BREVE ANÁLISE COMPARATIVA DA IMPRESCRITIBILIDADE/USUCAPIÃO DOS IMÓVEIS PÚBLICOS NO SISTEMA JURÍDICO PORTUGUÊS E BRASILEIRO
O presente artigo visa realizar uma breve análise acerca do instituto da usucapião dos imóveis públicos na legislação portuguesa e brasileira, buscando as razões que justificam e fundamentam a imprescritibilidade desses bens, o tratamento legislativo e reflexões sobre a (im)possibilidade de usucapião desses bens.
A USUCAPIÃO E IMPRESCRITIBILIDADE DOS IMÓVEIS PÚBLICOS NO DIREITO PORTUGUÊS
Antes de aprofundar no estudo acerca da imprescritibilidade dos imóveis públicos portugueses, é necessário discorrer brevemente sobre a evolução histórica do estudo dos bens públicos, para em seguida aprofundar na análise dos imóveis públicos portugueses, da sua imprescritibilidade e (im)possibilidade de usucapião.
O estudo sobre o patrimônio público nos remete ao Direito Romano, sendo que já naquela época, Caio e Justiniano, nas Instiutas, se referiam aos bens públicos por meio da divisão em: res nullius, coisas exta commercium (coisas fora do comércio), dentre as quais existiam as res communes (mares, portos, estuários, rios, insuscetíveis de apropriação privada), as res publicae, que pertencia ao povo (terras, escravos, de propriedade de todos e subtraídas ao comércio jurídico) e res universitatis (fórum, ruas, praças públicas)1.
Já a abordagem das coisas públicas pelo direito alemão, um dos precursores no estudo dos bens públicos com inegável contribuição acadêmica e prática na evolução dessa seara, propuseram o estabelecimento de um regime jurídico especial derrogatório do sistema privado, mas condicionando à proteção do bem à efetiva concretização da finalidade pública, denotando forte caráter funcionalista2.
Os franceses também protagonizaram ao aprofundarem o estudo jurídico do direito administrativo de bens, sendo que em meados do século XIX, Victor Proudhon, professor da Faculdade de Direito de Dijon, em sua obra Traité du Domaine Public, consagrou conceitualmente a expressão “Domínio Público”, como sendo um conjunto de bens afetados à utilização pública e que, por isso, sofrem restrições quanto a sua alienabilidade e prescritibilidade3.
Em Portugal, a Lei Mental de 1434 já tratou da defesa e conservação do patrimônio Real, definindo regras de sucessão de bens da Coroa, sendo tais bens reconhecidos nas Ordenações Afonsinas, disciplinando os diretos reaaes e devidamente mantido nas Ordenações Manuelinas, com poucas alterações4.
Em 1832, o Decreto Nº 44 de 13 de agosto introduziu concepções francesas, despontando o indício de patrimônio de domínio público e privado em Portugal5. A Constituição de 1933 ratificou a existência de domínio público e privado do Estado6.
A Constituição Portuguesa de 1976 prevê expressamente em seu art. 84 os Bens de Domínio Público, impondo ao legislador a tarefa de definir os bens que integram o patrimônio do Estado, das regiões autônomas e das autarquias locais, e estipular seus regimes jurídicos e suas condições de utilização.
Em 7 de agosto de 2007 fora publicado em Portugal o Decreto Lei Nº 280, que estabeleceu o Regime Jurídico do Patrimônio Imobiliário Público Português - RJPIPP, abordando diversos temas, dentre eles os princípios que devam nortear a gestão dos imóveis públicos, previsão expressa e conceituação da afetação e desafetação (expressa, tácita e fática), formas de usos, a distinção entre domínio público e domínio privado, meios de aquisição, inventário dos bens, arrendamento, venda, permuta e outras normas relevantes para uma melhor gestão do patrimônio imobiliário.
A separação entre domínio privado e público depende da análise se determinado imóvel está ou não cumprindo uma finalidade pública. A imposição de um regime jurídico mais rígido para proteção de determinado imóvel somente se justificaria se a finalidade pública prevista na afetação seja efetivamente realizada7.
Parte expressiva da doutrina brasileira e majoritariamente a portuguesa defende que eventual regime jurídico publicista derrogatório de regras privatistas no tratamento da propriedade imobiliária pública somente se legitima quando o bem cumpre determinada finalidade pública, por exemplo, a prestação de um serviço, o uso comum de uma praça para recreação ou a destinação de um imóvel público para a construção de um hospital.
Se a propriedade privada deve cumprir a função social, o bem público deve ser a própria função social e, se assim não for, deixa de ser deste modo entendido, protegido, e eventuais abandonos e ociosidades devam ser combatidas por qualquer sistema jurídico.
Em Portugal, entrou em vigor no dia 01 de outubro, de 2019, a nova Lei nº 83 Bases da Moradia, que impõe aos imóveis privados e públicos, o dever de cumprimento da função social. Vejamos o que diz o art. 28: “ 2 - O Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais têm o dever de promover o uso efetivo de habitações devolutas de propriedade pública e incentivar o uso efetivo de habitações devolutas de propriedade privada, em especial nas zonas de maior pressão urbanística. ”.8
Considerando que os bens públicos são verdadeiros instrumentos de concretização e promoção de diversos direitos fundamentais, há a imposição aos gestores públicos de buscarem o máximo aproveitamento, até mesmo afetações múltiplas nos imóveis, desde que não prejudique a finalidade pública principal9, por exemplo, Naming Rights10.
Após a análise histórica do estudo dos bens públicos, podemos afirmar que o patrimônio do Estado português é composto por duas categorias de bens: Bens de Domínio Público e Bens de Domínio Privado.11
A Constituição da República Portuguesa de 1976, em seu art. 84, define os bens que integram o domínio público, sem qualquer menção direta aos imóveis públicos. O art. 2º, do Decreto Lei nº 477/80, criou o Inventário geral do património do Estado, definindo o património do Estado como “o conjunto de bens do seu domínio público e privado e dos direitos e obrigações com conteúdo económico de que o Estado é titular como pessoa colectiva de direito público”.
Os imóveis integrantes do Domínio Público são aqueles que, dada sua natureza intrínseca ou por ato formal, é afetado a uma utilidade pública12, logo, esses bens gozam de uma proteção normativa a fim de que cumpram sua finalidade.
O DL Nº 280 restringe a proteção da imprescritibilidade somente aos bens do domínio público, vejamos “Os imóveis do domínio público não são susceptíveis de aquisição por usucapião.”(art. 19).
Ainda, o art. 202 do atual Código Civil Lusitano prevê:
2. Consideram-se, porém, fora do comércio todas as coisas que não podem ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontram no domínio público e as que são, por sua natureza, insusceptíveis de apropriação individual.
Tal restrição é confirmada no art.1.304 do Código Civil Português:
“Art. 1.304º.
O domínio das coisas pertencentes ao Estado ou a quaisquer outras pessoas
colectivas públicas está igualmente sujeito às disposições deste código em tudo o que não for especialmente regulado e não contrarie a natureza própria daquele domínio”13.
A vigência da norma da imprescritibilidade é amplamente reconhecida pela doutrina e jurisprudência jus administrativas (cfr. por todos, Marcello Caetano, Manual, Vol. I, p. 891; Acórdão do STA de 20 de junho de 1995, processo n.o 36717) desde muito tempo anterior à entrada em vigor do RJPIP. 14
Vale destacar que, caso a afetação decorra de um ato externo, ou seja, não advenha da natureza do imóvel, a eficácia da protetiva da imprescritibilidade inerente aos bens de domínio público necessitará da concretização das utilidades apontadas no ato de afetação15.
O artigo 17º do DL 280 prevê que “Quando sejam desafectados das utilidades que justificam a sujeição ao regime da dominialidade, os imóveis deixam de integrar o domínio público, ingressando no domínio privado do Estado, das Regiões Autó-nomas ou das autarquias locais.”
A desafetação, enquanto reverso da medalha da afetação, corresponde à perda da ligação funcional entre o bem público e o fim que justifica a sua integração no domínio público de uma dada pessoa coletiva. É, pois, uma forma de cessação da dominialidade por desaparecimento da utilidade pública.16
Portanto, pode-se afirmar que os imóveis de Domínio Privado são suscetíveis de usucapião17, nesse sentido a jurisprudência portuguesa reconhece tal possibilidade:
Acórdão Supremo Tribunal de Justiça número 0849518
“I - De harmonia com o disposto no n. 2 do artigo 12 do Código Civil a lei nova é competente para regular a constituição das situações jurídicas cujo processo constitutivo não está concluido no momento da sua entrada em vigor, salvo quanto á validade formal e á capacidade, embora a lei nova só
possa conferir eficácia constitutiva a factos passados sob o domínio da lei antiga se esta já atribuia relevância idêntica aos mesmos factos. II - Tendo o início da posse ocorrido, na pior das hipóteses, no ano de 1949, estava em curso de constituição a aquisição originária do domínio útil de determinados prédios urbanos por usucapião, que era de trinta anos (artigo 529 do Código Civil de 1867). III - Quanto ao decurso do prazo para aquisição do direito, atento o disposto no n. 1 do artigo 279 do Código Civil, como o novo prazo de quinze anos (artigo 1296 do mesmo Código) só se conta a partir da entrada em vigor da lei nova, o prazo a considerar é o da lei antiga porque falta menos tempo para o prazo se completar. IV - O domínio útil dos prédios foreiros à Fazenda Nacional, pertencentes ao domínio privado do Território de Macau é susceptível de aquisição por usucapião”
Acórdão Supremo Tribunal de Justiça número 07408519
“I - A determinação do sentido juridicamente relevante da vontade negocial e questão de direito - artigo 326, n. 1, do Codigo Civil - e como tal objecto idoneo do recurso de revista. II - A autoridade do caso julgado so pode, para alem da decisão proferida, estender-se a resolução das questões preliminares que sejam antecedente logico indispensavel a emissão da parte dispositiva do julgado. III - A concessão provisoria a Real Confraria da Rainha Santa Isabel (Coimbra) das casas denominadas Hospicio da Hospedaria e do Corredor e inconfundivel com uma concessão precaria ou livremente revogavel e antes representa uma doação onerosa. IV - Os bens do dominio privado do Estado podem ser adquiridos por usucapião desde que, para alem dos prazos normais decorra mais metade dos mesmos (Lei n. 54, de 16 de Julho de 1913)”
Ora, uma vez descumprida a função social do imóvel, não há fundamentos jurídicos que sustentem a proteção legal pelo Estado, inclusive da usucapião. Com efeito, caso os próprios particulares promovam a utilização de um prédio público abandonado por décadas para fins de moradia, estaria se concretizando direitos fundamentais e efetivando o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.
Não é admissível que um imóvel público possa estar completamente abandonado, portanto, desacoplado de sua afetação e da concretização de direito coletivos e, ainda, continue regido por normas públicas derrogatórias do direito privado.
Caso ainda persista, tal proteção normativa estará, na verdade, fomentando que o imóvel continue ocioso, abandonado e mal gerido pelo gestor, não remanescendo motivos propulsionadores para o gestor concretizar o princípio do interesse público, da proteção e boa administração desses imóveis.
A vedação da usucapião irrestrita dos bens desafetados e abandonados não acarretaria a perda desse imóvel pela postura inerte do Estado Português, mesmo em situações em que os particulares efetivasse a função social do bem e do direito à moradia e dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, mister trazer à baila doutrina de Leitão, indicando que a usucapião só pode abranger bens que sejam objeto de direitos privados, sejam eles bens móveis ou bens imóveis, mormente por força da Lei 54, de 16 de julho de 191320.
Andou bem o legislador português ao diferenciar que somente os imóveis públicos dotados de finalidade pública e, que por isso integram o Domínio Público, são abarcados por um conjunto normativo especial protetivo para cumprir tal finalidade pública.
A administração pública nunca foi e nem será uma boa gestora dos bens públicos, não faz parte da sua essência e finalidade a gestão imobiliária. A maioria dos Estados nacionais não sabem sequer o número de imóveis que possuem e quais são.
Assim, quanto menos imóveis geridos diretamente pelo Estado, haverá ambiente propício de economia de verbas públicas e, consequentemente o agente público concentrará sua gestão na busca e concretização dos interesses públicos primários.
Em síntese, a imprescritibilidade (vedação à usucapião) na legislação portuguesa é restrita aos imóveis públicos que integram domínio público, ou seja, somente os bens formais e materialmente afetados a uma utilidade pública, sendo que, caso estes bens não estejam materialmente afetados, integrarão o domínio privado factível de usucapião.
A USUCAPIÃO E A IMPRESCRITIBILIDADE DOS IMÓVEIS PÚBLICOS NO DIREITO BRASILEIRO
A Constituição de 1967, no art. 164, substituiu a usucapião pro labore (prevista nas Constituições de 1934,1937 e 1946) pela usucapião de terras públicas, vejamos: “lei federal disporá sobre as condições de legitimação de posse e de preferência para aquisição, até cem hectares, de terras públicas por aqueles que as tornarem produtivas com o seu trabalho e o de sua família”21.
Nesse sentido, foi elaborada a Lei nº 6.383, de 7-12-76, cujos artigos 29 a 31 estabeleceram as condições para a legitimação de posse e preferência para aquisição.
Contudo, a Constituição Federal de 1.988 andou em caminho oposto, prevendo expressa e taxativamente a imprescritibilidade dos imóveis públicos, vejamos o art. 183: “§ 3º Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião” e a reafirmação do art. 191, parágrafo único: “Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.”
Logo, a CF/88, ao vedar expressamente que os imóveis públicos são insuscetíveis de usucapião, acabou por não recepcionar a legislação que outrora permitia tal modalidade de aquisição prescritiva em face do poder público, por incompatibilidade material com a nova ordem constitucional.
Em sentido diverso ao que ocorre no direito português, em que inexiste norma constitucional vedando a usucapião dos imóveis públicos, o constituinte brasileiro positivou a 22imprescritibilidade de todos os imóveis públicos, sem qualquer nuance relativa se estes pertencem ao domínio público ou privado.
Não há na legislação brasileira dispositivo semelhante que autorize a usucapião dos imóveis públicos, apesar de existir situações consolidadas na prática, de existência de usucapião em face de imóveis públicos, na visão de alguns autores.
A Lei nº 601, de 1850, “Lei de Terras” (primeira), fixou a imprescritabilidade como forma protetiva da propriedade.
O art. 67 do Código Civil de 1.916 já vedava a usucapião; o Decreto Lei nº 710, de 17 de setembro de 193823 previa: “Art. 12. É obrigatória a citação da Diretoria do Domínio da União em todas as ações de usucapião, bem como dos representantes do Estado ou do Distrito Federal, sob pena de nulidade do processo. § 1º Ressalvado o disposto no art. 148 da Constituição, não corre usucapião contra os bens públicos de qualquer natureza.”; Já o Decreto-Lei nº 9.760/1946, previu: art. 200 “Os bens imóveis da União, seja qual fôr a sua natureza, não são sujeitos a usucapião.”; Por sua vez, o Decreto nº 19.924/1931, art. 1º: “Art. 1º Compete aos Estados regular a administração, concessão, exploração, uso e transmissão das terras devolutas, que lhes pertencem, excluída sempre (Cód. Civil, arts. 66 e 67) a aquisição por usucapião, e na conformidade do presente decreto e leis federais aplicáveis.”; E, por fim, o Decreto nº 22.785/1933, art. 2º prescreveu: “Art. 2º Os bens públicos, seja qual fôr a sua natureza, não são sujeitos a usocapitão”.
O Supremo Tribuna Federal, em sessão plenária de 13/12/1963, aprovou a Súmula nº 340 que prevê: “Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens 24públicos, não podem ser adquiridos por usucapião.”, com aplicação até os dias atuais:
Consoante apontado na aludida decisão, a questão dos autos cinge-se em aferir se o bem imóvel situado na Praia do Forte - SC, e vindicado pela parte ora agravante, estaria sujeito à aquisição por usucapião, restando incontroverso a posse mansa e pacífica por mais de vinte anos pela família desse, além de terceiros. A ação foi julgada improcedente na origem, e confirmada em sede de apelação, uma vez que há prova nos autos que dão conta ser a UNIÃO a legítima dona do terreno, este contido em uma área maior conforme assentado nos autos por meio de prova pericial, e, nos termos da atual Constituição, são insuscetíveis de prescrição aquisitiva, ou até mesmo antes dela, dado o entendimento sufragado por esta Suprema Corte na Súmula 340/STF: "Desde a vigência do Código Civil (1916 - Beviláqua), os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião". [AI 852.804 AgR, rel. min. Luiz Fux, 1ª T, j. 4-12-2012, DJE 22 de 1-2-2013.]
O Código Civil de 2002 reitera a vedação da usucapião dos bens públicos, criando um cenário quase irrestrito de proteção aos imóveis públicos no art 102 “. Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião”, quer seja bem dominical, de uso comum ou especial.
O STF adota posição restritiva quanto à possibilidade dos imóveis públicos, conforme julgados:
ARE 913941 / RS - RIO GRANDE DO SUL RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI Julgamento: 28/10/2016 Publicação: 23/11/2016 Publicação PROCESSO ELETRÔNICO DJe-249 DIVULG 22/11/2016 PUBLIC 23/11/2016 Partes RECTE.(S): MUNICÍPIO DE FARROUPILHA PROC.(A/S)(ES): PROCURADOR-GERAL DO MUNICÍPIO DE FARROUPILHA RECDO.(A/S): DEPARTAMENTO AUTÔNOMO DE ESTRADAS DE RODAGEM - DAER/RS PROC.(A/S)(ES): PROCURADOR-GERAL DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL RECDO.(A/S): UNIÃO PROC.(A/S)(ES): ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO Decisão DECISÃO: Vistos. Trata-se de agravo da decisão que não admitiu recurso extraordinário interposto contra acórdão da Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da Quarta Região, assim ementado: “ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. USUCAPIÃO. IMÓVEL PÚBLICO PERTENCENTE À UNIÃO (RFFSA). IMPOSSIBILIDADE. A legislação de regência leva à conclusão de ser inquestionável a impossibilidade de usucapião de bens do patrimônio da extinta RFFSA, que por disposição legal encontram-se inseridos dentre os bens públicos, de propriedade da União, não sujeitos a usucapião. Precedentes do STJ.” No recurso extraordinário, sustenta-se violação do artigo 183, § 3º, da Constituição Federal. Opina o Ministério Público Federal, em parecer da lavra do Subprocurador-Geral da República Dr. Odim Brandão Ferreira , pelo seguinte: “Recurso extraordinário com agravo. Pretensa aquisição do domínio de bem público por usucapião. Improcedência. Suposta violação do art. 183, § 3º, da CR. O recurso extraordinário é inviável. O acórdão recorrido não discutiu a tese do recorrente, que argumenta ser possível a usucapião de bem público por ente estatal. Súmulas 282, 283 e 356 do STF. Ademais, a contestação dos fatos assentados nas instâncias ordinárias e do termo de cessão de posse dos imóveis em litígio é procedimento que esbarra no óbice da Súmula 279 do STF. Parecer pelo desprovimento do agravo.” Decido. Colhe-se do voto condutor:
(...)Art. 200. Os bens imóveis da União, seja qual fôr a sua natureza, não são sujeitos a usucapião. Também o art. 183 da Constituição Federal no seu parágrafo terceiro diz que:§ 3º - Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião. (...)
No mesmo sentido, as seguintes decisões monocráticas: ARE nº 1002762/RS, Relator o Min. Ricardo Lewandowscki, DJe de 14/10/16 e AI nº 765.725/RS, relatora a Min. Cármen Lúcia, DJe de 11/11/09. Ante o exposto, nos termos do artigo 21, § 1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, nego seguimento ao recurso. Publique-se. Brasília, 28 de outubro de 2016. Ministro Dias Toffoli Relator Documento assinado digitalmente
AG.REG. NO AGRAVO DE INSTRUMENTO 852.804 SANTA CATARINA EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. USUCAPIÃO. BEM DOMINICAL. SUPOSTA AQUISIÇÃO EM DATA ANTERIOR AO REGISTRO DO BEM PELA UNIÃO. REEXAME DE FATOS E PROVAS. SÚMULA N. 279 DO STF. INVIABILIDADE DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. 1. A Súmula 279/STF dispõe: “Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário”. 2. É que o recurso extraordinário não se presta ao exame de questões que demandam revolvimento do contexto fático-probatório dos autos, adstringindo-se à análise da violação direta da ordem constitucional. 3. In casu, o acórdão recorrido assentou: “ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE USUCAPIÃO. BEM DOMINICAL. IMPOSSIBILIDADE DE ALIENAÇÃO. 1. A área objeto da presente ação constitui bem publico dominical, sobre o qual não pode incidir usucapião, nos termos dos arts. 183, § 3º, e 191, parágrafo único, da Constituição Federal. 2. Em que pese a demonstração pelo autor da posse mansa e pacífica do bem por período superior a vinte anos, sendo o imóvel propriedade da União, impossível a sua aquisição pela usucapião.” 4. Agravo regimental a que se nega provimento.
ACO 132 Órgão julgador: Tribunal Pleno Relator(a): Min. ALIOMAR BALEEIRO Julgamento: 04/04/1973 Publicação: 09/11/1973 - TERRAS DEVOLUTAS DE FRONTEIRAS - NULIDADE DA VENDA PELO ESTADO-MEMBRO. USUCAPIÃO DO DECRETO-LEI 9.760/46 - INAPLICABILIDADE DA LEI 2.437/55. I - As terras situadas na faixas ao longo das fronteiras nacionais, na largura prevista na Lei 601/1850 e Decreto. 1318/1854, em princípio, são do domínio da União, não sendo válidas as vendas delas feitas por Estados-membros, aos particulares, ressalvadas as exceções do art. 5º, do Decreto Lei nº 9.760/1.946. II - Os bens públicos imóveis da União não podem ser adquiridos por usucapião (C.C., art. 67; Dec. 22.785/33; Decreto Lei 9.760/46, art. 200) ressalvados os casos de "praescriptio longis simi temporis", a de 40 anos consumada antes de 1.917, e os do art. 5º, "e", do Decreto Lei 9.760/46. III- A lei 2.437/55, como disposição geral, não alterou o prazo de 20 anos da disposição especial do art. 5º, "e", do decreto Lei nº 9.760/46.(Introd. ao C.C art. 2º, § 2º).
Nesse sentido as cortes estaduais, vejamos:
“Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. BEM PÚBLICO. IMÓVEL REGISTRADO EM NOME DA EXTINTA COHAB. TRANSFERÊNCIA AO PATRIMÔNIO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. DISPENSABILIDADE DE REGISTRO NA MATRÍCULA. ACESSIO POSSESSIONIS INSUFICIENTE AO IMPLEMENTO DO PRAZO PRESCRICIONAL AQUISITIVO. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO CONFIGURADA. Caso em que o imóvel usucapiendo encontra-se registrado em nome da Companhia de Habitação do Estado do Rio Grande do Sul, extinta pela Lei Estadual nº 10.357/1995, cujo art. 4º dispôs acerca da transferência da propriedade dos bens móveis e imóveis ao patrimônio do Estado do Rio Grande do Sul. Prescindível, para fins de transferência da propriedade, o registro na matrícula, posto que sua ocorrência deu-se ex vi legis. Assim, operada a impossibilidade de usucapir o imóvel, por se tratar de bem público. Inteligência do §3º, do art. 183, e do § único, do art. 191, ambos da Magna Carta c/c o art. 102 do Diploma Civil. Acessio possessionis que não se mostrou suficiente ao implemento do prazo do usucapião extraoridinário do Código Civil de 1916, qual seja o de 20 anos, até a data da promulgação da mencionada Lei (16/01/1995). Manutenção da sentença que reconheceu a impossibilidade jurídica do pedido. Negaram provimento ao agravo. Unânime. (Apelação Cível Nº 70058254764, Vigésima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Dilso Domingos Pereira, Julgado em 26/03/2014)” 173.(PIETRO UAL)
Na mesma senda, o Superior Tribunal de Justiça – STJ também segue o método interpretativo literal restritivo como outrora aplica o STF:
“EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO REIVINDICATÓRIA. TERRACAP. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. ART. 535 DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. CERCEAMENTO DE DEFESA. REVISÃO DO JULGADO. REEXAME DE PROVAS. INVIABILIDADE. SÚMULA Nº
7/STJ. BENS PÚBLICOS PERTENCENTES À TERRACAP. USUCAPIÃO. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES. 1. (...) 4. Os imóveis administrados pela Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap) são públicos e, portanto, insuscetíveis de aquisição por meio de usucapião. 5. Agravo regimental não provido. (AgRg no Ag 977.032/DF, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/06/2012, DJe 29/06/2012)25”
Como se observa nas decisões supracitadas, a vedação da usucapião dos imóveis públicos limitou-se na aplicação de interpretação excessivamente legalista, bitolada no método gramatical, ignorando o método sistêmico, análise principiológica e a unidade constitucional.
Grande parte da doutrina acompanha o mesmo entendimento dos tribunais que vedam a usucapião dos bens públicos.
Leciona José dos Santos Carvalho Filho ser irrestrita a imprescritibilidade dos bens públicos, alcançando todas as espécies e categorias de bens públicos, quer seja de uso especial, uso comum ou dominical: “bens dominicais se enquadram como bens públicos, protegidos pela prescrição aquisitiva. As terras devolutas como se verá adiante se inserem com bens públicos, de modo que a elas também terá que ser estendida a garantia constitucional.O novo Código Civil espancou qualquer dúvida que ainda pudesse haver quanto à imprescritibilidade dos bens públicos, seja qual for a sua natureza. Nele se dispõe expressamente que “os bens públicos não estão sujeitos a usucapião” (art. 102). Como a lei não distinguiu, não caberá ao intérprete distinguir, de modo que o usucapião não poderá atingir nem os bens imóveis nem os bens móveis. ”26
Maria Sylvia Di Pietro também reconhece a imprescritabilidade dos bens públicos “São, portanto, características dos bens das duas modalidades integrantes do domínio público do Estado a inalienabilidade e, como decorrência desta, a imprescritibilidade, a impenhorabilidade e a impossibilidade de oneração.27 ”
Ainda, Celso Antônio Bandeira de Melo afirma que independe da categoria dos bens públicos, estes serão insuscetíveis de usucapião, invocando a clareza gramatical da vedação constitucional. Vai além, alicerça-se na tese de que a tradição normativa desde o Brasil-Colônia repelia a usucapião de terras públicas, inaugurado pela Lei nº 601/1850, e seu regulamento, n. 1.318, de 1854, impunham tal intelecção e os Decretos federais 19.924, de 27.4.31, 22,785, de 31.5.33, e 710, de 17.9.3828.
Por fim, Hely Lopes Meirelles afirma que a imprescritibilidade decorre da consequência lógica da inalienabilidade originária, de modo que não há direito contra direito, ou seja, não se possibilita um direito em desconformidade com o Direito29.
A imprescritibilidade dos imóveis públicos, consagrada no direito brasileiro, com sede constitucional e, devidamente reforçada pela legislação ordinária, com defesa majoritária da doutrina, não deve ser obstáculo às reflexões e às razões que fundamentam o instituto protetivo.
Bem como a análise sobre o descumprimento da premissa que fundamenta a imprescritibilidade acarreta consequências de cunho fático e jurídico.
Cristiana Fortini defende que a vedação de usucapião somente deve ocorrer sobre bens materialmente públicos, ou seja, exclusivamente sobre os bens que estejam cumprindo sua função social. 30
No mesmo sentido, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald rememoram que a personalidade jurídica do titular do bem não deve ser obstáculo à usucapião, devendo remanescer apenas na concretização do interesse público:
“Os bens públicos poderiam ser divididos em materialmente e formalmente públicos. Estes seriam aqueles registrados em nome da pessoa jurídica de Direito Público, porém excluídos de qualquer forma de ocupação, seja para moradia ou exercício de atividade produtiva. Já os bens materialmente públicos seriam aqueles aptos a preencher critérios de legitimidade e merecimento, postos dotados de alguma função social” 31.
Na visão desses autores, o propósito do legislador na proteção da usucapião dos imóveis públicos é restrita apenas aos bens materialmente públicos.32
Vale destacar que, o mesmo constituinte que impõe a vedação da usucapião dos bens públicos também ordena que a propriedade deve cumprir sua função social e garante a todos o direito fundamental à moradia, que por sua vez efetiva o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
Assim, resta evidente que quando há um imóvel público abandonado e o particular se apossa do bem para ver seu direito à moradia concretizado, ocorre claramente a colisão de direitos, princípios e normas, todos com sede constitucional.
Legítimo afirmar que na colisão entre a vedação à usucapião de bens públicos e os citados direitos fundamentais, bem como à dignidade da pessoa humana, os últimos deveriam prevalecer no caso concreto.
Não está se afastando uma regra em prol de um princípio, mas, realizando uma interpretação sistêmica, uma vez que, apesar de existir uma regra que proíbe a usucapião desses bens públicos, em contrapartida, há também o dever de cumprimento da função social dos imóveis, que deveria prevalecer quando a propriedade não cumpre a função social e, ainda, viola o princípio da dignidade da pessoa humana33.
Na linha defendida por Cristiana Fortini, Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves, a imprescritibilidade está restrita aos bens materialmente públicos, se determinado imóvel encontra-se abandonado sem qualquer finalidade pública.
Ou seja, na visão destes autores, não seria um imóvel público, na realidade, seria apenas bens titularizados pelo Estado, de modo que, caso o particular concretize a função social de competência do gestor, não deveria prevalecer tal imprescritibilidade.
Portanto, não se deve confundir titularidade imobiliária com a natureza jurídica do bem.
Outrossim, a proteção cega da imprescritibilidade sobre todo e qualquer imóvel público, sem qualquer condicionante, consagrará a má gestão. Por exemplo, um hospital público desativado e abandonado, continuará nessa condição se o gestor tiver a tranquilidade de que esse bem jamais será usucapido.
Não é coerente com nosso catálogo de direitos e princípios fundamentais expressos na CF/88, estimular que imóveis públicos abandonados pelo Estado por décadas continuem protegidos em detrimento da coletividade que, eventualmente, consegue materializar a função social e concretizar o direito à moradia, que também têm sede constitucional.
Estima-se que somente no âmbito da União, há pelo menos 18 mil imóveis desocupados, sendo que foi despendido em 2016, o valor absurdo de cerca de R$ 1,7 bilhão e em 2015, R$ 1,5 bilhão, com aluguel para instalações da administração pública federal34.
O valor líquido contábil dos imóveis da União é de R$ 1,306 trilhão, conforme Balanço Geral da União (31/12/2019), sendo que esses bens decorrem, por exemplo, da apreensão de ilícitos, extinção de órgãos e cobranças de dívidas tributárias e não tributárias35.
A acumulação indevida de inúmeros imóveis pela União acarreta o abandono da maioria da parcela destes, a subutilização, invasões, furtos das instalações prediais, apossamento indevido, deterioração e depreciações, onerando indevidamente o erário.
Paradoxalmente, há notícia veiculada pelo Correio Brasiliense, de que a União foi impedida por fiscais do Ibama de realizar leilão de um imóvel funcional (na Asa Norte em Brasília), pois esta estava ocupado por uma família de urubus (animal silvestre da fauna brasileira que goza de proteção ambiental). A Secretaria do Patrimônio da União - SPU informou que procedeu com aquisição de telas para lacrar a varanda assim que os filhotes possam voar.36
No Brasil, segundo informações do Relatório de Impacto TETO Brasil, existem aproximadamente 5,8 milhões de famílias sem residência ou que vivem em condições insalubres e precárias, sendo que mais de 100 milhões de brasileiros não têm acesso à coleta de esgoto37. Segundo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2022, havia ao menos 281.472 pessoas vivendo nas ruas pelo país38.
Ou seja, mesmo diante da elevada necessidade de concretização ao direito de moradia de inúmeras famílias brasileiras, há situação de abandono dos imóveis públicos brasileiros, que é gravíssima e inconteste.
Em relação a esse abandono, há inúmeros casos em todas as esferas, seja federal, estadual, municipal, na administração pública direta, indireta e até mesmo em algumas parcerias públicas privadas. Ainda, importante salientar que a manutenção desses bens possuiu um custo elevadíssima, sendo que na maioria, estão em estado deplorável.
Luís Roberto Barroso orienta que no universo da colisão, da ponderação e da argumentação não é exequível uma resposta correta e pronta para as colisões jurídicas de direitos, mas deve-se buscar soluções argumentativas e racionais. A legitimidade da decisão dependerá da adequação na realização da vontade constitucional em concreto39.
A imprescritibilidade viabiliza a execução de uma finalidade pública, mas se tal não ocorre, não é legitima essa proteção, caso mantida, apenas nutrirá ainda mais o abandono da grande maioria dos imóveis públicos brasileiros.
Klaus Stern, invocando a autoridade do Tribunal Constitucional Federal alemão, informa que as disposições constitucionais devem ser interpretadas de forma compatível com normas fundamentais da Lei Fundamental, de modo que conflitos devem ser dirimidos, privilegiando disposição constitucional de maior valor no caso concreto.40
A utilização da ponderação impede que cada dispositivo seja desconsiderado integralmente, de maneira que o cumprimento da função social da propriedade e da dignidade da pessoa humana e eventual supressão momentânea à vedação constitucional da usucapião, em alguns casos concretos, não implica na negação integral da vigência dessa norma41.
Contudo, caso mantida a imprescritibilidade nas situações em que a função social é totalmente descumprida, sem qualquer ponderação de valores, haverá desprezo integral à norma que impõe o cumprimento da função social, dignidade da pessoa humana e direito à moradia, descaracterizando a unidade sistêmica constitucional42.
Apesar da vedação à usucapião dos imóveis públicos estar positivada pela legislação constitucional e infraconstitucional, com defesa da grande maioria da doutrina e jurisprudência, existem decisões inovadoras baseadas na função social da propriedade permitindo a usucapião de imóveis públicos. Vejamos:
“Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE DE BEM IMÓVEL. REJEITADA A PRELIMINAR DE INCOMPETÊNCIA PARA PROCESSAMENTO DO FEITO PELA JUSTIÇA ESTADUAL. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA REFORMADA. SITUAÇÃO CONCRETA EM QUE SE MANTÉM O APELANTE NA POSSE DO IMÓVEL. COLISÃO ENTRE DIREITOS. PONDERAÇÃO. DIREITO DE MORADIA VERSUS DIREITO À PROPRIEDADE. FUNÇÃO SOCIAL. Apelação Cível n. 70056294556
Caso em que nem a autora, ora apelada, nem a proprietária do bem (União Federal) dão qualquer destinação social ao imóvel, ao contrário do autor, que reside com sua família no local. Colisão do direito de propriedade com direito social constitucionalmente assegurado, qual seja, moradia. RECURSO PROVIDO. (Apelação Cível Nº 70056294556, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Renato Alves da Silva, Julgado em 31/10/2013) “[...] Se é certo que a Constituição Federal, em seu Art. 5º, XXII, garante o direito de propriedade, no mesmo Art. 5º, XXIII, dispõe que esta deve atender sua função social. Mais. Está previsto no Art. 1º da mesma Carta, que a Republica Federativa do Brasil tem como fundamento, dentre outros, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Em seu Art. 6º, garante como direito social a moradia e a assistência aos desemparados. [...]43”.
A decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul está fundada na destinação social efetivada pelo possuidor, na dignidade da pessoa humana e no direito à moradia, permitindo a usucapião de imóvel público pertencente à União.
Ainda, reforçando o ensinamento de bens materialmente públicos, houve decisão nos autos da Apelação Cível n. 70054914296, afastando a imprescritibilidade de todo e qualquer bem público:
“Ementa: APELAÇÃO. USUCAPIÃO. ELEMENTOS DE PROVA QUE APONTAM PARA ALIENAÇÃO DO BEM PÚBLICO A PARTICULARES HÁ MUITO TEMPO. SITUAÇÃO FÁTICA CONSOLIDADA. No caso, há muito tempo, não há destinação pública da área e, ao que tudo indica, houve fracionamento do todo maior, de propriedade do Município, em lotes, sendo o imóvel em questão objeto de alienação a particulares há décadas. As circunstâncias fáticas e os elementos de prova trazidos ao feito conduzem ao entendimento de que o imóvel pretendido usucapir não mais integra o patrimônio do Município, DESPINDO-SE DO ATRIBUTO DE BEM PÚBLICO, apesar, do registro formal. APELAÇÃO DESPROVIDA. (Apelação Cível Nº 70054914296, Vigésima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Glênio José Wasserstein Hekman, Julgado em 13/11/2013)”44
Em síntese, a grande maioria dos tribunais tendem a adotar postura eminentemente positivista, legalista e literal, mas é importante não desprezarmos algumas decisões em sentido contrário à imprescritibilidade absoluta dos bens públicos, reconhecendo a usucapião de imóveis públicos e dando o cumprimento do também princípio constitucional da Função Social da Propriedade, direito à moradia e dignidade humana.
Frise-se que em todas as decisões acima colacionadas, houve a flexibilização da norma protetiva aos bens públicos, sendo consubstanciadas na análise factual dos casos concretos e não em mera análise perfunctória literal das normas em colisão.
É importante concluir que devemos continuar atentos e observando o comportamento e, quiçá, o avanço da nossa jurisprudência, bem como os debates nos palcos doutrinários, para quem sabe, contemplaremos alguma alteração legislativa, a fim de diminuir o grave quadro de abandono do imobiliário público brasileiro.
Por fim, destaco que, possivelmente, o conjunto de soluções portuguesas que não protege bens do domínio privado da usucapião, possa, de alguma forma, ser replicado no Brasil, uma vez que tal posição legislativa teve potencial de mitigar a demanda por moradia dos cidadãos portugueses, amenizando também o quadro de abandono imobiliário público naquele país.
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