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Direito Penal:

visão crítico-metodológica

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22/09/2007 às 00:00
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6. Lógica jurídica

Das divergências no foro criminal, assim como na doutrina e práticas sociais, tão visíveis e tão palpáveis inclusive nos dias de hoje, tratei exaustivamente em outros textos e trabalhos acadêmicos. Lembro-as agora tão somente a título de ilustração genérica do que acabo de afirmar. Para que servem, afinal, as técnicas hermenêuticas se ninguém se entende na hora de aplicá-las?

Ora, toda teoria jurídica, por ser teoria, começa dogmática e arbitrariamente de si mesma. Trata-se de questão prévia, de cunho racional e filosófico, que independe para aceitação do ideário político de quem quer que seja. A lógica, na sua pureza, dispensa os aplausos e resiste, incólume, aos apupos.

Qual a voltagem elétrica "verdadeira": 110 ou 220 volts? A distância entre dois pontos mede-se por metros, braças, pés ou polegadas? E automóvel, no que tange a combustível, exige sempre e necessariamente gasolina? A importância prática da língua inglesa fulmina, como loucura auditiva, como ilusão de ótica, as palavras e sons da língua portuguesa? Não, evidentemente. Se quisermos simplificar poderemos então perceber, sem muito esforço, uma eventual subjetividade soberana em termos de voltagem (220), sistema de medição (metro), combustível (gasolina) e palavras e sons (português). Uma subjetividade, é claro, mais ou menos compatível com a realidade objetiva de cada coisa, idéia ou produto, em sua individualidade.

Mas a premissa, o ponto de partida, como nas regras de qualquer jogo, de qualquer brinquedo, de qualquer esporte, envolve dogmatismo prévio. Alguém, ou um grupo de pessoas, elabora essas regras (sistema). E nada muda, no plano lógico, em havendo receptividade social às diretivas ou instruções. Só que essa receptividade, como prática, já traz consigo uma nova realidade associada a um outro sistema, ou seja, daqueles que se dispõem a executar (práxis) as regras ministradas (teoria). Não é difícil notar, com o passar do tempo e a presença de novos fatos, de novos atores, quer o abandono das normas, relegadas ao ostracismo, quer a intromissão e assimilação de tantas outras, ao sabor das circunstâncias.

Existe lógica semelhante no terreno jurídico. É a lógica dialética, no sentido de inevitável interação entre sujeito e objeto. O direito nos transporta para muitas realidades: voltagens diversificadas, múltiplos sistemas de medição, vários combustíveis, uma infinidade de línguas vivas e mortas. A construção do direito, em seu nascedouro, envolve também um ato de vontade mesmo de quem se faz passar por simples intérprete ou operador de preexistente sistema normativo. Toda a grandeza e tragédia do direito se esconde exatamente na escolha ou imposição fática de uma regra de conduta que se supõe ou se afirma, se for o caso, ditada pelos deuses, pela razão, pelo bom senso, por algum sistema objetivamente normativo.

Ensina Chaïm Perelman: "O que há de especificamente jurídico no raciocínio do juiz não é de modo algum a dedução formalmente correta de uma conclusão a partir de premissas – nisso a dedução em direito nada tem de particular – mas são os raciocínios que conduzem ao estabelecimento dessas premissas no âmbito de um sistema de direito em vigor" (Ética e direito, trad. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 481).

O importante, na lógica jurídica, não é a coerência dedutiva, exigência mais do que óbvia em qualquer atividade prática em que se pretenda um mínimo de tratamento igualitário (justiça formal). O importante é o mecanismo de acesso à norma geral positivada. Num plano mais ou menos utópico, à norma jurídica justa em si mesma (justiça material).

Voltando à realidade: também a regra de conduta, objetivada em lei, é reflexo de uma premissa (teoria). E o intérprete? Ele igualmente já é uma premissa, uma teoria, devendo ser visto como um sistema ambulante previamente programado. Ao buscar uma norma ele o faz a partir de si próprio, de seus valores, de sua capacidade intelectual, de suas limitações. Deixa-se levar por ele mesmo na execução e conclusão de uma tarefa que se revela, no fundo, pessoal e intransferível.

Estudar, pois, a estrutura jurídica do crime a partir de qualquer teoria é, inevitavelmente, inventá-lo no plano das idéias, valendo a tentativa como simples obra racional, desapegada de realidade objetiva, histórico-sociológica. O crime enquanto realidade normativa concreta ou potencial é que deve comandar o aparato conceitual voltado para sua apreensão intelectiva. Tipo, tipicidade, culpa, dolo, ilícito, ilicitude, culpabilidade, reprovabilidade, censurabilidade, ação, imputação, omissão, finalismo etc. são simples expressões lingüísticas, são instrumentos úteis para o diálogo e comunicação jurídico-social. E só. Não têm vida própria. Seu significado é aleatório, depende de quem os inventa ou utiliza. Não é à toa que mudam de tamanho e de lugar segundo o grau de arrependimento de seus artífices ou de reordenamento tático de cada usuário ou receptador. E isso continua ocorrendo, com desenvoltura, ao longo desta primeira década do século 21.

Donde o erro – é bom insistir – de método, a menos que seus mentores admitam que trabalham hipoteticamente e nada mais pretendem do que retratar, para fins didáticos ou de comunicação, uma proposta de abordagem, um ponto de vista, um modo pessoal de organização das próprias idéias e concepções.

A mesma pessoa pode encarnar, por exemplo, a figura do professor e do juiz de direito. Em seu ministério pedagógico, diferentemente do que se passa no exercício da magistratura, ela desempenha papel de observador e, não, de operador do direito. A responsabilidade crítica do professor, de engajamento com a verdade objetiva, não se confunde com o dever ético do juiz de contribuir concretamente para a consolidação e desenvolvimento da justiça.

Colocada assim a questão, diminuem os riscos de alienação dos estudantes ou dos jovens bacharéis, que devem ser insistentemente alertados para a irrelevância científica de toda e qualquer teoria ôntico-ontológica do direito. Livrar-se-iam, além disso, da inútil obrigação de acompanhar o caminho tortuoso de infindáveis retificações conceituais referentes à estrutura jurídica do crime, cujo conteúdo – não pode haver dúvida – se constrói no interior do grupo social.


7.Caminhos tortuosos

Já vimos quem gosta desses caminhos tortuosos: são os penalistas alemães e seus entusiasmados seguidores, na Europa e América Latina, pelo menos. Mas os resultados são pífios, as conseqüências se mostram não raro desastrosas. Na hora da verdade – solução tópica dos casos reais ou hipotéticos – os penalistas simplesmente não se entendem, ainda que agrupados em escolas, correntes ou doutrinas.

E por que não se entendem?

Porque o cerne do direito está no conteúdo valorativo das opções e, não, no vazio das fórmulas estéreis, incapazes de adaptação e sobrevivência. Tanta sabedoria germânica, a contar por exemplo de Ernst Beling, em 1906 – teoria do tipo – resultou em quê, na prática?

Ouçamos Eugenio Raúl Zaffaroni: "A judicatura alemã não é explicável fora do contexto do Estado alemão e de seu modelo prussiano. Neste âmbito deve-se entender que sem Bismarck não teria existido Hitler. O Estado prussiano organizou sua burocracia de modo vertical e sobre a base de um modelo de inteira submissão de seus operadores" (Poder judiciário: crise, acertos e desacertos. São Paulo: RT, 1995, p. 150). Mais adiante: "Como é lógico, esta estrutura, com tal formação, deveria produzir juízes dóceis e extremamente reacionários, porque não se tratava de uma seleção ou discriminação ideológica, mas de uma verdadeira formação ideológica, uma espécie de ''lavagem cerebral'' bastante prolongada" (p. 150/151). Leia-se também este trecho: "Os juízes do império ampararam abertamente os terroristas de extrema-direita, perseguiram os social-democratas, comunistas e judeus, trataram com inaudita benignidade Hitler e seu grupelho originário, encobriram os homicídios de seus sectários e, definitivamente, não fizeram mais do que ampliar o espaço pelo qual circulou a ruptura final da República em 1933. Não foi outra a magistratura que debutou com o escandaloso processo do incêndio no Parlamento e que, daí em diante, incorreu nas legitimações e aberrações que conhecemos" (p. 151).

Compreensível, assim, a fuga metafísica do planeta, o refúgio nas estrelas, o conforto intelectual de teorias sobre o crime desvinculadas de qualquer concretude histórica. Disso tratou o finalismo, que "entrou na arena com um saber homogêneo sobre nada menos que o núcleo do direito penal – ação, antijuridicidade e culpa – trazendo a firme convicção de que este saber se assentava sobre o Ser", esclarece Winfried Hassemer (História das idéias penais na Alemanha do pós-guerrra, RBCCrim nº 6. São Paulo: RT, 1994, p. 45). E ainda "estendeu-se por minúcias como a localização do dolo na estrutura do crime, as relações da autoria com a participação e a omissão imprópria" (idem, ibidem).

Ao legislador, pois, de curvar-se ao modelo universal objetivamente justo (direito natural).

Curiosamente, o próprio Zaffaroni, convencido da "funcionalidade" de um sistema de punição injusto, porque seletivo, e desumano, porque genocida, disseca uma outra anatomia ontológica, a da pena, cujo conceito "não pode ser proporcionado por nenhum discurso legitimante e tampouco pode ficar em mãos do legislador". (Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 202). Se o sistema penal "é um mero fato de poder" (p. 202); se "onticamente falando só existem conflitos arbitrariamente selecionados" (p. 247); se toda pena –uma dor inútil – é irracional, cabe o realinhamento de princípios éticos que limitem juridicamente a violência do poder.

A lógica, no entanto, permanece de pé. A teoria da ação finalista (e tantas outras) vale por si mesma, não vale como expressão da complexa realidade jurídico-social. Seus defensores, aliás, não se acertam, divergem a todo momento, sobretudo porque lhes falta – em sua própria teoria – exatamente o essencial: a intuição, a apreensão microscópica do conteúdo político de cada átomo do direito em sua universal objetividade. Vê-se que também os doutos, nesta matéria, não se libertam de si mesmos e pagam o preço de sua condição humana. Ubi jus, ibi contradictio.

Estende-se o raciocínio para as novíssimas teorias dogmáticas, trazidas do Velho Mundo: imputação objetiva, garantismo, funcionalismo etc. Não há como guardar ilusões quanto à possibilidade científica de se construir um direito penal more geometrico, isento de vaguezas e contradições pragmáticas, sintáticas ou semânticas. Como evitar o desencadeamento lógico das tentativas de explicação contextual ou intra-sistemática? Elas suscitam, de seu turno, outras explicações talvez ainda mais confusas, todas elas carregadas dos vícios (imprecisões) inerentes à linguagem humana. Não impedem os efeitos colaterais de novas ambigüidades, que aumentam o grau de injustiça formal entranhado em qualquer sistema de direito positivo.

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8.Realismo crítico

Está na hora de se mudar, em parte, o discurso, ao menos no âmbito pedagógico. Se direito penal se constrói com rigorismo técnico e preciosismo semântico, por que o tribunal do júri? Por que o duplo grau de jurisdição? Por que, além disso, a chance de novos recursos? Por que o "desperdício" de um sistema judicial colegiado? Por que as decisões contra legem, mesmo em prejuízo do réu?

Dentre outros motivos, porque inexiste neutralidade argumentativa ou decisória e sobretudo porque não há forma de conceituar "o significado do juridicamente e/ou politicamente correto ou errado", como adverte, em outro contexto, o professor Lédio Rosa de Andrade "(Introdução ao direito alternativo brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, p. 331/332).

Essa impossibilidade conceitual vale para o próprio Poder Legislativo, encarregado da definição dos crimes e cominação das penas. E persiste em relação à dogmática jurídica, com ou sem os temperos críticos das correntes de direito alternativo. "Perante o caso concreto, cada jurista, de acordo com sua consciência, com as normas em vigor, com os costumes, com a jurisprudência, com a doutrina, com a economia, com a política, com o social, etc., decidirá o que é mais correto". Trata-se de escolha "condicionada por vários fatores e não só pelo desejo pessoal do jurista" (ob. cit., p. 332).

Ouçamos François Rigaux: "O juiz é, por múltiplas razões, coagido a fazer obra criadora. Primeiro, porque toda norma tem necessidade de ser interpretada. Depois, porque nenhuma codificação poderia prever a diversidade das situações de vida, e a previsão do mais sábio dos legisladores é frustrada pelo progresso das técnicas, pela modificação das condições econômicas e sociais, pela evolução dos costumes e pela variação da moral resultante disso" (A lei dos juízes [ trad.] . São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 185).

O tema é antigo. Sob a forma de diálogo, já aludia Platão à importância das leis, acrescentando, porém, que mais importante não é dar força à legislação, mas ao homem real, dotado de prudência. É que "a lei jamais seria capaz de estabelecer, ao mesmo tempo, o melhor e o mais justo para todos, de modo a ordenar as prescrições mais convenientes. A diversidade que há entre os homens e as ações e, por assim dizer, a permanente instabilidade das coisas humanas, não admite em nenhuma arte, e em momento algum, um absoluto que valha para todos os casos e para todos os tempos" (Político, in Os Pensadores [trad.]. São Paulo: Abril Cultural, 1972, p. 250).

Além disso, por mais clara que seja, a lei pode ser descartada. Ela não passa de um dentre muitos outros instrumentos utilizados como fonte ou inspiração do direito penal possível. Nessa ótica, suplanta-se ou amplia-se o leque de opções do modelo hermenêutico de Hans Kelsen. Mais do que uma vontade exegética proporcionada pela própria lei, ou pela constituição política, prevalece a vontade final do intérprete com poder decisório, erigido à condição de fonte primária de construção do direito.

As divergências doutrinárias e jurisprudenciais não deixam a menor dúvida quanto a essa possibilidade teórica. E elas se repetem, se reciclam, se adaptam, se transmudam, em toda e qualquer campo do direito penal.

Veja-se a posição de Paulo de Souza Queiroz, que se mostra favorável a um direito penal mínimo. A certa altura, em sua crítica à seletividade e desigualdade do sistema, afirma com veemência retórica: "... ainda que o próprio Deus ditasse as leis, ainda que os juízes fossem santos, ainda que promotores de justiça fossem super-homens, ainda que delegados e policiais formassem um exército de querubins, ainda assim o direito – e o direito penal em particular – seria um instrumento de desigualdade. Porque a igualdade formal ou jurídica não anula a desigualdade material que lhe subjaz". Mais adiante: não se trata "de um problema circunstancial, que se possa vencer pela boa vontade de legisladores ou aplicadores da lei: é um problema estrutural" (Do caráter subsidiário do direito penal. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 30).

Tudo isso nos remete, mais uma vez, à conscientização crítica de um direito penal de várias fontes, dinamicamente interligadas.

Como enfrentar o problema? À luz de um realismo crítico, na síntese de Luiz Fernando Coelho, "o ponto de partida, e também o de chegada, é a evidência de que a realidade somos nós, o homem como ser individual e social, como consciência, trabalho e criação. Não um cogito, ergo sum, mas um sum, ergo cogito" ("O pensamento crítico no direito", Seqüência: estudos jurídicos e políticos, n.° 30. Florianópolis: CPGD/UFSC, jun/1995, p. 74). O esforço de depuração técnica dos conceitos e normas, a preocupação de objetividade milimétrica quanto aos contornos e limites de cada tipo, a busca incessante de clareza institucional – estou adaptando, por minha conta e risco, o pensamento filosófico do autor – parecem conectados à ilusão de um fenômeno jurídico em si, separado de um "contexto multidisciplinar" por sua vez embebido de "realidade humana" (idem, ibidem). Parecem também atrelados à crença de que o direito, com a incorporação legislativa de "modernos" princípios, é ou pode vir a ser único, racional, objetivo, pleno, claro, preciso.

Mas tudo se passa ao reverso: o direito é e continuará sendo múltiplo, diversificado, emocional, intuitivo, lacunoso, confuso, contraditório. Os acréscimos e diferenciações trazidos à lei não se desfazem de efeitos colaterais indesejáveis, e até imprevisíveis, em face de paralelas alterações objetivas do sistema como um todo. E este ainda mais se complica a partir do instante em que se vê envolvido e dominado pelas armadilhas da dogmática e sutilezas argumentativas dos operadores jurídicos, oficiais ou oficiosos. O direito é um fato, um fato normativo, e como tal há de continuar a ser visto por quem já se libertou das cartilhas metafísicas paradoxalmente redigidas em linguagem humana, linguagem essa que a tudo relativiza, exceto em relação a si mesma, enquanto enunciado teórico-explicativo.

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Sobre o autor
João José Caldeira Bastos

professor de Direito Penal da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, professor de Direito Penal (aposentado) da Universidade Federal de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BASTOS, João José Caldeira. Direito Penal:: visão crítico-metodológica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1543, 22 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10430. Acesso em: 18 abr. 2024.

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