio da legalidade e as determinações administrativas:

Se as exigências da legalidade se estendessem a todos os elementos da atividade administrativa, esta seria puramente passiva: o papel da Administração reduzir-se-ia à elaboração mecânica dos actos (sic) particulares impostos pela norma geral; toda liberdade de apreciação, toda a iniciativa lhes estariam proibidas. Na realidade não é assim: a submissão da Administração ao direito deixa subsistir a seu favor uma zona de liberdade: é o poder discricionário.

Além disso, existem previsões legais tanto no âmbito interno, como no externo, que se harmonizam à existência do Cadastro de Empregadores. Dentre elas estão a Convenção sobre a Escravatura (Liga das Nações, 1926, no Brasil, Decreto n. 58.562 de 1966); a Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU, 1948); o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966, no Brasil, Decreto n. 592 de 1922); a Convenção Americana de Direitos Humanos (OEA, 1969); a Convenção n. 29 (OIT, 1930) e a Convenção n. 105 (OIT, 1957), ambas ratificadas pelo Brasil; o art. 149 do Código Penal Brasileiro, alterado pela Lei n. 10.803/2003; e o Decreto n. 1.538 de 1995, que criou o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho, substituído pala Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo em 2003 (FAVA, 2005).

Outra justificativa elaborada pelos críticos ao cadastramento é sobre a ausência de inquérito policial, denúncia ou sentença penal condenatória transitada em julgado antes da inclusão do nome à lista, o que, para eles, estaria afrontando o princípio da presunção de inocência, nos termos do art. 5º, LVII, da CRFB. No entanto, esse dispositivo, quando analisado literalmente, limita-se ao âmbito penal, enquanto a discussão trazida é a responsabilidade dos infratores em âmbito administrativo, ou seja, a Portaria é expressão do poder de polícia administrativa do Ministério do Trabalho e do Emprego. Sabe-se, também, que essa previsão legal não é absoluta, cabendo exceções, como no caso de prisão cautelar, que não necessita de sentença transitada em julgado para se efetivar. Da mesma forma no processo penal, o qual dipõe que a sentença de pronúncia do magistrado deve ser amparada pela máxima in dubio pro societate, não exigindo, igualmente, esse prévio transito em julgado.

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Ademais, se esse dispositivo (art. 5, LVII, da CRFB) fosse utilizado sem uma prévia reflexão, ele estaria em conflito com a presunção constitucional de legalidade e acerto dos atos administrativos (CESÁRIO, 2011). Alexandre de Moraes (2000, p. 59), sobre o tema, aduziu:

Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Cosntituição Federal não são ilimitados, umas vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna ( Princípio da relatividade ou conveniência das liberdades públicas).

Desta forma, quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua.

Além disso, é garantido aos empregadores autuados o amplo direito de defesa, passando por todo o devido processo legal administrativamente, após exaurir a última instância recursal. O nome do empregador somente fará parte da lista após decisão administrativa final proferida em procedimento de fiscalização, esse trâmite está previsto no art. 2º, da Portaria Interministerial nº 4 de 11/05/2016. Tal procedimento reforça a tese de que existe uma responsabilidade prévia a ser tomada para que não se cometam injustiças e acabe por prejudicar algum empregador.

Quanto as consequências morais alegadas pelos empregadores, como o constrangimento, exposição degradante de sua imagem, pode-se concluir que esse fundado receio de dano irreparável argumentado tem, em contraposição, a ocorrência de um perigo também irrecuperável, que é o fato de dinheiro público subsidiado acabar financiando a produção privada daqueles que reduzem seus trabalhadores a condição análoga à de escravo, gerando a prevalência de interesses privados escusos sobre interesses sociais legítimos (CESÁRIO, 2006).

2.3 Inexistência de desrespeito à Constituição Federal de 1988

O Cadastro de Empregadores, ao contrário do que alguns tentam questionar, harmoniza-se com todo o ordenamento jurídico e, notadamente, com os princípios da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho, da valorização do trabalho humano, entre outros.

Isso pode ser concluído a partir do estudo de alguns artigos presentes na Constituição Federal de 1988 e que estão resguardando as Portarias que amparam a “Lista Suja”.

Os instrumentos normativos que refletem nos liames trabalhistas devem objetivar, sempre que possível, a preponderância dos valores sociais do trabalho. Além disso, a dignidade do trabalhador tem que repercutir na compreensão e utilização das normas legais e das circunstâncias que envolvem os contratos de trabalho. A obediência a essa dignidade é caracterizada, segundo Pontes de Miranda, como um direito supraestatal, o qual a Igreja Católica chama de direitos naturais, cujo respeito não pode sujeitar-se a normas internacionais ou nacionais (SÜSSEKIND, 1999). Ainda sobre o resguardo da dignidade, Francesco Santoni aduziu que está:

[...] ligada à garantia mais geral da personalidade humana e identificada, ao mesmo tempo, com as liberdades fundamentais que caracterizam o status civitalis, não só na Constituição italiana, mas também em muitas Constituições de países latino-americanos, mesmo se nestes últimos nem sempre se possa encontrar uma legislação ordinária que vise dar cumprimento à exigência de proteção dos trabalhadores diante dos poderes da empresa9.

Assim, ao se buscar os meios de coerção contra o trabalho escravo contemporâneo, o poder público está preservando a dignidade dos trabalhadores, que dão seu suor e sangue para garantirem o sustento de suas famílias em condições mínimas de sobrevivência. Além de ocasionar a valorização dessa força de trabalho que impulsiona o desenvolvimento do Brasil, assim como prevê os fundamentos da República Federativa do Brasil.

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem com fundamentos:

[...]

III- a dignidade da pessoa humana;

[...]

IV- os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa;

[...]

A “Lista Suja” compactua com os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil ao tentar erradicar a utilização do trabalho em condições análogas à de escravo, pois somente após a solução desse vergonhoso problema é que se pode desenvolver uma sociedade livre, justa e solidária, amenizando a exploração do homem pelo próprio homem. Juntamente a isso, ocorrerá uma aproximação na busca da erradicação da pobreza, com o alcance do bem de todos, sem qualquer discriminação.

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I- construir uma sociedade livre, justa e solidária;

[...]

III- erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação;

[...]

O Cadastro de Empregadores objetiva que todas as propriedades que têm algum tipo de atividade econômica exerçam sua função social como prevê a lei, o que inclui a utilização de trabalhadores com a garantia do mínimo de dignidade, buscando a valorização do trabalho humano e livre iniciativa, o pleno emprego e a redução das desigualdades sociais existentes. Os meios de coerção para condenar o trabalho forçado ainda existente, que é também uma exigência das Convenções nº 29 e 105, da OIT, e por isso disposta no rol dos tratados sobre direitos humanos fundamentais, harmoniza-se com aquilo estabelecido no arts. 1º, III e IV, e 170, da CF/1988 (SÜSSEKIND, 1999).

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

[...]

III- função social da propriedade;

[...]

VII- redução das desigualdades regionais e sociais;

VIII- busca de pleno emprego

[...]

Por fim, a edição das Portarias nº 04/2016, nº 540/2004, nº 1.234/2003 e nº 1.150/2003 possui fundamental importância para que o Brasil seja um Estado Democrático de Direito. A busca pela valorização do trabalho humano, pela função social da propriedade, pelo respeito à dignidade da pessoa humana fazem parte do compromisso do Estado brasileiro tanto no plano interno, como no externo, já que o país possui o comprometimento internacional de erradicar a mazela do trabalho escravo contemporâneo em seu território.

3. A Lei nº 14.946 de 2013, do Estado de São Paulo

A Lei nº 14.946/2013 foi promulgada pelo governo estadual de São Paulo, em 28 de janeiro de 2013, proposta pelo Deputado Estadual Carlos Bezerra Júnior, do partido PSDB, sendo aprovada com unanimidade na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.

A lei estabelece uma forma de sancionar aqueles que se utilizam de trabalho em condições análogas às de escravo de um modo que acarreta perdas econômicas aos seus infratores. O artigo 1º dispõe o seguinte:

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Artigo 1º - Além das penas previstas na legislação própria, será cassada a eficácia da inscrição no cadastro de contribuintes do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual  intermunicipal e de comunicação (ICMS) dos estabelecimentos que comercializarem produtos em cuja fabricação tenha havido, em qualquer de suas etapas de industrialização, condutas que configurem redução de pessoa a condição análoga à de escravo.

Dessa forma, sem a inscrição dessas empresas no Cadastro do ICMS, elas não poderão realizar operações de circulação de mercadorias, nem prestação de serviço de transporte interestadual e intermunicipal, nem prestação de serviço de comunicação. Tudo isso afetaria fortemente a atividade econômica desses empresários, sendo inviável sua continuação no mercado.

Além disso, a cassação da eficácia da inscrição no cadastro prevista na lei paulista acarretará, também, as seguintes consequências previstas no corpo dessa norma:

Artigo 4º - A cassação da eficácia da inscrição do cadastro de contribuintes do ICMS, prevista no artigo 1º, implicará aos sócios, pessoas físicas ou jurídicas, em conjunto ou separadamente, do estabelecimento penalizado:
I - o impedimento de exercerem o mesmo ramo de atividade, mesmo que em estabelecimento distinto daquele;
II - a proibição de entrarem com pedido de inscrição de nova empresa, no mesmo ramo de atividade.
§ 1º - As restrições previstas nos incisos prevalecerão pelo prazo de 10 (dez) anos, contados da data de cassação.
§ 2º - Caso o contribuinte seja optante pelo Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições (Simples Nacional), instituído pela Lei Complementar federal nº 123, de 14 de dezembro de 2006, a cassação da eficácia da sua inscrição no cadastro de contribuintes do ICMS, prevista no artigo 1º, implicará cumulativamente:
1 - a perda do direito ao recebimento de créditos do Tesouro do Estado, instituído pelo Programa de Estímulo à Cidadania Fiscal do Estado de São Paulo, de que trata a Lei nº 12.685, de 28 de agosto de 2007;
2 - o cancelamento dos créditos já calculados ou liberados, referentes ao Programa de Estímulo à Cidadania Fiscal do Estado de São Paulo, citado no item 1, independentemente do prazo previsto no § 2º do artigo 5º da Lei nº 12.685, de 28 de agosto de 2007.

Com isso, os transgressores da lei ficam impedidos de atuar no mesmo ramo de atividade econômica, ou abrir novo empreendimento no mesmo setor, pelo período de dez anos. O que, diante da lógica capitalista, inviabilizaria a continuação da empresa, acarretando enormes prejuízos a esses empresários.

Os Procuradores do MPT10, tendo em vista a erradicação deste trabalho, levantaram a proposta de fazer com que os Estados onde nasceram os trabalhadores escravizados e que foram vítimas do tráfico de pessoas adotem as mesmas ações implementadas no estado de São Paulo.

Gulnara Shahinian, Relatora Especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Escravidão Contemporânea, proferiu, em entrevista concedida ao site Repórter Brasil11, elogios a nova lei e ao Deputado Estadual responsável por sua criação. Afirmou que, com essa lei paulista, o deputado e seus apoiadores estão declarando a tolerância zero ao trabalho escravo em São Paulo, corroborando para que outros estados brasileiros editem normas similares internamente. Declarou, também, que o Brasil foi a nação que obteve os melhores progressos em 2012 com a elaboração de métodos institucionais para o enfrentamento da problemática do trabalho escravo contemporâneo, o que está em conformidade com os variados tratados internacionais que o Brasil ratificou sobre o assunto.

Durante o evento de celebração de 125 anos da abolição da escravatura, ocorrido em São Paulo, no ano de 2013, o Governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, sancionou dois novos decretos que visam à erradicação da escravidão. Um deles trata sobre o desempenho da Comissão Estadual pela Erradicação do Trabalho Escravo (Coetrae-SP) e o outro trouxe uma regulamentação da lei nº 14.946/2013. Esse regulamento traz a regra de que a cassação estabelecida como sanção da lei depende da condenação em decisão colegiada, independente da instância ou do tribunal. Isso porque o instituto anterior, que havia sido regulamentado pela Portaria CAT 19, da Secretaria Estadual da Fazenda, estabelecia que o procedimento para cassação teria como premissa a condenação criminal transitada em julgado do infrator da norma. O benefício trazido com a nova regulamentação foi muito bem tratado pela Procuradora Federal, do Ministério Público Federal, Janice Ascari12:

Com o sistema processual brasileiro, infelizmente, nenhuma decisão judicial se torna definitiva enquanto houver um único recurso nas nossas quatro instâncias. E a maioria dos recursos é de caráter protelatório. As decisões acabam não se cumprindo com a rapidez que uma sociedade estabelecida sob o estado democrático de direito desejaria para seus cidadãos.

3.1. Aplicação da lei nº 14.946/2013 ao caso concreto

A utilização concretamente da lei13 está sendo realizada no caso da autuação sofrida pela empresa M5, que detém a marca M. Officer. Em uma das fiscalizações realizada à empresa no ano de 2014, foram resgatados oito costureiros que laboravam em condições análogas às de escravo. Diante disso, o Ministério Público do Trabalho, por intermédio de seus procuradores, ajuizou uma Ação Civil Pública solicitando a responsabilização da M5 e requerendo a condenação ao pagamento de R$10 milhões, que, em miúdos, seria R$7 milhões em referência a danos morais coletivos e R$3 milhões pela realização do que se chama de “dumping social”, que significa a empresa adquirir vantagens na concorrência de mercado em detrimento do não respeito aos direitos dos trabalhadores. Tais valores serão investidos no “Fundo de Amparo ao Trabalhador”, que é responsável por auxiliar esses trabalhadores lesados.

No caso em tela, os Procuradores do Trabalho postulam, também, a punição da empresa M5 com base na Lei nº 14.946/2013. Esse pedido de enquadramento legal está amparado em duas autuações distintas sofridas pela infratora, no qual teve como resultado a libertação dos oito trabalhadores. Além disso, a Procuradora Tatiana Leal Bivar Simonetti, em entrevista ao site Repórter Brasil14, afirmou que foi realizada fiscalização em outras oficinas que produzem para a empresa M5 e a situação dos trabalhadores eram as mesmas, ou seja, indignas. Fazendo com que as autoridades concluíssem que caso sejam realizadas mais outras visitas em oficinas da infratora, os fatos, provavelmente, iriam se repetir. Os Procuradores expuseram, também, que a M5 recusou-se a acordar um Termo de Ajustamento de Conduta em diversas das tentativas realizadas. A Procuradora do Trabalho, Tatiana Leal Bivar Simonetti, ressaltou que “Em momento algum eles reconheceram a situação e se esforçaram para manter diálogo conosco [...] Ignoraram completamente todas as alternativas de solucionar o problema”15.

Acompanhando o caso da empresa M5, sabe-se que após os variados flagrantes16 de irregularidades com os direitos de seus trabalhadores, representantes da empresa foram chamados pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo para prestar esclarecimentos. Na ocasião, os políticos presentes argumentaram e pediram o pagamento das verbas rescisórias dos empregados libertados nas ações de fiscalização, o que fez com que a diretora de compras da grife, Rosicler Fernandes Gomes, prometesse o encaminhamento do pedido ao presidente da M5, Carlos Henrique Miele, mas nenhuma resposta foi dada17.

O argumento utilizado pela M. Officer em justificativa às autuações sofridas é o de que o sistema de produção da marca é através de contratos de terceirização, fazendo com que a empresa não conheça os empregados libertados como seus funcionários. Porém, o MPT e o MTP afirmam que o sistema de terceirização e quarteirização da produção da M5 é baseado em uma cadeia de subcontratações irregulares. A Ação Civil Pública proposta contra essa empregadora explica que ela tenta desvirtuar e fraudar as exigências legais para a relação de emprego. Este trecho do texto18 da ação explica bem o assunto:

Embora os trabalhadores flagrados em situação degradante e análoga à de escravo não tenham sido diretamente contratados pela M5, estão inseridos em sua cadeia produtiva, eis que costuram peças seguindo ‘peça-piloto’ idealizada pela equipe de criação da Ré e utilizando-se de materiais (tecido, adornos, etc) fornecidos por esta

A Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete) do MPT, por intermédio da Procuradora do Trabalho Christiane Vieira Nogueira, em entrevista19, ressaltou que a constatação realizada pelo poder público é a de que a M. Officer utiliza-se do trabalho escravo contemporâneo não somente de maneira pontual, mas de forma sistemática. A procuradora afirma, também, que:

A Lei Bezerra é recente e esse é um dos primeiros casos posteriores à sua regulamentação. O MPT procura utilizar todos os meios disponíveis para a erradicação do trabalho escravo e essa lei, no âmbito do estado de São Paulo, é mais um desses instrumentos. Então, é intenção da instituição sim incluir pedidos relativos à Lei nas nossas ações e exigir a sua aplicação pelos órgãos competentes20.

A Procuradora do Trabalho, Tatiana Leal Bivar Simonetti, em entrevista ao site Repórter Brasil, trouxe ao debate, no caso da M. Officer, que a exibição da situação de como a produção das roupas desta empresa é realizada acarretará impactos no mercado consumidor para essa marca: “Hoje as pessoas têm uma consciência social maior, buscam qualidade de vida e respeito ao meio ambiente e às pessoas [...] A gente escolhe uma marca por acreditar que as peças são produzidas por profissionais capacitados e bem remunerados.”21.

3.2 A reprodução da lei nº 14.946/2013 através de leis estaduais em outros entes federativos brasileiros

A Lei nº 14.946/13, de São Paulo, trouxe um avanço tão importante para o combate ao trabalho escravo que outros Estados estão sancionando, por intermédio de seus Deputados Estaduais, leis com o mesmo conteúdo.

No Estado do Mato Grosso do Sul (MS) foi sancionada a Lei nº 4.344/2013 que estabelece a cassação do registro do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) daquelas empresas que forem autuadas pela utilização de trabalho escravo em qualquer de suas etapas na cadeia produtiva. O projeto de lei foi apresentado pelo Deputado Estadual Diogo Tida. Porém, essa lei precisa, ainda, de regulamentação para poder entrar em vigor, isso porque é necessário ser apresentado o procedimento que o Executivo adotará para acatar as instruções previstas em tal lei.

No Estado do Maranhão foi proposto o projeto de lei nº 078/2013 que, também, baseia-se na lei paulista nº 14.946/2013. Dessa forma, todas as empresas que forem flagradas valendo-se, direta ou indiretamente, de mão de obra escrava serão punidas com a vedação do exercício da atividade econômica desempenhada, ou criação de nova empresa no mesmo ramo pelo prazo de cinco anos. Tal projeto de lei é o segundo no estado que aborda a temática do trabalho escravo moderno, o primeiro, que foi vetado pela então Governadora Roseana Sarney, proibia o Governo do Estado de realizar contratos com empresas que tenham se utilizado desse tipo de labor escravocrata.

No Estado do Tocantins também foi apresentado projeto de lei à Assembleia Legislativa do Estado com conteúdo similar ao da Lei Paulista de nº 14.946/2013. Esse projeto é de extrema importância para esse estado, já que o Tocantins, segundo dados apresentados pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social, em 2012 foi o terceiro estado do país com o maior número de resgatados por trabalho escravo moderno22.

4. A atuação do Ministério do Trabalho e Previdência Social (MTP) para a erradicação do trabalho escravo

O Governo Federal é o responsável pela fiscalização das condições de trabalho dos cidadãos brasileiros. Diante disso, ele, através da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), do Ministério do Trabalho e Previdência Social, busca realizar esse controle da melhor forma possível.

O Brasil possui 27 Superintendências Regionais do Trabalho e Emprego (SRTEs) espalhadas por todos os estados brasileiros e Distrito Federal. Esse órgão é o responsável pela inspeção trabalhista de forma descentralizada da SIT. Por motivo de melhor atuação, dentro do SIT existe o Departamento de Inspeção do Trabalho (DEFIT), que é composto por uma divisão específica que trata dos assuntos ligados ao trabalho escravo moderno, chamada de Divisão de Fiscalização para a Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE)23.

Os auditores fiscais do trabalho são os responsáveis por essa fiscalização das relações trabalhistas. A competência atribuída a esses funcionários tem como base legal principalmente o artigo 21, inciso XXIV, da Constituição Federal de 1988 e o Regulamento da Inspeção do Trabalho (RIT), atualizado pelo Decreto nº 4.552 de 2002. Dentre as diversas atribuições dos auditores trabalhistas estão o exame e possível apreensão de livros, documentos, máquinas; lavrar autos de infração, que podem gerar multas administrativas; verificar o respeito às disposições legais trabalhistas; conceder orientações e conselhos técnicos aos empregados e empregadores; averiguar os motivos geradores dos acidentes de trabalho e das doenças ocupacionais; fazer auditorias e perícias, com a expedição de pareceres e relatórios; entre outras previstas no Decreto nº 4.552/2002.

O papel desempenhado pelo MTP na resolução desse problema é muito importante. Diante disso, firmou um compromisso com o MPT, o MPF e a Secretaria de Polícia Federal com o objetivo de somar forças para a prevenção, extinção e coibição das atividades que utilizem trabalho forçado, labor ilegal infantil e de adolescentes, de crimes contra a organização do trabalho e de outras violações às garantias à saúde desses empregados. Esse pacto propõe metas a serem seguidas pelos órgãos signatários. Ao MTP foi estipulado:

a) Adotar providências de fiscalização sempre que tomar conhecimento de violação de direito assegurados aos trabalhadores, inclusive no que respeita à saúde e segurança, ou quando houver solicitação dos demais signatários;

b) Acompanhar e coadjuvar os demais signatários nas diligências e investigações que procederem, sempre que solicitado, adotando as medidas legais cabíveis, dentro da respectiva área de atuação;

c) Informar aos demais signatários sobre o resultado das ações que lhe forem especificamente solicitadas24.

Além disso, existe o Plano Nacional para a erradicação do trabalho escravo25, que anseia cumprir as metas dispostas em seu texto, declarando, também, a repressão desse ilícito como uma das prioridades do Estado brasileiro. Ele propõe, igualmente, estratégias para as operações em parceria com órgãos do Executivo, do Judiciário e do Ministério Público, junto com o apoio da população.

Dessa forma, o MTE realiza fundamentais operações para a resolução desse mal, atuando, também, com fiscalizações e apurações de denúncias recebidas em sua sede, utilizando, igualmente, o auxílio do Grupo de Fiscalização Móvel para efetivar tais ações.

4.1. Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM)

O Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), criado em 1995, surgiu em meio a necessidade que o Governo Federal, juntamente com o Ministério do Trabalho e Emprego, sentiram por ser preciso mais instrumentos de fiscalização para a erradicação do trabalho escravo moderno.

O GEFM é composto somente por Auditores Fiscais do Trabalho (AFTs), porém, em suas ações, eles recebem o auxílio de outras instituições, que são o Ministério Público do Trabalho (MPT), a Polícia Federal ou Polícia Rodoviária Federal e o Ministério Público Federal (MPF). A participação desses funcionários públicos no grupo é de forma voluntária, sendo instigados pela relevância social de seu trabalho, junto com a satisfação gerada pela eficiência que as fiscalizações possuem. Esse estímulo é de suma importância, pois eles enfrentam circunstâncias adversas, com inspeções em lugares muitas vezes de difícil acesso, passando por dificuldades tanto físicas como psicológicas, ao se depararem com pessoas vivendo sem o mínimo de dignidade possível.

Nas operações do GEFM, aos auditores compete, resumidamente, o lavramento dos autos de infração, a reunião de provas, a emissão de carteiras de trabalho, a inscrição dos trabalhadores no Seguro Desemprego e interdição dos ambientes de trabalho quando necessário. Já os Procuradores do Trabalho podem propor as Ações Civis Públicas, acordar os Termos de Ajustamento de Conduta, auxiliar na reunião de provas, entrar com ações na Justiça do Trabalho que visem à punição de empregadores infratores das normas. Além disso, o Procurador é fundamental para reforçar a atuação dos Auditores, pois são investidos de prerrogativas constitucionais e legais que auxiliam na efetivação das fiscalizações e na tutela dos direitos coletivos violados. As Polícias Federal e Rodoviária Federal ficam incumbidas de realizar a segurança do grupo, com a possível apreensão de armas, ou outros instrumentos ilegais encontrados no ambiente de trabalho.26

Segundo dados retirados do relatório do Ministério do Trabalho e Emprego27, atualizado em 17/09/2010, entre 1995 e setembro de 2010 foram realizadas 1.009 operações pelo GEFM, com 2.073 estabelecimentos inspecionados, 38.031 trabalhadores resgatados, R$58.876.132,43 de direitos trabalhistas pagos e 29.711 autos de infração lavrados.

No Estado do Ceará, um caso ilustrativo que aconteceu foi em 2008, o qual o GEFM libertou 51 trabalhadores que estavam laborando em situação degradante numa carvoaria na cidade de Parambu. Ao averiguar o caso, as autoridades verificaram que esses trabalhadores não residiam naquele município, pois vinham de cidades vizinhas como Quixadá, Quixeramobim, Banabuiú e Aiuba. Dessa forma, eram atraídos de seus locais de origem para trabalhar na Fazenda Tabuleiro realizando o corte de madeira e fabricação de carvão, e esses produtos eram utilizados pela empresa Libra Ligas do Brasil S/A, do grupo Carbomil. Constatou-se, também, que esses trabalhadores tinham que habitar em locais impróprios, em barracões de tora de madeira cobertos por lonas de plástico, sem água potável. Esses empregados foram contratados de forma irregular e sem as formalidades exigidas pela lei trabalhista. Diante dessa situação, o MPT ajuizou uma ação civil pública, e todos os direitos trabalhistas foram pagos pelo empregador, totalizando o valor de R$137,6 mil.28

Outro caso ocorrido no Ceará foi o de 141 trabalhadores libertados de uma usina de álcool, onde eram subjugados às circunstâncias laborais degradantes. O fato deu-se na cidade de Paracuru, localizada a 84 km da capital Fortaleza. Os fatos mostravam que esses empregados eram instalados em locais sem água potável, sem condições sanitárias adequadas, e não lhes eram proporcionados os materiais de segurança do trabalho, entre outras irregularidades. Essa empregadora foi punida tanto por causa da situação encontrada na sua área de plantação, como também em seu parque industrial. Nesse último local foram encontrados 88 trabalhadores que realizavam seus labores em um ambiente que tinha risco de explosão, devido ao uso de equipamentos de solda sem válvulas, com perigo, também, de perda auditiva, queimaduras e perdas de membros desses homens.29

Um dos últimos casos emblemáticos ocorridos no Ceará foi o resgate de 17 trabalhadores em duas fazendas nas cidades de Viçosa e Granja, em 26 de setembro de 2014, através de uma ação do GEFM, em parceria com o MPT, MPF e PRF. Os trabalhadores foram encontrados alojados em ambientes precários. Tal operação começou no dia 17 do mesmo mês, a qual constatou que as vítimas não possuíam circunstâncias adequadas de higiene, alimentação, entre outras afrontas às garantias legais para o exercício do labor. De acordo com a notícia publicada no jornal O Povo30:

A situação era tão ruim, que em uma das fazendas, os trabalhadores só ocupavam o alpendre de uma casa abandonada. Na outra fazenda, havia pessoas dormindo ao relento, debaixo de árvores. Não havia ainda disponibilização de instalações sanitárias e elétricas, e os alimentos eram armazenados de maneira inadequada.

Os trabalhadores desenvolviam atividades relacionadas à extração do pó da carnaúba. Segundo informações do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, a finalidade das averiguações é buscar a regularização do uso da mão de obra.

Segundo o jornal31, essa ação tem como objetivo a extinção da exploração da mão de obra frequentemente utilizada para a retirada do pó da palha da carnaúba, que é uma atividade econômica muito forte na para a economia cearense. O períodico, igualmente, explicitou as consequências monetárias dessa autuação:

Os trabalhadores receberam rescisões que resultaram em valores superiores a R$ 30 mil - e a emissão dos autos de infração pelas irregularidades constatadas. Todos os trabalhadores resgatados receberão três parcelas de seguro desemprego especial em razão das condições a que estavam submetidos, independente do tempo em que estavam trabalhando nas propriedades. Os valores foram pagos pelos empregadores32.

Por fim, as consequências positivas alcançadas pelo GEFM não se estende apenas aos dados acima relatados, pois as instruções e informações levadas às pessoas são também de suma importância. Outro ponto positivo foi a confiança da população no poder público, diante da eficiência que o grupo alcançou. A temática sobre o trabalho escravo contemporâneo começou, também, a ser mais debatida e encarada pelos brasileiros como um assunto de grande relevância social, pois o assunto saiu da invisibilidade que possuía, chegando ao conhecimento da maior parte das pessoas que esse é um mal ainda muito presente na sociedade, devendo ser amplamente erradicado.

5. Considerações finais

Por tudo isso, observa-se que na sociedade brasileira ainda se vê muitos casos de trabalho escravo contemporâneo, como se pode ler nos noticiários e dados disponibilizados pelo MTP. Apesar disso, a mobilização de vários atores para sua erradicação é cada vez mais presente, principalmente junto ao diálogo com a OIT, com o Poder Executivo, através dos auditores fiscais do MTE, com o Poder Judiciário, através da Justiça do Trabalho, com o Ministério Público do Trabalho e com a edição de leis pelo Poder Legislativo. Dessa forma, é de fundamental importância a mobilização interinstitucional e social para garantir a efetiva erradicação dessa forma de labor exploratória e que avilta a dignidade da pessoa do trabalhador.

Por fim, cabe ressaltar que a busca pela extinção do trabalho escravo moderno tem seu destaque não apenas no número de autuações realizadas, ou na quantidade de libertações feitas, mas, principalmente, na luta pela garantia de todos os direitos fundamentais dos trabalhadores, sendo de significativa importância para um país que anseia a democracia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CESÁRIO, João Humberto. O cadastro de empregadores que tenham mantido trabalhadores em condições análogas à de escravo como instrumento de afirmação da cidadania: Questões constitucionais e processuais (à luz da nova lei do mandado de segurança). In: VELLOSO, Gabriel; NOCCHI, Andrea; FAVA, Marcos Neves (coord.). Trabalho escravo contemporâneo: o desafio de superar a negação. 2. ed. São Paulo: LTr, 2011.

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Sobre a autora
Bárbara da Silva Baracho

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho e Direito Previdenciário pela Universidade Estácio de Sá. Pós-graduada em Direito Constitucional da rede de ensino LFG/Anhanguera. Pós-graduada em Direito do Trabalho e Previdenciário com foco no Acidente do Trabalho pela Faculdade Legale. Pós-graduada em Direitos da Mulher e a Advocacia Feminista pela Faculdade Legale. Advogada inscrita na OAB/CE.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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