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Marco Temporal Indígena: direito adquirido ou conquista ex nunc?

11/06/2023 às 16:47
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Antes mesmo de introduzir o tema e de aprofundar no projeto de lei do marco temporal em si, cumpre esclarecer que a frase “ex nunc” trazida no título vem do latim, e significa algo como “de agora em diante” ou “a partir de agora”. Obviamente, o acadêmico da área do direito está familiarizado com o termo, mas os demais leitores podem não estar familiarizado com o termo, ainda mais quando se considera ou parte do princípio de que a ciência deve ser levada ao número máximo de pessoas, ela deve ser explicada de forma clara e objetiva.

O QUE É O MARCO TEMPORAL INDÍGENA

Antes de falarmos sobre o Marco Temporal Indígena (PL 490/07), vale destacar também, e deixar estabelecido que “marco” se refere a um tempo, uma data ou um evento, por exemplo, o “descobrimento” do Brasil: foi um marco do nascimento da nação brasileira. Pois bem.

Ao analisar, ainda que de maneira superficial, o Projeto de Lei 490/07, conhecido por Marco Temporal Indígena, de titularidade do já falecido Deputado Federal Homero Pereira, do PSD/MT, este já declarou ser agricultor como profissão. Daí, no mínimo, verifica-se existir conflito de interesses, uma vez que, o intuito do Projeto fica claro quando afirma na justificativa do Projeto proposto que:

“É importante realçar que a demarcação pela via legal (...). O que se pretende é atender (...) outros setores envolvidos (...)”.

A veia tendenciosa do PL não para por aí...

Tal projeto de lei, ainda visa alterar o Estatuto do Índio (Lei Federal 6001 de 19 de dezembro de 1973), regredindo e fazendo vigorar com alterações profundas em seu artigo 19, principalmente retirando a demarcação de terras da alçada da FUNAI (Órgão Federal) para dar responsabilidade ao Poder Judiciário (que já se encontra abarrotado de afazeres), e retirando o poder de registro do SPU (Serviço do Patrimônio da União), cabendo apenas ao registro imobiliário da comarca da situação da terra.

Apesar de, na justificativa, constar que o PL 490/07 visa aperfeiçoar a legislação indigenista e a demarcação de terras indígenas, utilizando os famigerados artigos 48 e 231 da Carta Magna, utiliza tais expedientes como supedâneo em uma vã tentativa de ocultar o que se entende por real intento, o privilégio do pecuarista. Tanto que o projeto traz a na própria fundamentação que:

“...no cotidiano, que as áreas reivindicadas e que, por isso, são objetos de demarcação, envolvem interesses diversos, tanto públicos quanto privados.”

E continua mostrando o que se vê como claros interesses latifundiários, ao causar confusão propositada sobre as terras indígenas e declarar que as terras são “...de propriedades privadas destinadas à produção agropecuária e outras atividades produtivas importantes para a viabilidade econômica...”.

A mesma justificativa que diz querer aperfeiçoar a legislação é a mesma que confunde os pares e a sociedade ao afirmar que “...os atos demarcatórios implicam em sobreposições de áreas indígenas às áreas de proteção ambiental, estratégicas para a segurança nacional...”. Com esta rasa análise da fundamentação do PL em questão, se vê o que se buscar pelas entrelinhas.

Sucede que as áreas de proteção ambiental, também conhecidas como área de preservação permanente (APP) ou áreas de conservação (AC), não tem objetivo de “...ser estratégicas para a segurança nacional...”, como trazido no PL 490/07, mas sim objetivo de preservar e manter a biodiversidade ali existente, como reza o Art. 225, Constituição Federal.

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Ou seja, inexiste área sobreposta às terras indígenas.

O Art. 213 da Constituição Federal dá à União a competência para demarcar terras indígenas. O Estatuto do Índio dá o mesmo poder à FUNAI, que é órgão vinculado ao Poder Executivo Federal, à União. Até aí não tem discrepância e não há motivos para o PL 490/07 prevalecer. Até porque, até nesse ponto é inconstitucional.

Embora a FUNAI não tenha obedecido o prazo constitucional de demarcação de territórios, tal fato é plenamente plausível e justificável ante a falta de investimento de recursos por parte do Governo Federal, seja recursos humanos ou materiais, o que culmina no não exercício do trabalho ou do dever. É natural que com pouca mão-de-obra e com poucos recursos o trabalho seja naturalmente lento, ou quase inexistente.

Ainda, o PL 490/07 traz enganosamente que:

“De fato, existe em nosso ordenamento jurídico indigenista uma ofensa ao princípio da harmonia entre os poderes da União...”.

Todavia, não especifica onde está a ofensa e nem onde está o princípio invocado.

Analisando-os, verifica-se que o princípio da harmonia dos poderes encontra-se capitulado no bojo do Art. 2º da Constituição Federal Cidadã, enquanto que o ordenamento indigenista (Lei 6001/73) não a contraria. E caso contrariasse estaria revogado tacitamente.

No campo da ciência jurídica, para explicar o fato, se usa a Teoria Pura do Direito, cunhada pelo jusfilósofo austríaco Hans Kelsen (1998). Ela é ilustrada por uma pirâmide, e mostra a hierarquia das normas legais, mostrando que a Constituição Federal sempre prevalecerá contra qualquer Lei, por estar no topo, e as demais leis lhe dever obediência. Assim, qualquer norma que viole o texto constitucional é automaticamente inconstitucional, deixando de ter validade e aplicabilidade. Daí nasce o fenômeno da revogação tácita, pois a revogação não é expressa, mas se conclui sua revogação apenas por contrariar e ser incompatível com a Carta Magna e a teoria supra.

Ao que parece, o Marco Temporal Indígena (PL 490/07) não passa de mais uma vil e maquiavélica versão do caso Raposa Serra do Sol, tentando criar um arcabouço para usurpar território de outrem.

Villares; Yamada, (2010, p.143-159), nos ensina e mostra que no caso Raposa Serra do Sol, o objetivo era, com várias ações judiciais, tentar impugnar o ato demarcatório da Portaria 534/05 do Ministério da Justiça, que promoveu a demarcação de Terra Indígena Raposa da Serra do Sol, onde “...o STF reconheceu a legalidade do processo administrativo da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol”.

Não bastando o engodo fabricado pelo próprio PL 490/07, para rechaça-los, lançamos mão de toda a estrutura legal brasileira, que seguem na mesma senda.

Caso os argumentos e legislações acima não sejam suficientes para fundamentar o presente estudo, o que não se vislumbra, há registros históricos longevos, que dão supedâneo à não aprovação do Projeto de Lei 490/07.

Como o objetivo do PL 490 é a consecução de terras, ou seja, de propriedades, cumpre-nos trazer um breve apontamento sobre a propriedade em si, e sobre o direito à propriedade.

QUEM TEM DIREITO À PROPRIEDADE?

A propriedade é um direito inerente a qualquer brasileiro, seja ele nato ou naturalizado, constitucionalmente garantido (Art. 5º, XXII da Constituição Federal de 1988). A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), que é de 1948, já contemplava no bojo do Art. 17 o direito à propriedade. Este direito se repetiu em 1969, no Art. 21 do Pacto de San José, da Costa Rica, conhecido como Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

Sabe-se que a propriedade, de acordo com a legislação pátria, pode ser adquirida de formas diversas, seja pelo modo mais comum, a compra e venda, ou até mesmo sendo adquirida através do instituto da usucapião (Art. 1238 e seguintes do Código Civil). A usucapião nada mais é do que uma chancela do Estado-Juiz, autorizando e ordenando alguém como titular de determinado bem, cumpridas as formalidades estabelecidas na lei.

Sabe-se também que algumas propriedades não podem ser usucapidas (Art. 102 do Código Civil, Art. 183, § 3º e Art. 191, parágrafo único da CF/88), por se tratar de bens do Estado, seja da esfera Federal, Estadual ou Municipal.

Sob este prisma, busca-se refletir neste estudo, como o PL 490/07 (Marco Temporal Indígena) viola leis maiores, pactos humanitários e como sua aprovação junto ao Congresso, além de se tornar inconstitucional, afetará os Povos Originários, seus territórios, sua sobrevivência e sua continuidade. Em suma, o PL 490/07 é um projeto natimorto.

Como dito anteriormente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), contempla no Art. 17 o direito à propriedade. Ela traz também no Art. 15 o direito à nacionalidade a qualquer ser humano. Tal norma regrativa se repete no Art. 20 da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (1969), o “Pacto de San José da Costa Rica”.

Pela regra e pela lógica da nacionalidade, e todos os dicionários são unânimes em informar, o brasileiro é chamado de “nato” e o indígena é tido por “nativo”, e nesta ótica, são palavras sinônimas, ou seja, palavras que têm o mesmo significado e a mesma raiz semântica.

Partindo da premissa que nato e nativo são palavras sinônimas, e se um brasileiro “nato” tem direito à propriedade, obviamente o brasileiro “nativo” igualmente o tem!

Até porque a Constituição Federal de 1988, nossa carta magna, traz no caput do famigerado artigo 5º que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...”. Ou no mínimo deveríamos ser!

A lógica formal aristotélica não nos permite fazer conclusão diferente: põe-se as premissas e elas geram uma conclusão. Posta a premissa constitucional de que todos são iguais perante a lei e posta outra premissa de que nato e nativo são a mesma coisa, adicionando à premissa legal de que em todo o arcabouço jurídico brasileiro tem direito à propriedade, a única ilação plausível é a de que o indígena (nativo) é titular e detentor de propriedade.

Visto que a propriedade é um direito a qualquer brasileiro, nato ou nativo, e que há formas diversas de adquiri-la legalmente, visto ainda que uma sentença é um reconhecimento de um direito, sacramentado e traduzido através de uma ordem, cumpre trazer à baila que, ao longo da história desta nação (Pindorama; Ilha de Vera Cruz; Terra Nova; Terra dos Papagaios; Terra de Vera Cruz; Terra de Santa Cruz; Terra Santa Cruz do Brasil; Terra do Brasil; Brasil), houveram outros documentos ordenando e titulando as terras aos nativos, como veremos no tópico seguinte.

DOS RECONHECIMENTOS DE POSSE ATRAVÉS DE ALVARÁS RÉGIO

Os direitos dos povos originários estão declarados e sacramentados não só na Constituição Federal de 1988, conhecida por ser a Constituição Cidadã, através do Art. 231, mas cravados ainda no bojo de outras constituições pretéritas, como por exemplo as Cartas Magnas de 1934, 1937, 1946, 1967 e sua emenda em 1969. Ainda, os direitos dos nativos foram positivados no ano de 1973, quando nasceu o Estatuto do Índio, lei nº 6001, promulgado em 19 de dezembro daquele ano.

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Além do reconhecimento por Lei e Constituições Federais, houveram reconhecimentos que remontam tempos remotos, das terras pelos indígenas, desde o período colonial, cujos documentos citaremos alguns.

Barié (2003, p.160) nos mostra que a Carta Régia de 10 de setembro de 1611, promulgada pelo Rei Filipe III, é um dos registros mais antigos, e que ela deu aos índios o direito à propriedade, além de garantir o direito de ir e vir. Além disso, já se reconhecia aos indígenas os direitos originais sobre a terra:

Paula (1944, p. 69-70), nos mostra que já no Séc. XVII, a coroa portuguesa, através do Alvará Régio em 1° de abril do ano de 1680, confirmado pelo Alvará Régio de 1755, determinava em todo o Brasil a observância de várias leis do Reino sobre a liberdade das pessoas e bens e comércio dos índios do Pará e Maranhão, e reconheceu formalmente a posse das terras pelos indígenas, desde aquela época e lhes garantiu direitos.

Ainda, o Alvará Régio de 01 de abril de 1680, regulamentava aos indígenas o direito a utilizar a terra, além do direito de ficar em suas regiões, só podendo ser transferido mediante sua vontade, considerando ainda o “direito os Índios, primários e naturais senhores delas”.

Barié (2003, p.28) coaduna que a Carta Régia de 1680, deu aos índios o direito à propriedade, além de garantir o direito de ir e vir. Ali, já se reconhecia aos indígenas os direitos originais sobre a terra:

“La historia ha depositado sedimentos perdurables em las Cartas Magnas de Latinoamérica: la Constitución vigente de Brasil, por ejemplo, al reconocer a los indios “los derechos originarios sobre las tierras” (art.231) se remite a una tradición iniciada (y nunca revocada) por una orden real de 1680 que guardaba “la preferencia y el derecho de los indios que son señores originarios y naturales”.

Outra Carta Régia, datada de 09 de março de 1718, garantia e reafirmava os alvarás anteriores, consignando que “... (os índios) são livres, e izentos de minha jurisdição, que os não pode obrigar a sahirem das suas terras, para tomarem um modo de vida de que elles não se agradão ...”

Mendes Júnior (1912, p.58-59) corrobora a tese do indigenato, ao afirmar que “...estão sujeitas à legitimação as posses que se acham em poder do occupante (art. 3° da Lei de 18 de Setembro de 1850);” claramente se referindo aos indígenas, afirmando ainda que “as terras dos índios, congenitamente apropriadas não podem ser consideradas nem como res nullius nem como res derelictoe”, que em tradução direta do latim, diz que as terras não podem ser tida como coisa de ninguém nem como coisa abandonada.

E complementa ao afirmar que “o indigena, além desse jus possessionis, tem o jus possidendi, que já lhe é reconhecido e preliminarmente legitimado, desde o Alvará de 1º de Abril de 1680, como direito congênito” (MENDES JÚNIOR, 1912, p. 58-59).

Diante de tantos registros históricos, vê-se claramente que a aprovação do PL 490/07 apenas violará direito dos povos originários, que já eram senhores das terras antes do chamado descobrimento do ano 1500, e que após, foram reconhecidos por vários documentos reais, ao longo do tempo.

A seguir, veremos algumas das leis mais importantes sobre o tema.

DIREITOS DOS INDÍGENAS NO ESTATUTO DO ÍNDIO, NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E EM OUTROS CÓDIGOS

Não são só os documentos emitidos pela realeza espanhola e portuguesa que garantem a titularidade dos povos originários das terras que detém e ocupam: o arcabouço jurídico formado depois daqueles documentos, igualmente reconhecem.

A lei 6001/73 cria o Estatuto do Índio, e garante a estes alguns direitos, especialmente o direito à posse de terras e permanência. O Art. 2º define a responsabilidade de proteção e garantias:

Art. 2° Cumpre à União, aos Estados e aos Municípios, bem como aos órgãos das respectivas administrações indiretas, nos limites de sua competência, para a proteção das comunidades indígenas e a preservação dos seus direitos:

V - garantir aos índios a permanência voluntária no seu habitat, proporcionando-lhes ali recursos para seu desenvolvimento e progresso;

IX - garantir aos índios e comunidades indígenas, nos termos da Constituição, a posse permanente das terras que habitam, reconhecendo-lhes o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades naquelas terras existentes;

O Art. 32 dessa lei, reverbera o que já foi sacramentado: “Art. 32. São de propriedade plena do índio ou da comunidade indígena, conforme o caso, as terras havidas por qualquer das formas de aquisição do domínio, nos termos da legislação civil”.

Em rápida leitura, fica cristalino que dito artigo quando fala de “qualquer das formas de aquisição de domínio” faz menção aos Alvarás Régio existentes e referem-se a Leis anteriores a si, que igualmente garante posse das terras aos povos originários.

Como dito alhures, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948, traz no Art. 17 o direito à propriedade. Não se pode olvidar que tal direito se repetiu, em 1969, no Art. 21 do Pacto de San José, da Costa Rica e que a Carta Magna Cidadã de 1988 garantiu no Art. 5º, XXII que propriedade é um direito inerente ao brasileiro, nato ou naturalizado, logo garantindo o direito à propriedade aos indígenas, no Art. 5º, XXII da Constituição Federal de 1988.

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Barié (2003, p.59) mostra que o convênio 169 do qual o Brasil foi signatário perante a Organização Internacional do trabalho – OIT, em 1989, garantiu o direito à propriedade aos indígenas: “Deberá reconocerse a los pueblos interessados el derecho de propiedad y de posesión sobre las tierras que tradicionalmente ocupan”.

Novamente, Barié (2003, p.65) traz que o mesmo convênio aduz:

“Los pueblos indígenas tienen derecho al reconocimiento y a la plena propiedad, control y laprotección de su patrimonio cultural, artístico, espiritual, tecnológico y científico, y a la protección legal de su propiedad intelectual através de patentes, marcas comerciales, derechos de autor y otros procedimentos estabelecidos en lalegislación nacional;”

Como se pode perceber, toda a estrutura legal brasileira caminha no sentido de preservação dos povos originários, seus costumes e suas terras, sentido diametralmente oposto ao buscado com o PL em debate. O antagonismo proposto com o marco temporal indígena é derrubado não só por suas próprias razões e fundamentações, mas também pelo corpo legal existente.

Embora alguns textos falem de “posse” e outros de “propriedade”, para não causar dúvidas, cumpre trazer à baila uma rápida e simples conceitualização.

DIFERENÇAS ENTRE POSSE E PROPRIEDADE

A lei civil pátria trata os institutos da posse e da propriedade de modo diferentes, conceituando-os e dando os direcionamentos sobre cada um. Enquanto a posse está no título I – da posse, a propriedade está no título III – da propriedade. Vimos que a lei se preocupou em distanciá-los para não causar confusão.

A diferença entre os institutos da posse e da propriedade são desconhecidos por muitos brasileiros, inclusive pelos indígenas. O Código Civil Brasileiro (Lei 10406/2002) diferencia ambos os institutos. Os artigos 1196 a 1198 conceituam “posse” e quem é o possuidor:

Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.

Art. 1.197. A posse direta, de pessoa que tem a coisa em seu poder, temporariamente, em virtude de direito pessoal, ou real, não anula a indireta, de quem aquela foi havida, podendo o possuidor direto defender a sua posse contra o indireto.

Art. 1.198. Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas.

Já o Art. 1228 define o que é “propriedade” e quem é o proprietário:

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

Em breve explicação, cumpre relatar que enquanto o possuidor tem apenas a posse direta e o direito de uso, o proprietário tem a posse indireta (também pode ter a direta) e a propriedade registrada, e a este é dado do direito de usar, gozar e dispor. Aqui denota-se que proprietário é quem detém o registro da propriedade.

Por posse direta, entende-se aquele que está na propriedade, ocupando-a, diretamente, enquanto que por posse indireta, entende-se aquele que não necessariamente a ocupa, mas que comprova, documentalmente, ser dono.

Pois bem. Superada esta etapa, veremos os modos de aquisição de bens. O Código Civil traz ainda que a propriedade pode ser adquirida por quem já tem a posse (direta) e a este instituto dá-se o nome de Usucapião, que está positivada no Art. 1.238 e seguintes, e mostra as diferenças para usucapir uma propriedade. E é aqui que que este trabalho pode mudar totalmente a visão do leitor, caso ainda não tenha mudado.

Destaca-se que o primeiro texto legal que reconheceu o direito de propriedade aos indígenas, foi seu estatuto, no Art. 32, em meados de 1973. Todavia, tal instituto está revogado tacitamente (conforme explicado alhures), pois a Carta Magna de 1988 estabelece no Art. 20, inciso XI que “são bens da União” as “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”, ou seja, é do Governo Federal e não do indígena.

Pelo fato de os indígenas serem possuidores das terras que habitam, poderiam cogitar em utilizar o instituto da usucapião (Art. 1238 da Lei 10406/2002) para adquirir a propriedade das terras. Todavia como citado, ditas terras são de propriedade da União, e os bens da União não podem ser usucapidos por total proibição legal (Art. 99, inciso III; Art. 183, § 3º; e Art. 191, parágrafo único, todos da Constituição Federal de 1988), fenômeno a que se dá o nome de Bens Dominicais ou Bens Dominiais.

Entretanto, a Constituição Federal de 1988 deixou margem de interpretação quanto aos bens em questão. Veja o que traz o já citado artigo vinte:

Art. 20. São bens da União:

II - as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei;

Assim, lançando mão da interpretação teleológica, e ainda com vistas ao princípio da função social da propriedade, como descrito no Art. 5º, XXIII da Constituição Federal, nos permite interpretação da constituição de modo a privilegiar o uso das terras devolutas pelos povos originários.

Ora, se as terras devolutas não forem utilizadas pela União com a finalidade específica para defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, podem (e devem por princípio constitucional) ser objeto aquisição de propriedade de quem esteja sob sua posse. E esta margem interpretativa tem de ser utilizada e explorada pelos órgãos de defesa indígena (FUNAI) não só para demarcação de terras, mas adquirir a propriedade.

Em não sendo proibidas de serem usucapidas, naturalmente a usucapião já se concretizou ao longo do tempo, dando aos povos originais habitantes, o direito de propriedade. E é exatamente este o ponto que o PL não diz, mas almeja, nas entrelinhas: adquirir estas e outras terras, despejando os reais detentores do direito.

Diante disso e concluindo o presente estudo, e sem a pretensão de esgotar o tema, vemos que o PL 4970/07 (Marco Temporal Indígena) viola leis maiores, pactos humanitários, direito adquirido, além de ser um completo retrocesso humanitário, permitirá dizimar, legitimamente, uma raça, subtraindo destes, o pouco que lhes restam, como fizeram outras nações como os Estados Unidos, por exemplo, que nos dias atuais, para tentar diminuir um pouco da vergonha, dizem ser “x” avos (fazendo referência ao percentual) indígenas.

REFERÊNCIAS

BARIÉ, Cletus Gregor. Pueblos Indígenas y Derechos Constitucionales: um panorama. Editorial Génesis, La Paz, 2003. pág. 28; 59; 65; 160.

BRASIL. ALVÁRA RÉGIO de 1º de abril de 1680;

BRASIL. CARTA RÉGIA de 9 de março de 1718;

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 10 jan. 2022;

BRASIL. Lei nº 6.001 de 19 de dezembro de 1973. Dispõe sobre o Estatuto do Índio. Brasília, DF: Presidência da República, 1973. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6001.htm. Acesso em 10 jan. 2022;

BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Presidência da República, 1973. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em 10 jan. 2022;

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição n. 3.388; Ementa: Ação Popular. Liminar Indeferida. Demarcação Da Reserva Indígena Raposa Serra Do Sol. Homologação. Portaria Nº 534/2005, Do Ministério Da Justiça. [...] Agravo regimental desprovido. Relator: Min. CARLOS BRITTO, 2009, Tribunal Pleno. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=630133. Acesso em: 10 jan. 2022;

BRASIL. Marco Temporal Indígena. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0ducmobk0v85dhccxgv8yk4su19065597.node0?codteor=444088&filename=PL+490/2007. Acesso em 10 jan. 2022;

COSTA RICA. Convenção Americana Sobre Direitos Humanos. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm. Acesso em 10 jan. 2022;

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998;

MENDES Jr. João. Os indigenas do Brazil, seus direitos individuaes e politicos. Typ. Hennies Irmãos, São Paulo, 1912, pp.58-60.

PAULA, José Maria de. Terras dos Índios (Boletim no 1, Ministério da Agricultura, Serviço de Proteção aos Índios, l944), pp. 69 e 70;

VILLARES, Luiz Fernando, YAMADA, Erica Magami. Julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol: Todo Dia Era Dia de Índio. Revista Direito GV São Paulo. n. 11. jan. – jun. 2010. pp. 143-159;

ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: https://brasa.org.br/declaracao-universal-dos-direitos-humanos/?gclid=CjwKCAiA5t-OBhByEiwAhR-hmwjh0Rc1bnp1S0N1ZL2Xv7M5YIXdgBAxt2o49o53KQ3Gl45U68AHThoCD_kQAvD_BwE. Acesso em 10 jan. 2022.

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Sobre o autor
Ezequiel Alves Pereira

Advogado Fundador do escritório Alves Pereira Advogados Associados. Consultor LGPD. DPO. Graduado em Direito pela FADAP/FAP. Inscrito na OAB/SP sob n° 379.075. Pós Graduado em LGPD. Mestrando pela Unesp. Curso de Cyber Hacking pela FIA. Atualmente é Presidente da Comissão de Direito Digital da 34ª Subseção da OAB/SP. Instagram @adv.ezequielalves

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