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A utilização da classificação internacional de funcionalidade (CIF) e superação da tabela Susep na Justiça do Trabalho: uma necessidade

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A tabela da SUSEP deve ser cotejada com a profissão do trabalhador e seu grau de incapacidade para o exercício da função, seu contexto social e econômico.

A avaliação das incapacidades permanentes ou temporárias, totais ou parciais, para o labor são temáticas recorrentes nos processos trabalhistas ante o alto índice de acidentalidade no trabalho no Brasil. A incapacidade parcial permanente é uma das que suscitam maiores controvérsias judiciais quando da quantificação da indenização para adequado pensionamento. A incapacidade parcial permanente ocorre quando, após a convalescença, ou seja, quando consolidadas as lesões, conclui-se que a vítima sofreu redução parcial definitiva da capacidade para o labor que habitualmente exercia. Sendo a redução parcial, a vítima poderá ser reabilitada para exercer a mesma função ou readaptada em outra função compatível, havendo, por consequência, menor rendimento e maior esforço. Com efeito, é justamente a partir da mensuração da redução da capacidade numa perspectiva multidimensional que se pode chegar ao arbitramento adequado do valor de uma indenização.

A incapacidade, sob o aspecto da responsabilidade civil, inicialmente deve ser avaliada tendo por referência a profissão da vítima, levando-se em conta ainda, que a redução da capacidade, de modo geral, implica o afastamento do indivíduo vitimado do mundo do trabalho, sobretudo, diante de uma eventual dificuldade em obter novo emprego.

Nesse particular, o art. 950 do Código Civil de 2002 dispõe que o valor da indenização incluirá pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou ou da depreciação que ele sofreu, conforme se verifica:

Art. 950. Se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua a capacidade de trabalho, a indenização, além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença, incluirá pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu.

Em razão disso, quando houver perda parcial da capacidade, a pensão mensal deverá ter valor proporcional à redução da capacidade laborativa, de modo que tal mensuração se dará a partir de prova pericial determinada pelo juízo, conforme art. 156 do CPC/2015, que assim dispõe:

Art. 156. O juiz será assistido por perito quando a prova do fato depender de conhecimento técnico ou científico.

A controvérsia, neste particular, reside muitas vezes na discordância das partes em relação ao percentual de redução de capacidade para o labor reconhecida pelo perito em seu laudo. Ressalte-se que o julgador não está adstrito à conclusão do laudo pericial, podendo, de forma fundamentada a partir da consideração integral do acervo probatório, julgar contrariamente à conclusão pericial, nos termos do art. 479 do CPC/15:

Art. 479. O juiz apreciará a prova pericial de acordo com o disposto no art. 371, indicando na sentença os motivos que o levaram a considerar ou a deixar de considerar as conclusões do laudo, levando em conta o método utilizado pelo perito.

Um ponto a ser destacado é que há situações em que o laudo pericial não apresenta o percentual da perda da capacidade ou o grau da perda laborativa sofrido pelo trabalhador ou trabalhadora. Isso demonstra a importância de o juiz realizar quesitos próprios (quesitos do juízo) antes da realização da pericial para que o perito responda de forma clara eventuais questões sobre a incapacidade parcial do(a) trabalhador(a). Para isso, pode o(a) magistrado(a) determinar que o perito observe os parâmetros traçados pela Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) ferramenta concebida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para adequada investigação e atendimento das necessidades das pessoas acometidas por limitações temporárias ou permanentes e que em interação com barreiras sociais e econômicas podem experimentar prejuízos e restrições em diferentes escalas a sua plena participação na vida em sociedade. Trata-se, pois, de um Modelo Integrativo Biopsicossocial que leva em consideração não apenas estruturas do corpo e funções corporais, mas também avalia a condição de saúde, fatores pessoais e ambientais, a execução de ações ou tarefas individuais (atividade) e o envolvimento da pessoa sob análise em situações da vida real em sociedade (participação).

Nesse sentido, mostra-se insuficiente e inadequada a utilização da tabela elaborada pela SUSEP (Superintendência de Seguros Privados) para fins de parametrização dos prejuízos sofridos pelo indivíduo em razão do acidente do trabalho. Entretanto, ainda tem sido mais comum nos laudos periciais a referência a esta última numa espécie de tabelamento do dano. Nesse ponto, é importante salientar que a tabela da SUSEP além de não ser adequada, não pode ser utilizada como critério exclusivo para aferição do prejuízo sofrido pelo(a) trabalhador(a) em sua incapacidade, devendo ser ponderada com outros fatores do caso concreto, pois a aludida tabela apenas enquadra a invalidez de modo genérico, avaliando a incapacidade para o trabalho em sentido amplo, sem considerar a inabilitação para a profissão exercida pela vítima, que é o objeto da indenização prevista no art. 950 do CC/02, eis que concebida e destinada exclusivamente para a padronização e fixação das indenizações devidas por Seguradoras a pessoas acidentadas, em percentual vinculado à importância segurada e ao grau de comprometimento econômico pré-fixado da parte do corpo atingida.

Sendo assim, em que pese sua insuficiência e desiderato diverso, se utilizada, a tabela da SUSEP deve ser cotejada com a profissão do trabalhador e seu grau de incapacidade para o exercício da função, seu contexto social e econômico, de modo que a sentença deve se pautar na prova técnica produzida nos autos aliada às singularidades que envolvem o infortúnio e o empregado vitimado e o contexto sócio-econômico (barreiras e acessibilidade) experimentado pela vítima, evitando-se um olhar estanque sobre os elementos dos autos, mormente quando a prova pericial não se debruçar de forma ampla a partir de um modelo biopsicossocial como o proposto pela Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF). Assim, constatando-se que a lesão, além da incapacidade, gerou outros prejuízos pessoais, como dificuldade de obter emprego em qualquer outra função remunerada ou mesmo a progressão da doença no tempo, o valor indenizatório deverá ser majorado com o fim de obter acesso à justiça material sob a perspectiva da justiça social e dignidade humana (art. 1º, III e IV, art. 170 e art. 193 da CRFB/88).

Atente-se que mesmo nos casos em que o acidentado volta a desempenhar o mesmo ofício, mas com maior sacrifício em razão de sequelas permanentes, deverá ser compensado pelo pagamento de indenização proporcional, conforme jurisprudência predominante do C. STJ:

CIVIL E PROCESSUAL. ACIDENTE DE TRABALHO. SEQÜELA LIMITADORA DA CAPACIDADE. PENSIONAMENTO. NATUREZA. MANUTENÇÃO DO EMPREGADO ACIDENTADO NO TRABALHO. DESLIGAMENTO APÓS ALGUM TEMPO. DIES A QUO DA PRESTAÇÃO MENSAL. CC, ART. 1.539. EXEGESE.

I. Diversamente do benefício previdenciário, a indenização de cunho civil tem por objetivo não apenas o ressarcimento de ordem econômica, mas, igualmente, o de compensar a vítima pela lesão física causada pelo ato ilícito do empregador, que reduziu a sua capacidade laboral em caráter definitivo, inclusive pelo natural obstáculo de ensejar a busca por melhores condições e remuneração na mesma empresa ou no mercado de trabalho.

II. Destarte, ainda que mantido o empregado nas suas funções anteriores, o desempenho do trabalho com maior sacrifício em face das seqüelas permanentes há de ser compensado pelo pagamento de uma pensão indenizatória, independentemente de não ter havido perda financeira concretamente apurada.

III. Recurso especial não conhecido.

(REsp n. 324.149/SP, relator Ministro Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma, julgado em 14/5/2002, DJ de 12/8/2002, p. 216.). Destacado.

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A Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), por realizar uma análise a partir da funcionalidade, sendo esta uma interação dinâmica entre a condição de saúde de uma pessoa, os fatores ambientais e os fatores pessoais, apresenta melhores condições de aferir eventual perda de capacidade laboral do empregado de acordo com meio-ambiente de trabalho, profissão exercida, escolaridade, entre outros fatores profissionais e pessoais, de modo que a existência ou não da incapacidade passa pela verificação da interação de todos esses fatores existentes na vida do periciado. Há uma integração dos principais modelos de incapacidade - o modelo médico e o modelo social - como uma “síntese biopsicossocial”, reconhecendo o papel dos fatores ambientais na criação e agravamento da incapacidade, além do papel das condições de saúde isoladamente.

Por isso, a utilização da CIF nas periciais médicas permite uma conclusão mais particularizada, de acordo com a situação específica de cada trabalhador no seu ambiente de trabalho, evitando-se o aspecto generalizante presente na tabela da SUSEP, sendo, portanto, um modelo multidimensional. Nesse ponto, Sebastião Geraldo de Oliveira (2021, p. 482) pontua que:

“Tende a ganhar maior aceitação no Brasil, pelo amplo detalhamento e pela análise das diversas variáveis, a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde, aprovada por 191 países durante a 54ª Assembleia Mundial da Organização Mundial de Saúde, realizada em maio de 2001. Essa classificação substituiu documento anterior de 1976 que fazia a divisão das situações resultantes das doenças ou acidentes em deficiência, incapacidade e desvantagem. Inspirado na referida Classificação Internacional de Funcionalidade e no Guia Baremo de Avaliação das Lesões Físicas e Psíquicas adotado pela União Europeia, foi promulgado em Portugal o Decreto-Lei n. 352/2007, que aprovou duas tabelas para apuração das incapacidades: 1. Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais; 2. Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil”.

Com efeito, para a adoção da CIF em perícias judiciais, para se evitar que o perito a ser nomeado alegue desconhecimento da aludida classificação, é importante a referência à Tabela ESC nos quesitos do juízo. Esta tabela foi desenvolvida para auxiliar a aplicação prática da CIF por peritos judiciais.

Do ponto de vista de fundamentação legal, a Resolução CNS n° 452/2012 adota a CIF para o SUS, incluindo a Saúde Suplementar, adicionando que a CIF deve ser usada como ferramenta de planejamento de sistemas de seguridade social, de sistemas de compensação e de desenvolvimento de políticas, o que denota sua importância também para saúde e vigilância sanitária em saúde do trabalhador e da trabalhadora (art. 6, I e §3º da Lei nº 8.080/90 c/c art. 200, II e VIII da CRFB/88)

Paralelamente, a Lei n. 13.146/2015 (Lei Brasileira de Inclusão) cita os termos da CIF em seu artigo 2°, §1º, estabelecendo que a avaliação seja pautada no modelo biopsicossocial, de cunho multiprofissional e interdisciplinar, conforme já salientado anteriormente, nos seguintes termos:

“Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

§ 1º A avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considerará: (Vigência) (Vide Decreto nº 11.063, de 2022)

I - os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo;

II - os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais;

III - a limitação no desempenho de atividades; e

IV - a restrição de participação” (destacado).

Por todo o exposto, a Tabela ESC congrega os conceitos acadêmicos e legais para subsidiar o processo técnico de quantificação, qualificação e codificação da incapacidade laboral, considerando a presença ou ausência de relação entre a incapacidade e as atividades profissionais, permitindo um julgamento técnico para determinar se o indivíduo periciado é capaz de voltar a exercer a sua atividade laboral, se não é capaz ou se é capaz com restrições e se necessita de algum instrumento de acessibilidade, tecnologia assistiva ou outra adaptação razoável. A Tabela ESC ainda traz a consideração sobre o tipo de nexo, que pode ser causal ou concausal, sendo que este último pode ser dividido em preexistente, concorrente e superveniente, sendo que cada um desses ainda é subdividido em até três graus, além de levar em conta o cumprimento de Normas Regulamentadoras e aspectos ergonômicos no ambiente de trabalho do periciando.

Como se vê, a CIF se mostra mais adequada para a delimitação de eventual incapacidade laboral que acometa o(a) trabalhador(a), porém, infelizmente, a tabela da Superintendência de Seguros Privados (SUSEP) ainda é utilizada para fins de percentual para pagamentos de indenizações nas relações trabalhistas, mesmo sem ter sido criada para esta finalidade, sendo desconhecida a sua origem, seus métodos e suas bases científicas. Diante disso, surge a importância de os quesitos do juízo e das partes provocarem os peritos judiciais para a utilização da Tabela ESC prevista na Classificação Internacional de Funcionalidades, a qual pode oferecer subsídio importante para o enquadramento da incapacidade parcial em busca da reparação integral do prejuízo sofrido.

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Por fim, vale o alerta já deixado pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) em seu portal de Boas Práticas, que a linguagem e metodologia Biopsicossocial da CIF precisa ser adequadamente implementada pelos profissionais envolvidos na avaliação dos indivíduos, uma vez que trata-se de modelo não linear e que não se resume ao aspectos relacionados à estrutura e função do corpo, devendo ser igualmente considerados os outros componentes do modelo, quais sejam fatores pessoais (aqui inclusa a condição de saúde), fatores ambientais, atividades e participação, sendo este último elemento tomado como central. Em suma, não se trata da mera substituição de uma tabela por outra, mas sim uma mudança de metodologia na avaliação das incapacidades laborais, considerado como novo marco Teórico da Reabilitação.


REFERÊNCIAS:

BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em 23 abr 2023.

BRASIL. LEI Nº 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm . Acesso em 22 abr 2023.

BRASIL. LEI Nº 13.105, DE 16 DE MARÇO DE 2015. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm . Acesso em 22 abr 2023.

BRASIL. LEI Nº 8.080, DE 19 DE SETEMBRO DE 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm . Acesso em 23 abr 2023.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=200100551936&dt_publicacao=12/08/2002 . Acesso em 22 abr 2023.

BRASIL. RESOLUÇÃO Nº 452, DE 10 DE MAIO DE 2012 DO CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2012/res0452_10_05_2012.html . Acesso em 22 abr 2023.

BUCHALLA CM. A Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde. Acta Fisiátr. [Internet]. 9 de abril de 2003. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/actafisiatrica/article/view/102426 . Acesso em 22 abr 2023.

FIOCRUZ – Fundação Oswaldo Cruz. Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF). Disponível em: https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/atencao-crianca/classificacao-internacional-de-funcionalidade-incapacidade-e-saude-cif/ . Acesso em 23 abr 2023.

OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Indenizações por acidente do trabalho ou doença ocupacional. 12. ed. rev. ampl. e atual. - Salvador: Editora Juspodivm, 2021.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Mariana Servilha Passos. A utilização da classificação internacional de funcionalidade (CIF) e superação da tabela Susep na Justiça do Trabalho: uma necessidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7244, 2 mai. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/103743. Acesso em: 3 mai. 2024.

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