Introdução
A consolidação de um verdadeiro Estado Democrático de Direito perpassa pelo respeito à diversidade da sua população, com tratamento formal e materialmente igualitário de todos (art. 5º, I, da CF). O alcance desse estágio de amadurecimento comunitário pressupõe a valorização da dignidade humana em todas as relações sociais, além da adoção de um modelo de políticas públicas amparado nos pilares da “promoção da igualdade de oportunidades por meio de ações afirmativas” e “repressão às práticas discriminatórias ilícitas”.
As práticas discriminatórias ilícitas são condutas de quaisquer naturezas que, fundadas em critérios injustamente desqualificantes (Convenção 111, da OIT), tenham o propósito (discriminação direta) ou o efeito (discriminação indireta) de impedir a fruição equânime dos direitos fundamentais, nos termos dos artigos VII, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, 2º e 3º, do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, art. 3º, do Pacto Internacional sobre Direito Civis e Políticos, 1º e 24, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos r 3º, do Protocolo de San Salvador.
Considerando que a discriminação indireta ocorre muitas vezes de maneira não explícita, a sua comprovação encontra maior dificuldade, de modo que os dados estatísticos são relevantes ferramentas probatórias para fins de demonstração desse ato ilícito.
Discriminação indireta
A discriminação indireta está aparentemente baseada em elementos neutros, mas, na prática, gera um reflexo especialmente discriminatório sobre algum grupo específico. Essa tese de efeito discriminatório indireto foi construída com auxílio da teoria do impacto desproporcional (“disparate impact douctrine”), segundo a qual também são consideradas discriminatórias as condutas que acarretem impacto desarrazoado sobre pessoas específicas.
Referida teoria foi mundialmente difundida após a utilização pela Suprema Corte Americana no caso “Griggs Vs. Duke Power Company”. Essa empresa americana de distribuição de energia elétrica utilizava testes de conhecimentos gerais como critério para promoção no emprego, o que em princípio era uma medida aparentemente neutra. No entanto, percebeu-se que pessoas negras possuíam extrema dificuldade de aprovação nos mencionados testes, ante a baixa qualidade da formação básica que receberam, circunstância que gerou um impacto desproporcional sobre esse grupo, configurando situação discriminatória indireta.
Da mesma forma, também há tradicional referência ao caso “Departamento habitacional do Texas” como exemplo de situação de discriminação indireta. Critérios aparentemente neutros utilizados pelo referido departamento geraram um impacto negativo desproporcional sobre negro e pobres.
Na jurisprudência da Suprema Corte brasileira, embora a teoria do impacto desproporcional não tenha sido expressamente mencionada no voto do relator, o caso do “teto do salário maternidade” é um exemplo nítido de incidência dessa tese. O STF reconheceu que a atribuição de responsabilidade ao empregador pelo pagamento do excedente do salário maternidade em relação ao teto do RGPS poderia provocar preterição de mulheres no mercado de trabalho.
Todos os exemplos práticos acima referidos são de difícil comprovação, notadamente quando a controvérsia estiver associada a uma relação de emprego, cuja assimetria da condição socioeconômica das partes impede o acesso do trabalhador a meios de provas efetivos. Diante desse cenário, a instrução probatória deve ser dirigida à luz do devido processo legal substancial e da ampla admissibilidade de meios probatórios (art. 5º, LV, da CF), que são corolários do direito ao processo justo e acesso à justiça efetiva (art. 5º, XXXV, da CF), devendo ser admitido, por conseguinte, a prova estatística como ferramenta processual apta a demonstrar a discriminação indireta.
Prova estatística
Vigora no direito processual brasileiro o princípio da “atipicidade dos meios de prova”, consoante art. 369, do CPC. Logo, as partes têm o direito fundamental subjetivo de utilizar todos os meios probatórios legais e moralmente legítimos, ainda que não estejam específica e expressamente previstos em algum diploma normativo.
Assim, somando a “teoria da atipicidade das provas” ao cenário de “dificuldade da produção de prova acerca da discriminação indireta nas relações de trabalho”, é inarredável a conclusão sobre a possibilidade de utilização da prova estatística. Trata-se de prova científica que se baseia em dados estatísticos de probabilidade e com extrema assertividade, revelando-se notoriamente fidedigna. Cite-se, por exemplo, o teste de DNA para fins de investigação de paternidade, que é uma prova estatística amplamente aceita.
Além disso, a utilização de dados demográficos como meio de prova (prova estatística) já se encontra expressamente prevista no estatuto da igualdade racial, conforme art. 42, da Lei 12.288/2010, podendo ser utilizada por analogia para quaisquer outras espécies de discriminação.
Utilização da prova estatística pelo Ministério Público do Trabalho
O Ministério Público do Trabalho se valeu, recentemente, de dados estatísticos colhidos por renomado instituto científico para atuação em caso envolvendo situação de discriminação indireta. Foi observada segregação relevante de gênero e raça nas instituições bancárias, na medida em que esses grupos eram nitidamente preteridos nas contratações. Essa conclusão foi obtida através de análise estatística, comparando as características fenotípicas dos trabalhadores contratados com a população em geral.
Embora a referida ação judicial não tenha obtido êxito sob o ponto de vista deste processo em específico, ante a postura refratária do Poder Judiciário em relação à admissibilidade dos dados demográficos como meio de prova, a iniciativa do parquet rendeu frutos. Isso porque a FEBRABAN iniciou estudos sobre o tema e a discriminação indireta passou a integrar a pauta de discussão das instituições bancárias, cenário bastante satisfatório sob a ótica da conscientização das instituições acerca da igualdade de raça e gênero.
Conclusão
Com fulcro naos fundamentos apresentados ao longo deste trabalho, é inarredável a conclusão no sentido de que a prova estatística possui cientificidade e fidedignidade, de modo que não há razão jurídica para a sua não admissão como meio de prova. Demais disso, essa ferramenta probatória consiste em um relevante instrumento capaz de descortinar situações que envolvam discriminação indireta.
Referências bibliográficas
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