6. Lógica jurídica
Das divergências no foro criminal, assim como na doutrina e práticas sociais, tão visíveis e tão palpáveis inclusive nos dias de hoje, tratei exaustivamente em outros textos e trabalhos acadêmicos. Lembro-as agora tão somente a título de ilustração genérica do que acabo de afirmar. Para que servem, afinal, as técnicas hermenêuticas se ninguém se entende na hora de aplicá-las?
Ora, toda teoria jurídica, por ser teoria, começa dogmática e arbitrariamente de si mesma. Trata-se de questão prévia, de cunho racional e filosófico, que independe para aceitação do ideário político de quem quer que seja. A lógica, na sua pureza, dispensa os aplausos e resiste, incólume, aos apupos.
Qual a voltagem elétrica "verdadeira": 110 ou 220 volts? A distância entre dois pontos mede-se por metros, braças, pés ou polegadas? E automóvel, no que tange a combustível, exige sempre e necessariamente gasolina? A importância prática da língua inglesa fulmina, como loucura auditiva, como ilusão de ótica, as palavras e sons da língua portuguesa? Não, evidentemente. Se quisermos simplificar poderemos então perceber, sem muito esforço, uma eventual subjetividade soberana em termos de voltagem (220), sistema de medição (metro), combustível (gasolina) e palavras e sons (português). Uma subjetividade, é claro, mais ou menos compatível com a realidade objetiva de cada coisa, idéia ou produto, em sua individualidade.
Mas a premissa, o ponto de partida, como nas regras de qualquer jogo, de qualquer brinquedo, de qualquer esporte, envolve dogmatismo prévio. Alguém, ou um grupo de pessoas, elabora essas regras (sistema). E nada muda, no plano lógico, em havendo receptividade social às diretivas ou instruções. Só que essa receptividade, como prática, já traz consigo uma nova realidade associada a um outro sistema, ou seja, daqueles que se dispõem a executar (práxis) as regras ministradas (teoria). Não é difícil notar, com o passar do tempo e a presença de novos fatos, de novos atores, quer o abandono das normas, relegadas ao ostracismo, quer a intromissão e assimilação de tantas outras, ao sabor das circunstâncias.
Existe lógica semelhante no terreno jurídico. É a lógica dialética, no sentido de inevitável interação entre sujeito e objeto. O direito nos transporta para muitas realidades: voltagens diversificadas, múltiplos sistemas de medição, vários combustíveis, uma infinidade de línguas vivas e mortas. A construção do direito, em seu nascedouro, envolve também um ato de vontade mesmo de quem se faz passar por simples intérprete ou operador de preexistente sistema normativo. Toda a grandeza e tragédia do direito se esconde exatamente na escolha ou imposição fática de uma regra de conduta que se supõe ou se afirma, se for o caso, ditada pelos deuses, pela razão, pelo bom senso, por algum sistema objetivamente normativo.
Ensina Chaïm Perelman: "O que há de especificamente jurídico no raciocínio do juiz não é de modo algum a dedução formalmente correta de uma conclusão a partir de premissas – nisso a dedução em direito nada tem de particular – mas são os raciocínios que conduzem ao estabelecimento dessas premissas no âmbito de um sistema de direito em vigor" (Ética e direito, trad. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 481).
O importante, na lógica jurídica, não é a coerência dedutiva, exigência mais do que óbvia em qualquer atividade prática em que se pretenda um mínimo de tratamento igualitário (justiça formal). O importante é o mecanismo de acesso à norma geral positivada. Num plano mais ou menos utópico, à norma jurídica justa em si mesma (justiça material).
Voltando à realidade: também a regra de conduta, objetivada em lei, é reflexo de uma premissa (teoria). E o intérprete? Ele igualmente já é uma premissa, uma teoria, devendo ser visto como um sistema ambulante previamente programado. Ao buscar uma norma ele o faz a partir de si próprio, de seus valores, de sua capacidade intelectual, de suas limitações. Deixa-se levar por ele mesmo na execução e conclusão de uma tarefa que se revela, no fundo, pessoal e intransferível.
Estudar, pois, a estrutura jurídica do crime a partir de qualquer teoria é, inevitavelmente, inventá-lo no plano das idéias, valendo a tentativa como simples obra racional, desapegada de realidade objetiva, histórico-sociológica. O crime enquanto realidade normativa concreta ou potencial é que deve comandar o aparato conceitual voltado para sua apreensão intelectiva. Tipo, tipicidade, culpa, dolo, ilícito, ilicitude, culpabilidade, reprovabilidade, censurabilidade, ação, imputação, omissão, finalismo etc. são simples expressões lingüísticas, são instrumentos úteis para o diálogo e comunicação jurídico-social. E só. Não têm vida própria. Seu significado é aleatório, depende de quem os inventa ou utiliza. Não é à toa que mudam de tamanho e de lugar segundo o grau de arrependimento de seus artífices ou de reordenamento tático de cada usuário ou receptador. E isso continua ocorrendo, com desenvoltura, ao longo desta primeira década do século 21.
Donde o erro – é bom insistir – de método, a menos que seus mentores admitam que trabalham hipoteticamente e nada mais pretendem do que retratar, para fins didáticos ou de comunicação, uma proposta de abordagem, um ponto de vista, um modo pessoal de organização das próprias idéias e concepções.
A mesma pessoa pode encarnar, por exemplo, a figura do professor e do juiz de direito. Em seu ministério pedagógico, diferentemente do que se passa no exercício da magistratura, ela desempenha papel de observador e, não, de operador do direito. A responsabilidade crítica do professor, de engajamento com a verdade objetiva, não se confunde com o dever ético do juiz de contribuir concretamente para a consolidação e desenvolvimento da justiça.
Colocada assim a questão, diminuem os riscos de alienação dos estudantes ou dos jovens bacharéis, que devem ser insistentemente alertados para a irrelevância científica de toda e qualquer teoria ôntico-ontológica do direito. Livrar-se-iam, além disso, da inútil obrigação de acompanhar o caminho tortuoso de infindáveis retificações conceituais referentes à estrutura jurídica do crime, cujo conteúdo – não pode haver dúvida – se constrói no interior do grupo social.
7.Caminhos tortuosos
Já vimos quem gosta desses caminhos tortuosos: são os penalistas alemães e seus entusiasmados seguidores, na Europa e América Latina, pelo menos. Mas os resultados são pífios, as conseqüências se mostram não raro desastrosas. Na hora da verdade – solução tópica dos casos reais ou hipotéticos – os penalistas simplesmente não se entendem, ainda que agrupados em escolas, correntes ou doutrinas.
E por que não se entendem?
Porque o cerne do direito está no conteúdo valorativo das opções e, não, no vazio das fórmulas estéreis, incapazes de adaptação e sobrevivência. Tanta sabedoria germânica, a contar por exemplo de Ernst Beling, em 1906 – teoria do tipo – resultou em quê, na prática?
Ouçamos Eugenio Raúl Zaffaroni: "A judicatura alemã não é explicável fora do contexto do Estado alemão e de seu modelo prussiano. Neste âmbito deve-se entender que sem Bismarck não teria existido Hitler. O Estado prussiano organizou sua burocracia de modo vertical e sobre a base de um modelo de inteira submissão de seus operadores" (Poder judiciário: crise, acertos e desacertos. São Paulo: RT, 1995, p. 150). Mais adiante: "Como é lógico, esta estrutura, com tal formação, deveria produzir juízes dóceis e extremamente reacionários, porque não se tratava de uma seleção ou discriminação ideológica, mas de uma verdadeira formação ideológica, uma espécie de ''lavagem cerebral'' bastante prolongada" (p. 150/151). Leia-se também este trecho: "Os juízes do império ampararam abertamente os terroristas de extrema-direita, perseguiram os social-democratas, comunistas e judeus, trataram com inaudita benignidade Hitler e seu grupelho originário, encobriram os homicídios de seus sectários e, definitivamente, não fizeram mais do que ampliar o espaço pelo qual circulou a ruptura final da República em 1933. Não foi outra a magistratura que debutou com o escandaloso processo do incêndio no Parlamento e que, daí em diante, incorreu nas legitimações e aberrações que conhecemos" (p. 151).
Compreensível, assim, a fuga metafísica do planeta, o refúgio nas estrelas, o conforto intelectual de teorias sobre o crime desvinculadas de qualquer concretude histórica. Disso tratou o finalismo, que "entrou na arena com um saber homogêneo sobre nada menos que o núcleo do direito penal – ação, antijuridicidade e culpa – trazendo a firme convicção de que este saber se assentava sobre o Ser", esclarece Winfried Hassemer (História das idéias penais na Alemanha do pós-guerrra, RBCCrim nº 6. São Paulo: RT, 1994, p. 45). E ainda "estendeu-se por minúcias como a localização do dolo na estrutura do crime, as relações da autoria com a participação e a omissão imprópria" (idem, ibidem).
Ao legislador, pois, de curvar-se ao modelo universal objetivamente justo (direito natural).
Curiosamente, o próprio Zaffaroni, convencido da "funcionalidade" de um sistema de punição injusto, porque seletivo, e desumano, porque genocida, disseca uma outra anatomia ontológica, a da pena, cujo conceito "não pode ser proporcionado por nenhum discurso legitimante e tampouco pode ficar em mãos do legislador". (Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 202). Se o sistema penal "é um mero fato de poder" (p. 202); se "onticamente falando só existem conflitos arbitrariamente selecionados" (p. 247); se toda pena –uma dor inútil – é irracional, cabe o realinhamento de princípios éticos que limitem juridicamente a violência do poder.
A lógica, no entanto, permanece de pé. A teoria da ação finalista (e tantas outras) vale por si mesma, não vale como expressão da complexa realidade jurídico-social. Seus defensores, aliás, não se acertam, divergem a todo momento, sobretudo porque lhes falta – em sua própria teoria – exatamente o essencial: a intuição, a apreensão microscópica do conteúdo político de cada átomo do direito em sua universal objetividade. Vê-se que também os doutos, nesta matéria, não se libertam de si mesmos e pagam o preço de sua condição humana. Ubi jus, ibi contradictio.
Estende-se o raciocínio para as novíssimas teorias dogmáticas, trazidas do Velho Mundo: imputação objetiva, garantismo, funcionalismo etc. Não há como guardar ilusões quanto à possibilidade científica de se construir um direito penal more geometrico, isento de vaguezas e contradições pragmáticas, sintáticas ou semânticas. Como evitar o desencadeamento lógico das tentativas de explicação contextual ou intra-sistemática? Elas suscitam, de seu turno, outras explicações talvez ainda mais confusas, todas elas carregadas dos vícios (imprecisões) inerentes à linguagem humana. Não impedem os efeitos colaterais de novas ambigüidades, que aumentam o grau de injustiça formal entranhado em qualquer sistema de direito positivo.
8.Realismo crítico
Está na hora de se mudar, em parte, o discurso, ao menos no âmbito pedagógico. Se direito penal se constrói com rigorismo técnico e preciosismo semântico, por que o tribunal do júri? Por que o duplo grau de jurisdição? Por que, além disso, a chance de novos recursos? Por que o "desperdício" de um sistema judicial colegiado? Por que as decisões contra legem, mesmo em prejuízo do réu?
Dentre outros motivos, porque inexiste neutralidade argumentativa ou decisória e sobretudo porque não há forma de conceituar "o significado do juridicamente e/ou politicamente correto ou errado", como adverte, em outro contexto, o professor Lédio Rosa de Andrade "(Introdução ao direito alternativo brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, p. 331/332).
Essa impossibilidade conceitual vale para o próprio Poder Legislativo, encarregado da definição dos crimes e cominação das penas. E persiste em relação à dogmática jurídica, com ou sem os temperos críticos das correntes de direito alternativo. "Perante o caso concreto, cada jurista, de acordo com sua consciência, com as normas em vigor, com os costumes, com a jurisprudência, com a doutrina, com a economia, com a política, com o social, etc., decidirá o que é mais correto". Trata-se de escolha "condicionada por vários fatores e não só pelo desejo pessoal do jurista" (ob. cit., p. 332).
Ouçamos François Rigaux: "O juiz é, por múltiplas razões, coagido a fazer obra criadora. Primeiro, porque toda norma tem necessidade de ser interpretada. Depois, porque nenhuma codificação poderia prever a diversidade das situações de vida, e a previsão do mais sábio dos legisladores é frustrada pelo progresso das técnicas, pela modificação das condições econômicas e sociais, pela evolução dos costumes e pela variação da moral resultante disso" (A lei dos juízes [ trad.] . São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 185).
O tema é antigo. Sob a forma de diálogo, já aludia Platão à importância das leis, acrescentando, porém, que mais importante não é dar força à legislação, mas ao homem real, dotado de prudência. É que "a lei jamais seria capaz de estabelecer, ao mesmo tempo, o melhor e o mais justo para todos, de modo a ordenar as prescrições mais convenientes. A diversidade que há entre os homens e as ações e, por assim dizer, a permanente instabilidade das coisas humanas, não admite em nenhuma arte, e em momento algum, um absoluto que valha para todos os casos e para todos os tempos" (Político, in Os Pensadores [trad.]. São Paulo: Abril Cultural, 1972, p. 250).
Além disso, por mais clara que seja, a lei pode ser descartada. Ela não passa de um dentre muitos outros instrumentos utilizados como fonte ou inspiração do direito penal possível. Nessa ótica, suplanta-se ou amplia-se o leque de opções do modelo hermenêutico de Hans Kelsen. Mais do que uma vontade exegética proporcionada pela própria lei, ou pela constituição política, prevalece a vontade final do intérprete com poder decisório, erigido à condição de fonte primária de construção do direito.
As divergências doutrinárias e jurisprudenciais não deixam a menor dúvida quanto a essa possibilidade teórica. E elas se repetem, se reciclam, se adaptam, se transmudam, em toda e qualquer campo do direito penal.
Veja-se a posição de Paulo de Souza Queiroz, que se mostra favorável a um direito penal mínimo. A certa altura, em sua crítica à seletividade e desigualdade do sistema, afirma com veemência retórica: "... ainda que o próprio Deus ditasse as leis, ainda que os juízes fossem santos, ainda que promotores de justiça fossem super-homens, ainda que delegados e policiais formassem um exército de querubins, ainda assim o direito – e o direito penal em particular – seria um instrumento de desigualdade. Porque a igualdade formal ou jurídica não anula a desigualdade material que lhe subjaz". Mais adiante: não se trata "de um problema circunstancial, que se possa vencer pela boa vontade de legisladores ou aplicadores da lei: é um problema estrutural" (Do caráter subsidiário do direito penal. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 30).
Tudo isso nos remete, mais uma vez, à conscientização crítica de um direito penal de várias fontes, dinamicamente interligadas.
Como enfrentar o problema? À luz de um realismo crítico, na síntese de Luiz Fernando Coelho, "o ponto de partida, e também o de chegada, é a evidência de que a realidade somos nós, o homem como ser individual e social, como consciência, trabalho e criação. Não um cogito, ergo sum, mas um sum, ergo cogito" ("O pensamento crítico no direito", Seqüência: estudos jurídicos e políticos, n.° 30. Florianópolis: CPGD/UFSC, jun/1995, p. 74). O esforço de depuração técnica dos conceitos e normas, a preocupação de objetividade milimétrica quanto aos contornos e limites de cada tipo, a busca incessante de clareza institucional – estou adaptando, por minha conta e risco, o pensamento filosófico do autor – parecem conectados à ilusão de um fenômeno jurídico em si, separado de um "contexto multidisciplinar" por sua vez embebido de "realidade humana" (idem, ibidem). Parecem também atrelados à crença de que o direito, com a incorporação legislativa de "modernos" princípios, é ou pode vir a ser único, racional, objetivo, pleno, claro, preciso.
Mas tudo se passa ao reverso: o direito é e continuará sendo múltiplo, diversificado, emocional, intuitivo, lacunoso, confuso, contraditório. Os acréscimos e diferenciações trazidos à lei não se desfazem de efeitos colaterais indesejáveis, e até imprevisíveis, em face de paralelas alterações objetivas do sistema como um todo. E este ainda mais se complica a partir do instante em que se vê envolvido e dominado pelas armadilhas da dogmática e sutilezas argumentativas dos operadores jurídicos, oficiais ou oficiosos. O direito é um fato, um fato normativo, e como tal há de continuar a ser visto por quem já se libertou das cartilhas metafísicas paradoxalmente redigidas em linguagem humana, linguagem essa que a tudo relativiza, exceto em relação a si mesma, enquanto enunciado teórico-explicativo.