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Devido processo substantivo

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02/05/2023 às 11:27
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Vias de ampliação do controle de constitucionalidade

Do que ficou dito, verificam-se dois mecanismos básicos dessa ampliação. Conforme a pregação doutrinária, as Cortes Federais e a Suprema Corte ganharam plena discrição para decidir quais direitos fundamentais e até onde estão ao abrigo do Devido Processo, mesmo não estando enumerados no texto constitucional. Na realidade, a 9ª emenda, que lembra o parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 198841, exprime bem esta idéia: “A enumeração de certos direitos na Constituição não será interpretada de modo a negar-se ou restringir-se outros retidos pelo povo.”42 Essa emenda foi inspirada pelo temor existente, na época, de que se aplicasse o princípio consagrado de interpretação estrita (não ampliativa) das enumerações. Mas ela também deixou evidenciada a abertura plena da declaração de direitos. A Doutrina do Devido Processo Substantivo, por outro lado, rompendo uma doutrina interpretativista textual que vigorou nas primeiras décadas de vida dos Estados Unidos da América (textualismo marshalliano), deu às Cortes, com exclusividade, o poder de “identificar” e positivar tais “outros direitos retidos pelo povo” para ampliar o universo dos direitos fundamentais expressos no Bill of Rights.

Às primeiras indagações – quais direitos merecem a guarida constitucional e até onde – a Corte respondeu de duas maneiras: a) Lembre-se que a declaração de direitos, o Bill of Rights, constituído pelas dez primeiras emendas, restringia apenas a ação do governo federal. O próprio texto constitucional continha certas restrições aos estados-membros (Art. I, § 10º e no art. VI), mas todas se mostraram inadequadas para um efetivo controle da produção legislativa estadual.43 Era necessário estender, então, a todos os estados federados, a própria declaração de direitos (Bill of Rights). Isso foi feito por uma doutrina chamada “da incorporação seletiva”44, mediante a qual a Suprema Corte, pela via do Devido Processo da 14ª Emenda, selecionou a maioria das proteções substantivas do Bill of Rights e as tornou obrigatórias para todos os estados-membros e b) utilizando três metodologias de identificação de novos direitos fundamentais, não enumerados na Constituição - alguns autores as denominam teorias dos direitos fundamentais -, a Corte pode dar o status e a proteção constitucionais a quaisquer direitos substantivos que considere sejam tão básicos, naturais e fundamentais a ponto de merecer tal proteção. As metodologias denominam-se: 1) da tradição histórica; 2) do julgamento racional e 3) dos valores nacionais emergentes45. Em todas elas, a Corte vincula o novo direito a uma das três palavras básicas do Devido Processo: vida, liberdade e propriedade. Ou seja, todas as diferentes teorias estribam-se, de alguma forma, na Doutrina do Devido Processo Substantivo. Nas últimas e mais contundentes decisões da Corte, a fonte tem sido a palavra liberdade (direito de privacidade, aborto, prática voluntária de atos homossexuais).

Respondidas aquelas indagações, as Cortes utilizam, então, a revisão judicial para promover a congruência de toda a legislação dos estados-membros com tais direitos substantivos, num fenômeno que Daniel O. Conkle denomina de nacionalização.


Economic Substantive Due Process

Esta expressão é utilizada para denominar uma vertente, um viés ou uma fase da Doutrina do Devido Processo Substantivo, que vigorou entre o final do século XIX e até o final da década de 1930. A Doutrina, nesse período, passou a ser conhecida pelo nome da mais famosa e controvertida decisão expedida na época – Doutrina do Devido Processo Substantivo de estilo Lochner46 - mas no Black´s Law Dictionary ela é chamada de Doutrina do Devido Processo Substantivo Econômico porque preponderava, naquelas décadas, a defesa dos interesses ligados à propriedade e aos contratos, estes vistos como expressão da liberdade (liberdade de contratar). Lochnerizar (to lochnerize) disseminou-se entre os juristas norte-americanos como um verbo para exprimir o modo de ação da Corte naquele período.

Lembre-se que se trata das décadas em que o mundo viu: a) as Constituições ganharem contornos sociais (welfare state), abandonando-se o modelo liberal do Estado moderno e b) estruturar-se a Ciência do Direito em termos formais-estruturalistas kelsenianos, avessa à preocupação com a substância do Direito.

Como não poderia deixar de ser, a Suprema Corte cedeu na aplicação da Doutrina com aquelas preocupações econômico-sociais. É o que anunciam Jerome A. Barron e C. Thomas Dienes, em texto cujo original se encontra na nota de rodapé para maior clareza: “As doutrinas constitucionais em geral não morrem de uma vez só, mas lentamente vão demonstrando sinais de mortalidade. Assim ocorreu com a substantive due process de estilo Lochner.”47 Com se verá mais adiante, entretanto, certos juristas têm alegado que parece haver um ressurgimento daquela Doutrina (ou da Doutrina com aquele viés) em algumas decisões recentes da Suprema Corte.


A Substantive Due Process e as liberdades e direitos civis

Num caso de 1938 (Carolene Products48), anunciou-se a mudança de rumos da Suprema Corte em relação à revisão judicial das leis de caráter econômico e social. Não mais seria aplicada a Doutrina com o viés da era Lochner, dando-se máxima deferência às decisões legislativas no campo econômico e social. As leis desta área não mais seriam submetidas aos severos padrões de escrutínio até então aplicados, no controle de constitucionalidade, bastando que passassem pelo teste básico da razoabilidade e perseguissem um objetivo legítimo do Estado.

Mas, na nota de rodapé de número 4, anunciava-se, também, que a Doutrina do Devido Processo Substantivo continuaria plena em relação aos direitos e liberdades civis. A utilização de dois Padrões de Escrutínio da lei, segundo a matéria tratada, ganhou o nome de duplo-padrão49.

A atuação firme nesta outra direção, entretanto, levou mais de uma década para mostrar-se com força, na década de 1950 (corte Warren). Nesse vácuo da aplicação da força de contenção substantiva do Devido Processo, após 1939, leis e atos governamentais violaram gravemente os direitos civis e passaram incólumes pelo exame de constitucionalidade. Exemplifica-se com os programas de lealdade50 (para ser servidor público tinha-se de jurar não ser membro de nenhum partido ou organização política que advogasse a destruição do governo), com a utilização ilegal de exposição à mídia para dobrar o pensamento de opositores51 (admissão do tribunal da opinião pública, claramente inconstitucional) e a esterilização de criminosos sexuais contumazes.52

Mas os avanços da Doutrina, na segunda metade do século XX e neste início de milênio, são notáveis. Vários direitos, inimagináveis nas décadas anteriores, sem qualquer enumeração no texto constitucional, ganharam guarida e têm sido afirmados pela Suprema Corte. Além dos já mencionados anteriormente, vale citar: direitos das minorias, preservação dos mecanismos básicos do regime democrático, manutenção do equilíbrio federativo como condição protetora do indivíduo etc. A palavra liberdade tem sido o grande guarda-chuva de uma variada gama de novos e surpreendentes direitos substantivos e o conceito de propriedade, por exemplo, foi ampliado para contemplar os “benefícios sociais”.

Mesmo no âmbito econômico-social, parece haver uma volta da Doutrina. Recentes decisões da Suprema Corte têm feito autores se perguntarem se não estaria havendo, de fato, um retorno da Economic Substantive Due Process em algumas áreas atinentes ao desrespeito à propriedade e ao patrimônio (indenizações punitivas, por exemplo, como já comentado anteriormente)53.


Críticas à Doutrina do Devido Processo Substantivo

Como não poderia deixar de ser, as críticas à Doutrina do Devido Processo Substantivo são abundantes e tão duradouras quanto a própria Doutrina.

Os críticos alegam que, em vez das leis que ela derruba, é ela mesmo, a Doutrina, que é inconstitucional. Ela viola o princípio da tripartição dos poderes e, pior, usurpa o poder dos legislativos estaduais quando derruba lei sem expressa violação a texto constitucional. Dizem, ainda, que a interpretação do princípio, feita pela Doutrina, é um verdadeiro oximoro, pois não há como ver nada além de garantia de direitos procedimentais na leitura da cláusula. E aduzem que os direitos não enumerados, reconhecidos pela Corte, são direitos pseudo-constitucionais que não poderiam ser positivados a não ser pelos legisladores estaduais. Finalmente, entre muitos outros ataques, afirmam que só porque algo é um direito humano básico não o torna um direito constitucional que, por definição, é um direito enumerado e não implícito.

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Entre os adeptos da Substantive Due Process nascem muitas defesas: a persistência histórica e a habilidade dinâmica da Doutrina na luta pela defesa de direitos humanos básicos, de forma nacional, de modo a neutralizar os riscos da pulverização federal dos poderes legislativos; não se pode conceber, como determinadamente prega a Doutrina, que um procedimento possa ser considerado justo se injustamente priva uma pessoa de suas liberdades fundamentais; dizem, ainda, tais defensores, entre outras coisas, que a abertura conceitual do Devido Processo é intencional para deixar com as Cortes o poder de interpretá-la.


Considerações Finais

A expressão Substantive Due Process denomina, precipuamente, uma Doutrina constitucional que, partindo de antigas idéias inglesas, afirma que o Devido Processo não se ocupa apenas de procedimentos, mas também da parte substantiva ou substancial de leis e atos estatais. O ocupante do poder, num Estado Constitucional de Direito, está controlado quanto ao que pode fazer e, quando e se autorizado, deve seguir procedimentos que se afinem com o Direito.

A partir da afirmação do alcance substantivo do Devido Processo, a Doutrina estrutura-se num conjunto lógico de recomendações consideradas essenciais para dar efetividade máxima ao princípio. Algumas delas foram objeto de consideração acima. Muitas outras mereceriam menção como: a mobilidade constitucional54, o ativismo judicial, o combate à tirania das maiorias, a proteção das minorias, o papel crucial político-moral entregue ao Poder Judiciário num verdadeiro Estado de Direito, a vinculação necessária do Direito com a idéia de correção normativa e a moralidade55 etc.

Desde 1988, o Devido Processo faz parte do universo constitucional formal do Brasil, trazido das ordens jurídicas anglo-saxônicas.

Este artigo procurou trazer algumas idéias essenciais sobre a visão do princípio, substantivamente tomado, visando a provocar o jurista brasileiro para contemplá-lo pelo ângulo considerado mais relevante nos Estados Unidos da América. Do conhecimento das idéias, de sua lógica e propósitos e das ricas e fecundas aplicações feitas pela Suprema Corte norte-americana, certamente se abrirão caminhos para que se faça, também no Brasil, deste princípio maior da proteção individual, um efetivo instrumento a serviço dos direitos humanos fundamentais.


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Sobre o autor
S. Tavares-Pereira

Mestre em Ciência Jurídica pela Univali/SC e pós-graduado em Direito Processual Civil Contemporâneo. Autor de "Devido processo substantivo (2007)" e de <b>"Machine learning nas decisões. O uso jurídico dos algoritmos aprendizes (2021)"</b>. Esta obra foi publicada em inglês ("Machine learning and judicial decisions. Legal use of learning algorithms." Autor, também, de inúmeros artigos da área de direito eletrônico, filosofia do Direito, direito Constitucional e Direito material e processual do trabalho. Várias participações em obras coletivas. Teoriza o processo eletrônico a partir do marco teórico da Teoria Geral dos Sistemas Sociais de Niklas Luhmann. Foi programador de computador, analista de sistemas, Juiz do Trabalho da 12ª região. e professor: em tecnologia lecionou lógica de programação, linguagem de programação e banco de dados; na área jurídica, lecionou Direito Constitucional em nível de pós-graduação e Direito Constitucional e Direito Processual do Trabalho em nível de graduação. Foi juiz do trabalho titular de vara (atualmente aposentado).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, S. Tavares-. Devido processo substantivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7244, 2 mai. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/103894. Acesso em: 23 nov. 2024.

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