Capa da publicação Direito Médico e a judicialização da saúde
Capa: DepositPhotos

Direito Médico e a judicialização da saúde

Exibindo página 1 de 2
29/05/2023 às 11:00

Resumo:


  • O direito à saúde no Brasil é garantido pela Constituição Federal como fundamental e universal, independente de contribuição prévia, sendo assegurado pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

  • A judicialização da saúde ocorre quando o Estado não consegue fornecer o acesso à saúde de forma satisfatória, levando os cidadãos a buscar o Poder Judiciário para garantir seus direitos à saúde.

  • As decisões judiciais tendem a favorecer a proteção da saúde e da dignidade humana, mesmo diante de argumentos como a reserva do possível, tanto em relação ao SUS quanto aos planos de saúde privados.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A intervenção judicial como garantia da efetivação do direito à saúde.

Resumo: A saúde no ordenamento jurídico brasileiro é consagrada como um direito fundamental, ou seja, é garantido pela própria Constituição Federal. Além disso, o direito à saúde é universal, diferente da assistência e da previdência social que compõem a seguridade social, visto que estas últimas exigem o preenchimento de alguns requisitos para que o cidadão possa fazer jus. Objetiva-se com o presente artigo verificar a judicialização desse tão importante direito, tendo em vista que em algumas ocasiões, embora o direito seja disposto expressamente como direito universal e pleno dos cidadãos, o Estado não cumpre com suas obrigações previstas na Carta Magna, o que faz com que o poder judiciário seja provocado para resolver conflitos que envolvem tanto a saúde pública como a saúde complementar. Para isso, utiliza-se como base documentos, doutrinas e jurisprudências acerca do assunto, delineando as divergências judiciais e as principais decisões que envolvem a questão do fornecimento da saúde.

Palavras-chave: Saúde. Seguridade Social. Direito Médico. Judicialização da saúde.


INTRODUÇÃO

O Direito à saúde foi uma conquista mundial. Os debates sobre o tema se iniciaram principalmente após a Segunda Guerra Mundial, quando então a ideia de universalizar a saúde se espalhou pelo mundo. A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi a grande responsável por essa disseminação da ideia de amplo acesso à justiça, o que originou a disposição expressa no texto constitucional Brasileiro.

No Brasil até 1988 o direito à saúde não era previsto no texto constitucional como uma garantia fundamental. A disposição nesse sentido fez com que diversas medidas fossem adotadas até atingir a universalidade de atendimento pelo Sistema Único de Saúde, que hoje é uma referência mundial de saúde pública.

Ocorre que ainda com a previsão expressa como um direito universal e integral, o Estado muitas vezes não é capaz de suprir as necessidades do cidadão de maneira satisfatória, o que faz com que muitos busquem a tutela jurisdicional para ter seus direitos garantidos. Aliás, isso não é apenas uma falha estatal, tendo em vista que até mesmo a saúde complementar enfrenta problemas para fornecer tratamentos e medicamentos adequados aos seus consumidores.

É certo que quem tem dor, tem pressa, por isso que muitos cidadãos e consumidores recorrem a denominada judicialização da saúde, que é o meio utilizado para se obter esse direito e resguardar a própria defesa pela vida quando os fornecedores da saúde não cumprem com as condições necessárias para a adequada preservação desse tão valioso bem.


1. DIREITO À SAÚDE

O direito à saúde foi consagrado como um direito fundamental nas sociedades mais civilizadas, principalmente ao final do século XX. O Brasil, acompanhando esse pensamento, cuidou de dispô-lo como um direito social logo no art. 6º da Constituição Federal de 1988, o que sem dúvidas garantiu o acesso à saúde que hoje é oferecido no sistema brasileiro por meio do Sistema Único de Saúde, o SUS.

Nesse aspecto, é válido citar que o termo saúde deriva de salutis, do latim, que se refere à conservação da vida, salvação, bem-estar, cura. Contudo esse significado não se limita apenas a essa tradução, visto que há uma pluralidade de significados que se complementam quando o assunto é o termo saúde, e não um conceito estático do significado dessa palavra do ponto de vista epistemológico (HERSZON, 2021).

Suelli Gandolfi Dallari (1988, p. 1) explica que foram vários os autores que tentaram dar significação ao termo durante a história, como por exemplo a explicação trazida por Hipócrates, que considerava a influência da localidade e do estilo de vida dos habitantes para determinar quais as doenças sofridas por essa população, para o filósofo o médico não cometeria erros em determinar o tratamento quando compreendesse quais as influências que assolavam aquela determinada localidade. Além dele, Paracelso, médico suíço-alemão que viveu durante o início do século XVI, associava a saúde com os fatores externos, ou seja, as leis da natureza e os fenômenos biológicos, para determinar como o organismo humano reagia a esses aspectos, relacionando algumas doenças com o ambiente de labor. Engels, também sob o estudo das condições de trabalho, relacionava a cidade e o estilo de vida dos habitantes, bem como as condições laborativas como fatores de influência na saúde da população.

Por outro lado, existiram pensamentos no sentido de que saúde era a mera ausência de doenças, como por exemplo o pensamento de Descartes, filósofo francês do século XVII, que lecionava sobre a comparação do corpo humano como uma máquina, que ao apresentar falhas, poderia ser consertada após a descoberta da causa. O debate entre essas correntes, após a segunda guerra mundial, fez com que o consenso fosse estabelecido durante um pacto da Organização das Nações Unidas, que reconheceu o direito a saúde como um direito humano. Portanto a tese que prevaleceu foi aquela anteriormente adotada por Hipócrates, Paracelso e Engels (DALLARI, 1998, p. 2).

Foi essa conceituação trazida pela Organização Mundial da Saúde que determinou saúde como um “estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas como a ausência de doença ou enfermidade” (BRASIL, Ministério da Saúde, 2020) que garantiu a preocupação mundial com o ser humano após a guerra, abrangendo um conceito muito mais amplo do que aqueles conhecidos (HERSZON, 2021).

A própria Declaração Universal dos Direitos Humanos previu a saúde como um direito associado com a própria vida, conforme se observa do art. 25:

Art. 25. 1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle (ONU, 1948).

Na Constituição Federal de 1988 pode-se observar a regulamentação constitucional do direito à saúde entre os artigos 196 ao 200, em seção própria para o tema. O art. 196 assim dispõe:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 1988).

Portanto o direito à saúde é um direito fundamental relacionado com a dignidade da pessoa humana, ao mínimo existencial para garantir as questões que o envolvem, bem como com o dever de vedar o retrocesso e garantir o progresso da evolução na prestação desse direito. A garantia do direito à saúde é, portanto, uma construção social (VIEIRA, 2020).

Segundo o próprio portal governamental do Brasil, foi o direito à saúde que garantiu a criação de um dos maiores sistemas atuais de saúde, o Sistema Único de Saúde, SUS:

Saúde é um direito universal garantido pela Constituição Federal de 1988. Isso quer dizer que todos têm direito a tratamentos adequados, fornecidos pelo poder público. Na prática, ao criar esse direito, a Carta Magna criou também um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo, que faz desde procedimentos simples, como medir a pressão arterial, aos mais complexos, como transplante de órgãos (BRASIL, 2018).

Deste modo, a saúde pode ser considerada uma conquista humana, visto que após a segunda guerra mundial é que foi conceituada de forma a abranger não apenas a ausência de doença, mas o bem-estar do indivíduo, a fim de garantir uma vida plena. Como citado, o Sistema Único de Saúde é o sistema adotado pelo Brasil, que é o que será debatido no próximo capítulo.


2. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE - SUS

Como abordado no capítulo anterior, o direito à saúde é garantido pela própria Constituição Federal (BRASIL, 1988).

O Sistema Único de Saúde surge com a própria Constituição Federal, em 1988, contudo, sua regulamentação só foi aprovada em 1990 pelo Congresso Nacional, por meio da Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/90), que dispõe sobre o funcionamento desse sistema (MINAS GERAIS, Secretaria de Estado de Saúde, 2015).

Jairnilson Silva Paim explica que o Sistema Único de Saúde é observado do texto constitucional e em demais normas, bem como que conta com diversas entidades:

Inspirado em valores como igualdade, democracia e emancipação, o SUS está inserido na Constituição, na legislação ordinária e em normas técnicas e administrativas. O Movimento da Reforma Sanitária Brasileira (MRSB) que lhe sustenta é composto por entidades com mais de quatro décadas de história e de compromisso com a defesa do direito universal à saúde, a exemplo do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Conta com o apoio de outras organizações como a Associação Brasileira de Economia da Saúde (Abres), a Rede-Unida, os conselhos de saúde (nacional, estaduais e municipais), a Associação Nacional do Ministério Público em Defesa da Saúde (Ampasa), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), o movimento popular de saúde, entre outras. (PAIM, 2018, p. 2).

O SUS tem o objetivo de garantir o amplo acesso ao direito à saúde garantido pela Constituição Federal. Está atrelado com a própria cidadania do indivíduo, pois, ao contrário de outros institutos, a exemplo da previdência social, o SUS independe de prévia contribuição para que possa ser utilizado, também não é vinculado com o estado financeiro da pessoa como exige a assistência social, visto que qualquer um pode utilizar os serviços. O sistema é baseado na solidariedade (PAIM, 2015).

Gilson Carvalho (2013) afirma que podem ser observados alguns princípios e diretrizes da Constituição Federal e da Lei 8.080/90 com relação ao Sistema Único de Saúde, citando “As diretrizes e princípios tecnoassistenciais da CF e Lei 8.080 são: universalidade, igualdade, equidade, integralidade, intersetorialidade, direito à informação, autonomia das pessoas, resolutividade e base epidemiológica”. Segundo o autor, a “Universalidade” é atingir a todos, ricos, pobres, empregados, desempregados, sem qualquer distinção do indivíduo, seja ela positiva ou negativa, a universalidade garante o acesso amplo. No que diz respeito a “Igualdade” esta decorre do princípio citado anteriormente, no sentido de que todos os cidadãos têm direito de acessar o sistema de saúde, sem acesso distinto entre os usuários. A “Equidade”, segundo o autor, como uma qualificação da igualdade em tratar os diferentes de forma diferente e os iguais de forma igualitária, de acordo com as necessidades do paciente. A “Integralidade” no sentido de considerar o paciente um ser humano digno de ter a promoção, a proteção e a recuperação de sua saúde, ou seja, o tratamento integral por meio do sistema. A “Intersetorialidade” é a garantia para além de medicamentos, exames e demais aspectos que envolvem as instituições médicas, no sentido de garantir também a alimentação, renda, ambiente de trabalho, acesso ao lazer. O “Direito à informação” como a prestação, pelo Estado, do estado de saúde do paciente, com o fornecimento o de prontuários e demais documentos que lhe pertencem. A “Autonomia da Pessoa” é a garantia de que o direito à liberdade será respeitado. Quanto a “Resolutividade” traduz a ideia de que o Estado deve fornecer os serviços adequados para atender os problemas de seus cidadãos e, por fim, a “Epidemiologia como base” que tem como objetivo verificar as condições da população, as questões de saúde que a envolve e as ofertas de saúde que são postas à disposição.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Suelli Gandolfi Dallari (1988, p. 1) explica que a mera declaração de direitos não foi capaz, por si só, de garantir os anseios do povo, que buscou a efetivação desse conteúdo após a promulgação desses direitos à nível constitucional:

No fim do século XX a simples declaração de direitos não satisfaz ao povo. Busca-se delimitá-los determinando seu conteúdo, para se construírem estruturas que possam garantir o direito declarado. Nessa linha analisou-se a conceituação de saúde e de direito à saúde para procurar na organização do Brasil, Estado federal e capitalista, meios para garantir o direito à saúde. (DALLARI, 1988, p. 1).


3. DIREITO MÉDICO E A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE

Nos casos em que o cidadão não consegue obter o acesso ao direito fundamental à saúde pelos meios convencionais surge a possibilidade da denominada “judicialização da saúde”, que é a prerrogativa de solicitar o auxílio judiciário para a resolução do problema (FRANCA, 2020).

Alguns problemas do dia a dia da sociedade em face da falta de estrutura governamental justificam a ascensão judiciária quando o assunto envolve a saúde. A população, percebendo que a espera não era suficiente para garantir seus direitos básicos fundamentais iniciou o processo de judicialização na busca por esses direitos (SCHULZE, 2019).

Aliás, “As ações judiciais são utilizadas em várias partes do mundo como meio de se garantir acesso a “bens e serviços de saúde”, promovendo a efetivação do “Direito à Saúde” (FREITAS; FONSECA; QUELUZ, 2020).

Isto porque, apesar de consagrado no art. 196 do texto constitucional, o direito a saúde em termos práticos nem sempre é respeitado, ainda que haja previsão legal garantindo que é dever do Estado o fornecimento e amparo a saúde de seus cidadãos (FRANCA, 2020).

O Brasil, em compensação, com o SUS, é referência em algumas questões médicas, como é o caso do fornecimento do tratamento para portadores de HIV e em transplantes de alta complexidade, contudo apresenta falhas graves quando se trata do fornecimento de atenção básica, principalmente nas áreas mais remotas do país (SCHULZE, 2019).

Quando o Estado não é capaz de fornecer aquilo que foi previsto constitucionalmente como direito ao cidadão, faculta-se a este que busque a tutela jurisdicional, que na maioria das vezes ocorre por meio de Mandado de Segurança, utilizado para atingir atos ilegais ou abusivos cometidos por autoridade, como por exemplo a ausência de fornecimento de medicamentos ou de consultas indispensáveis para a preservação da saúde do cidadão (FRANCA, 2020).

Um estudo publicado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2015, denominado de “Judicialização da saúde no Brasil - Dados e experiências” analisou a questão da judicialização da saúde e a política judiciária de saúde brasileira utilizando como parâmetro 6 Tribunais de Justiça divididos por três categorias, sendo elas pequenos (Tribunal do Rio Grande do Norte e do Acre), médios (Tribunal do Mato Grosso do Sul e o do Paraná) e grandes tribunais (Tribunal de São Paulo e de Minas Gerais). Para a seleção dos processos contabilizados foi feita a filtragem de acórdãos e decisões monocráticas proferidos entre os anos de 2011 e 2012, bem como considerada apenas a data de julgamento e não a da publicação das decisões, bem como desconsiderou os processos julgados em duplicidade, sendo estes os resultados obtidos: O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte apresentou 587 processos que atendiam os requisitos estabelecidos, dentre estes 331 envolvendo a saúde pública e 256 a saúde complementar; O Tribunal de Justiça do Acre 11 processos, sendo 9 de saúde pública e 2 de saúde suplementar; O Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul 490 processo, sendo 306 deles referentes à saúde pública, enquanto 184 à saúde suplementar; No Tribunal de Justiça do Paraná foram constatados 1.218 processos, sendo 588 envolvendo a saúde pública e 630 a saúde suplementar. Por fim, o Tribunal de São Paulo apresentou 449 processos, sendo 239 de saúde pública e 210 de saúde complementar; e o Tribunal de Justiça de Minas Gerais 448 processos, sendo 350 envolvendo a saúde pública e 218 saúde complementar (BRASIL, Conselho Nacional de Justiça, 2015).

Um estudo publicado em 2020, denominado de “A Judicialização da saúde nos sistemas público e privado de saúde: uma revisão sistemática”, analisou artigos sobre o tema da saúde na justiça entre os anos de 2014 a 2017, constatando que a maioria das demandas são relacionadas ao fornecimento de medicamentos, sendo cerca de 69,56% das demandas, além disso também verificaram que 13,03% das demandas envolviam o acesso e incorporação da tecnologia para a saúde (FREITAS; FONSECA; QUELUZ, 2020).

Quando se trata de judicialização da saúde pública a maior justificativa dada pelos administradores dos entes federativos é o denominado princípio da reserva do possível e que a ordem judicial representa uma forma de interferência do poder judiciário nas políticas públicas (FRANCA, 2020). Por sua vez, a maioria das demandas submetidas ao judiciário tem como base do pedido a antecipação da tutela, a urgência, emergência e o próprio risco à vida do demandante (FREITAS; FONSECA; QUELUZ, 2020).

Apesar da existência da separação dos poderes, prevista na Constituição Federal e da alegação estatal quanto a reserva do possível, verifica-se que a justiça se inclina para a proteção da saúde da dignidade do cidadão e, consequentemente, pela defesa de sua saúde. Isto porque cumpre ao poder judiciário em razão do Estado de Direito, verificar a legalidade e a constitucionalidade das políticas públicas ofertadas pelo Estado, principalmente quando não atendem os fins garantidos no ordenamento jurídico brasileiro, aliás, essa foi a manifestação do Superior Tribunal de Justiça, ao afirmar que nem mesmo a alegação de reserva do possível pode ser utilizada para que o Estado se exima de cumprir com a obrigação de prestar a dignidade do cidadão com relação ao fornecimento de saúde:

ADMINISTRATIVO. DIREITO À SAÚDE. DIREITO SUBJETIVO. PRIORIDADE. CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS. ESCASSEZ DE RECURSOS. DECISÃO POLÍTICA. RESERVA DO POSSÍVEL. MÍNIMO EXISTENCIAL. [...] 4. Em regra geral, descabe ao Judiciário imiscuir-se na formulação ou execução de programas sociais ou econômicos. Entretanto, como tudo no Estado de Direito, as políticas públicas se submetem a controle de constitucionalidade e legalidade, mormente quando o que se tem não é exatamente o exercício de uma política pública qualquer, mas a sua completa ausência ou cumprimento meramente perfunctório ou insuficiente. 5. A reserva do possível não configura carta de alforria para o administrador incompetente, relapso ou insensível à degradação da dignidade da pessoa humana, já que é impensável que possa legitimar ou justificar a omissão estatal capaz de matar o cidadão de fome ou por negação de apoio médico-hospitalar. A escusa da "limitação de recursos orçamentários" frequentemente não passa de biombo para esconder a opção do administrador pelas suas prioridades particulares em vez daquelas estatuídas na Constituição e nas leis, sobrepondo o interesse pessoal às necessidades mais urgentes da coletividade. O absurdo e a aberração orçamentários, por ultrapassarem e vilipendiarem os limites do razoável, as fronteiras do bom-senso e até políticas públicas legisladas, são plenamente sindicáveis pelo Judiciário, não compondo, em absoluto, a esfera da discricionariedade do Administrador, nem indicando rompimento do princípio da separação dos Poderes. 6. "A realização dos Direitos Fundamentais não é opção do governante, não é resultado de um juízo discricionário nem pode ser encarada como tema que depende unicamente da vontade política. Aqueles direitos que estão intimamente ligados à dignidade humana não podem ser limitados em razão da escassez quando esta é fruto das escolhas do administrador" (REsp. 1.185.474/SC, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 29.4.2010). 7. Recurso Especial provido.

(STJ - REsp: 1068731 RS 2008/0137930-3, Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Julgamento: 17/02/2011, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 08/03/2012)

Portanto, apesar da separação dos poderes e da alegação da reserva do possível, os tribunais de justiça vêm decidindo que essas alegações não prevalecem sobre o direito fundamental garantido constitucionalmente (FRANCA, 2020).

Já no que diz respeito aos planos de saúde privados, também denominado de “saúde complementar”, o Superior Tribunal de Justiça também já se posicionou favoravelmente ao consumidor, estabelecendo que o rol da ANS é meramente exemplificativo e não taxativo:

AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. PLANO DE SAÚDE. COBERTURA. RECUSA INJUSTIFICADA. ANS. ROL MÍNIMO DE COBERTURA. NEGATIVA DE TRATAMENTO. DANO MORAL. CABIMENTO. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça reafirmou a jurisprudência no sentido do caráter meramente exemplificativo do rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), reputando abusiva a negativa da cobertura, pelo plano de saúde, do tratamento considerado apropriado para resguardar a saúde e a vida do paciente. 3. A jurisprudência desta Corte Superior reconhece a possibilidade de o plano de saúde estabelecer as doenças que terão cobertura, mas não o tipo de tratamento utilizado para a cura de cada uma delas. 4. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça reconhece o direito ao recebimento de indenização por danos morais oriundos da injusta recusa de cobertura, pois tal fato agrava a situação de aflição psicológica e de angústia no espírito do usuário, já abalado e com a saúde debilitada. 5. Agravos internos não providos.

(STJ - AgInt no REsp: 1925823 DF 2021/0065125-5, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 16/11/2021, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 22/11/2021)

A saúde suplementar surge como alternativa para aqueles que buscam uma forma de ter um atendimento mais célere e efetivo, contudo, como exposto acima, isso não é certeza de êxito na hora de ser atendido, visto que as demandas ocorrem tanto contra a saúde pública, como com a saúde complementar.

A Lei n. 9.656/98 que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde delimita o rol de procedimentos a serem ofertados pelos planos em seu art. 10, § 4º, que assim dispõe:

Art. 10 [...]

§ 4º A amplitude das coberturas no âmbito da saúde suplementar, inclusive de transplantes e de procedimentos de alta complexidade, será estabelecida em norma editada pela ANS, que publicará rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar, atualizado a cada incorporação (BRASIL, 1998).

Contudo em 3 de março de 2022 houve a alteração desse entendimento, tendo em vista a edição da Lei n. 14.307/2022 que alterou a legislação supracitada para dispor a atualização das coberturas feitas pelos responsáveis pelo fornecimento de saúde complementar (BRASIL, 2022).

Mesmo após a publicação dessa lei, persistiu uma antiga dúvida sobre o rol dos procedimentos ser taxativo ou exemplificativo. Em 8 de junho de 2022 a segunda Seção do STJ definiu que o rol é taxativo, ou seja, desobrigou que as operadoras de saúde tivessem a obrigação de cobrir tratamentos não abrangidos na lista da ANS, contudo o Tribunal definiu alguns critérios para a concessão de procedimentos não previstos na lista em algumas situações excepcionais. Porém essa decisão não serviu de parâmetro para que os cidadãos cessassem suas buscas pela tutela jurisdicional envolvendo a mesma demanda, visto que devido a divergência jurisprudencial e os valores envolvidos nesse conflito, sempre há o interesse de agir pelo cidadão que não alcança o tratamento ou o medicamento almejado para preservação de sua saúde (DINIZ, 2022).

Enquanto as entidades e associações que representavam pessoas com deficiência e doenças raras e graves como o câncer defendiam o fim do rol taxativo da ANS, os planos de saúde e seus representantes afirmavam que a ampliação do rol geraria insegurança aos beneficiários, bem como um aumento nas mensalidades devido a exigibilidade das coberturas antes não exigidas. Foi em 29 de agosto de 2022 que o Senado Federal aprovou o projeto de lei n. 2.033/2022, estabelecendo o fim do rol taxativo dos procedimentos a serem cobertos pelos planos privados, impondo que estes cubram os tratamentos não previstos no rol da ANS, tornando-se então a lei de n. 14.454/2022 (DINIZ, 2022)

Apesar dessa determinação legal acrescida pelo inciso 10, §§ 12, 13 da Lei n. 14.454/2022 cessar qualquer dúvida até então existente, visto que expressamente previu que o rol é meramente exemplificativo, a norma definiu critérios para a exigibilidade de tratamento pelos planos de saúde, in verbis:

Art. 10 [...]

§ 12. O rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar, atualizado pela ANS a cada nova incorporação, constitui a referência básica para os planos privados de assistência à saúde contratados a partir de 1º de janeiro de 1999 e para os contratos adaptados a esta Lei e fixa as diretrizes de atenção à saúde.

§ 13. Em caso de tratamento ou procedimento prescrito por médico ou odontólogo assistente que não estejam previstos no rol referido no § 12 deste artigo, a cobertura deverá ser autorizada pela operadora de planos de assistência à saúde, desde que:

I - exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou

II - existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ou exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.” (NR) (BRASIL, 2022).

Portanto a lei foi cristalina em estabelecer que o rol previsto pela ANS é apenas exemplificativo e serve como base para concessão dos tratamentos que cumpram os requisitos estabelecidos pela própria lei (BRASIL, 2022).

Portanto o que se percebe quando se visualiza a questão da judicialização da saúde é que embora o poder público, por meio do poder executivo, afirme não ter condições de aplicar as políticas públicas em razão da reserva do possível, bem como os planos privados alegando uma eventual crise financeira em razão da ampliação do rol dos procedimentos, é que o Poder Judiciário vem decidindo pela supremacia do direito à saúde quando confrontado com as demais questões, o que faz com que o cidadão tenha amparo nos casos em que se vê abandonado pelos métodos administrativos do fornecimento da saúde.

Sem sombra de dúvidas a judicialização demonstra as falhas estatais e dos fornecedores privados da saúde, que devem estar atentos para o cumprimento do fornecimento adequado dessa tutela ao bem jurídico protegido sob pena de serem coibidos ao cumprimento por meio das decisões judiciais.

Sobre a autora
Thalita

Advogada. Pós-graduada em nível de Especialização lato sensu, em Direito Civil e Processo Civil, Direito Penal e Processo Penal, Direito do Trabalho e Processual do Trabalho, Direito Médico e da Saúde, Direito Público e Advocacia na Fazenda Pública. Mestranda em Direito na Universidad Europea del Atlántico.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos