I. Trata este artigo de matéria relacionada com o direito de autor (expressão que Rui preferia a direito autoral).1
A figura típica descrita no art. 184 do Código Penal tem a seguinte substância:
“Violar direitos de autor e os que lhe são conexos:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa)”.
A magna importância desse direito resumiu-a Washington de Barros Monteiro numa cláusula de ouro: “(…) o direito autoral decorre da personalidade humana, é emanação e prolongamento da pessoa do autor (…), um pedaço de sua alma” (Curso de Direito Civil, Direito das Coisas, 1971, p. 240; Edição Saraiva).
Pelo que respeita ao direito de autor de obra literária, quer-se reproduzido este lanço de Nélson Hungria, lustre e glória perene do Direito Penal pátrio:
“Costuma-se dizer que só é criminoso o plágio quando alguém usurpa, pelo menos, trechos importantes da obra alheia ou essenciais de sua estrutura ideológica, comparando-se sua atividade à da formiga que toma para si as folhas da árvore. Aquele que apenas respiga na obra alheia, sem destacar-lhe a estrutura espiritual ou parte integrante desta, como a abelha que se restringe a sugar na flor, pode merecer censura sob o ponto de vista ético, mas não incorre na sanção penal (nem civil)” (Comentários ao Código Penal, 1980, vol. VII, p. 339; Editora Forense).
O preceito da lei penal, é bem se diga, leva o fito em pôr cobro à insolência dos que não trepidam em “defraudar o escritor do fruto legítimo do seu trabalho” .2
II. Ao confirmar sentença absolutória de acusado, em processo-crime por infração do art. 184, § 2º, do Código Penal (violação de direito de autor), o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo pronunciou-se por este feitio:
PODER JUDICIÁRIO
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Quinta Câmara – Seção Criminal
Apelação Criminal nº 993.02.022149-2
Comarca: Marília
Apelante: Ministério Público
Apelados: PAO e MBS
Voto nº 11.603
Relator
– Vem aqui a ponto a lição do conspícuo Mittermayer: “Não podendo o juiz sair da dúvida, deverá, no fim de contas, recorrer ao meio ordinário, e admitir como verdadeira a versão mais favorável ao acusado” (Tratado da Prova em Matéria Criminal, 1871, t. II, p. 177; trad. Alberto Antônio Soares).
– Expressiva corrente jurisprudencial tem sufragado a inteligência de que, para o aperfeiçoamento do tipo do art. 184, § 2º, do Código Penal (violação de direito autoral), não basta a prova da reprodução ilegal: é mister se proceda à “identificação das vítimas (artistas ou outros proprietários dos direitos autorais) e o valor do prejuízo” (TJSP; Ap. Crim. nº 993.07.016686-0/Dracena; 2a. Câm.; rel. Ivan Marques; j. 29.9.08).
1. Da r. sentença que proferiu o MM. Juízo de Direito da 2a. Vara Criminal da Comarca de Marília, absolvendo PAO e MBS da imputação de infratores do art. 184, § 2º, do Código Penal (violação de direito autoral), interpôs recurso para este Egrégio Tribunal, no intento de reformá-la, o ilustre representante do Ministério Público.
Afirma, em esmeradas e elegantes razões de apelação, que o douto Magistrado de Primeiro Grau não se houvera com todo o acerto ao absolver os réus por insuficiência de prova.
Acrescenta que, no caso, a materialidade do fato e sua autoria estavam cabalmente demonstradas.
Pelo que, requer à colenda Câmara tenha a bem prover-lhe o recurso para condenar os apelados nos termos da denúncia (fls. 172/177).
Apresentou a Defesa contrarrazões de apelação, nas quais repeliu a pretensão da Justiça Pública e propugnou a manutenção da r. sentença apelada (fls. 179/180).
A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em firme e escorreito parecer do Dr. Rubem Ferraz de Oliveira, opina pelo improvimento da apelação (fls. 185/188).
É o relatório.
2. Foram os réus chamados a prestar estritas contas à Justiça Criminal porque, em 9.11.1999, pelas 12h, no Terminal Rodoviário Urbano de Marília, PAO expunha à venda 721 unidades de fitas “cassette” e 274 unidades de discos-“laser” (Compact Disc), reproduzidos com violação de direito autoral, sem autorização dos autores ou de seus representantes.
Reza a denúncia que, nas mesmas condições de tempo e lugar, MBS expunha à venda 22 unidades de discos‑“laser” (Compact Disc), reproduzidos com violação de direito autoral, sem autorização dos autores ou de seus representantes.
Instaurada a persecução penal, transcorreu o processo na forma da lei; ao cabo, a r. sentença de fls. 166/168 julgou improcedente a pretensão punitiva e absolveu os réus, por falta de prova.
Inconformado com o êxito da causa-crime, apelou o órgão do Ministério Público, reclamando a condenação dos réus nos termos da denúncia.
3. As razões expendidas pelo combativo representante do Ministério Público, ainda que de alto coturno e apropositadas à espécie, não se avantajam, com a devida vênia, às que deram peso e alento à r. sentença absolutória.
Concedo que ligeiros e pálidos indícios pudesse haver no processado; mas, avaliados segundo as regras da prudência humana, decaem de vigor e não permitem certeza acerca da efetiva culpabilidade do réu.
O Juiz, ainda que se não deva apartar nunca da razão lógica, não pode recorrer só ao processo mental dedutivo para impor condenação, nem substituir a certeza pela mera probabilidade, mesmo quando o acusado seja indivíduo de sombria nomeada nas expansões da delinquência.
Em que pese à valentia dos argumentos expendidos pelo estrênuo Dr. Promotor de Justiça, todo aquele que examinar de espaço e com o ânimo imparcial os presentes autos, esse entrará no conhecimento de que, embora veementes os indícios da culpabilidade dos réus, a prova não é de ordem que lhes permita a condenação.
Deveras, ouvidos em Juízo, negaram a imputação: pertencia a terceira pessoa o material apreendido, cuja origem ilícita desconheciam (fls. 61/64).
Fazem contra os apelantes, é certo, as declarações dos policiais Hermelo Anderson Silva e Jair Jaime Rubira, que lhes apreenderam o material fonográfico (fls. 87/80).
Dá-se, porém, que a só presença do material nos quiosques ocupados pelos réus não é circunstância poderosa para dá-los autores das fraudes.
A simples imputação de crime a alguém não servirá de base para juízo condenatório, se o não confirmarem outros elementos de prova.
No caso, de par com a negativa dos réus, avulta a circunstância de que não há prova segura de que soubessem da origem espúria das coisas apreendidas.
Notável força tem o seguinte passo do primoroso parecer da Procuradoria-Geral de Justiça:
“Entretanto, quanto à ciência da origem irregular dos compact discs e das fitas de audiofonograma, com razão o douto Magistrado. Pessoas simples, presos à economia informal, vendedores dos chamados camelódromos, parece-nos sensato não se ter como plenamente segura a prova da ciência da origem irregular dos objetos portados” (fl. 186).
Ao demais, expressiva corrente jurisprudencial tem sufragado a inteligência de que, para o aperfeiçoamento do tipo do art. 184, § 2º, do Código Penal, não basta a prova da reprodução ilegal: é mister “a identificação das vítimas (artistas ou outros proprietários dos direitos autorais) e o valor do prejuízo” (TJSP; Ap. Crim. nº 993.07.016686-0/Dracena; 2a. Câm.; rel. Ivan Marques; j. 29.9.08).
Poderá dar-se o caso também que a obra tenha caído já no “domínio público”.
Faz igualmente ao intento o ven. acórdão, de que extraio este lance:
“O tipo penal exige que haja violação do direito de autor, do direito de artista, intérprete ou executante ou do direito do produtor de fonograma, sendo, pois, imprescindível para a caracterização da infração penal que sejam identificados os titulares desses direitos ou quem os represente” (TJSP; Ap. Crim. nº 993.08.034711-5/Getulina; 9a. Câm.; rel. Lofrano Filho; j. 29.9.08).
4. É princípio universalmente recebido que a condenação, pelos gravíssimos efeitos que acarreta ao indivíduo, apenas tem lugar se demonstrada, acima de toda a dúvida, a materialidade do fato criminoso, sua autoria e a culpabilidade do agente.
Na espécie, ainda que haja uns longes de incriminação dos réus, falece prova cabal de que tenham concorrido para a prática do delito.
Afirmar tenham eles, realmente, exposto a venda o material apreendido, cuja propriedade atribuíram a terceira pessoa, seria, em certo modo, temerário. O escrúpulo que impressiona o espírito do julgador obriga à solução que favorece os acusados, não à que os submete ao rigor da lei.
No Direito Penal, em pontos de dúvida, prevalece o prolóquio sublime inscrito nos emblemas da Justiça Criminal: “In dubio pro reo”.
Vem a talho a lição do conspícuo Mittermayer:
“Não podendo o juiz sair da dúvida, deverá, no fim de contas, recorrer ao meio ordinário, e admitir como verdadeira a versão mais favorável ao acusado” (Tratado da Prova em Matéria Criminal, 1871, t. II, p. 177; trad. Alberto Antônio Soares).
Em suma: a absolvição dos réus deparava assento legítimo no art. 386, nº VII, do Código de Processo Penal.
Com efeito:
“Sob pena de cometer possível erro judiciário, não pode o Juiz Criminal proferir condenação sem certeza total da autoria e da culpabilidade” (JTACrSP, vol. 54, p. 190).
Em suma: confirmo, por seus próprios e jurídicos fundamentos, a r. sentença que proferiu o distinto e culto Magistrado Dr. Emerson Norio Chinen.
5. Pelo exposto, nego provimento ao recurso.
São Paulo, 30 de abril de 2009
Des. Carlos Biasotti
Relator
Notas:
“Não há, logo, por onde se justifique a cunhagem da nova locução (direito autoral): é mal feita; não se abona com exemplo dos outros idiomas; todas as legislações a evitam; ainda não tem foros de adoção na linguagem do direito” (Obras Completas, vol. XXIX, t. I, p. 224).︎
M. Pinheiro Chagas, A Propriedade Literária, 1879, p. 32; Porto.︎