No ano de 2008, no Pavilhão Ciccillo Matarazzo do Parque Ibirapuera, acontecia a 28ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo. Sob a curadoria de Ivo Mesquita e Ana Paula Cohen, o evento despertou polêmicas quando questionou os processos de construção de grandes exposições e o lugar da obra de arte na sociedade à época. Propositalmente, o segundo andar do Pavilhão foi deixado vago. A intenção da curadoria era com isto propor uma reflexão sobre o vazio no contexto artístico.
A lacuna, no entanto, foi ocupada. Não por representações de arte formal, condizentes com o senso estético socialmente construído da época, mas por aproximadamente quarenta pichadores que invadiram o espaço no dia da abertura da Bienal e interviram com seus sprays e tintas nas paredes brancas e álgidas. Com sua tipografia específica e frases características, expuseram visualmente algo que não foi compreendido à época. E que talvez ainda não o seja hoje em dia.
O julgamento sumário da opinião pública naquelas semanas que se seguiram ao incidente apontou para o óbvio: os pichadores foram moralmente massacrados e sua intervenção foi considerada um ato de vandalismo. E, a despeito de uma tentativa posterior de aproximação com os pichadores por parte da Bienal de São Paulo e de iniciativas também neste sentido originadas em instituições estrangeiras, os revérberos desta opinião insistem em soar no imaginário social brasileiro.
Uma obra audiovisual que estreou neste mês nas salas de cinema comerciais do país jogou nova luz sobre o tema: trata-se do filme “Urubus” [1]. Inspirada na história real do grupo de pichadores da Bienal de 2008, a obra redunda numa excelente ficção que não se propõe a vitimizar os pichadores, mas sim humanizá-los. E com isso acaba por humanizar também o “pixo”, grafia escolhida pelos pichadores para denominação de sua prática.
As cenas quotidianas da periferia de São Paulo são cruamente tratadas no filme. Lembremo-nos que São Paulo é o berço e a casa onde cresceu a pichação como conhecemos atualmente, ainda que inspirada nos grafites das décadas das manifestações estudantis e da contracultura. Logo, o pixo nasceu do atrito social, do confronto e da violência que existe, mas que é convenientemente silenciada. Explode nos muros e fachadas, desagradando o senso estético urbano de cidades que se desejam limpas e organizadas.
De fato, a pichação não é um fenômeno de fácil conciliação com a normatividade da sociedade. O pixo se sobrepõe à paisagem urbana e por vezes até mesmo sobre bens culturalmente protegidos e dá notoriedade a uma realidade hostil, cuja estética crua e violenta é frequentemente relegada às periferias. E, por este motivo, sustentamos, é uma manifestação cultural periférica marginalizada. Tal qual o samba, tal qual a capoeira foram, em outras épocas, conforme sustentam os responsáveis pelo filme mencionado.
Esta é a conclusão que extraímos de “Urubus”; que o grito da realidade social se amplifica violentamente nos muros. As arestas sociais são desveladas. E que não adianta odiar o pixo, como naturalmente fazemos, sem conhecer a sua origem e, de modo polêmico, o seu valor cultural. Sim, porque independentemente do valor ou da ausência de valor artístico da pichação, como insistimos em dizer, seu lugar cultural é inconteste.
O direito, enquanto ciência do “dever ser”, cujas representações nascem dos discursos sociais dominantes, não acolhe o pixo com pacífica tolerância. Sua gênese cultural não nos é confortável, sua perspectiva cultural é diferente, desconhecida e, por isso, degredada.
Anteriormente considerada como um dano contra o patrimônio, público ou privado, a pichação passou em 1998 à qualidade de Crime Ambiental, por meio da Lei 9.605/98 [2]. Ou seja, muito além do dano patrimonial, é hoje em dia uma lesão ao meio ambiente como o queremos. E, de fato, fortemente, não anelamos que monumentos e bens culturais, artísticos, históricos e ambientais sejam destruídos ou que as intervenções de terceiros lhes suprimam o valor.
Contudo, execrar o pixo não lhe impede. “Urubus” nos mostra como suas raízes estão na formação de nossa sociedade. Pensar sobre seu arcabouço cultural de origem nos ajudaria a, simbolicamente, refletir sobre como somos.
Notas:
[1] O filme “Urubus” tem direção de Claudio Borrelli, roteiro de Mercedes Gameiro e Cripta Djan, produção executiva de Fernando Meirelles e Julia Tavares e distribuição da O2 Play.
[2] BRASIL. Lei 9.605 de 12 de fev. de 1009. Combate ao Bullying. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm. Acesso em 04 jun. 2023.