Lei n. 14.597/23 e o “desvínculo” de emprego:

Novidades vetustas ou a caixa de pandora da “modernização das relações de trabalho

Leia nesta página:

Quem, de três milênios, não é capaz de se dar conta, vive na escuridão, na sombra, à mercê dos dias, do tempo. Johann Goethe

Não são poucos os exemplos na matemática em que a soma de um mais dois não resulta três. Se andarmos um passo para frente e dois para trás, não teremos avançado três passos, mas retrocedido um. É justamente isso o que está acontecendo com o Direito do Trabalho nos últimos anos.

Recentes alterações legislativas e decisões judiciais – em especial da mais alta corte judiciária – vêm fazendo com que o Direito do Trabalho retroceda, não um ou dos passos na história, mas séculos. Retrocesso este, para não deixar dúvida alguma, sob o ponto de vista dos sujeitos que vivem do trabalho, cuja proteção é a razão de ser da legislação social, mas “modernização”, “avanço” e “flexibilização” segundo a perspectiva do capital e dos sujeitos que vivem da exploração do trabalho alheio.

A mais nova mudança foi a aprovação da Lei nº 14.597, de 14 de junho de 2023, que institui a Lei Geral do Esporte.

Seguindo uma tendência legislativa e jurisprudencial de desproteção social, dispõe a lei em questão em seu art. 82:

Art. 82. A atividade assalariada não é a única forma de caracterização da profissionalização do atleta, do treinador e do árbitro esportivo, sendo possível também definir como profissional quem é remunerado por meio de contratos de natureza cível, vedada a sua participação como sócio ou acionista da organização esportiva.

Parágrafo único. A atividade profissional do atleta, do treinador e do árbitro esportivo não constitui por si relação de emprego com a organização com a qual ele mantenha vínculo de natureza meramente esportiva, caracterizado pela liberdade de contratação.

De plano, algumas questões chamam a atenção.

Em primeiro lugar, o eufemismo de chamar o vínculo de emprego de “atividade assalariada”. É como se, seguindo as recomendações dos mais “modernos” coaches de “recursos humanos”, o empregado não pudesse mais ser chamado de empregado, mas sim de “colaborador”, distorção linguística utilizada justamente para disfarçar o que ele realmente é um ser humano empregado pelo capital com o objetivo de lucr8o.

Como bem alerta Michel Foucault “o signo pode ter duas posições: ou faz parte, a título de elemento, daquilo que ele serve para designar, ou é dele real e atualmente separado”.1 Mais do que descrever e explicar o que existe, parece que o léxico trabalhista contemporâneo, desprotetivo da pessoa, tenta, a todo custo, reduzir custos, com o perdão da redundância, invisibilizando as mazelas da relação entre capital e trabalho.

Além disso, causa espanto a lei ter de dizer que “é possível também definir como profissional quem é remunerado por meio de contratos de natureza cível”. Na verdade, nunca foi proibida ou impossível a contratação de atleta profissional por contrato de natureza civil. Pelo contrário, essa era a regra no Século XVIII, quando o Direito do Trabalho ainda não existia. Observe-se, ainda, que, segundo a “nova” lei, a atividade não será “assalariada”, embora o profissional seja “remunerado”.

Ainda, por que motivo deve ser “vedada a sua participação como sócio ou acionista da organização esportiva”? Então o trabalhador não pode ser sócio, ou acionista da entidade em que trabalha? E a tão almejada autonomia da vontade? E a livre iniciativa? E a liberdade contratual? Essa última inclusive invocada expressamente pela própria lei. Estaria aqui Legislador, como que por um pseudo ato-falho, admitindo que não está fazendo nada mais do que institucionalizar a fraude, para logo em seguida seu superego lhe advertir de que tudo na vida deve ter um limite?!

Se, conforme o antigo brocardo hermenêutico, a lei não tem palavras inúteis, por que motivo o parágrafo único do artigo transcrito estabelece que “a atividade profissional do atleta, do treinador e do árbitro esportivo não constitui por si relação de emprego com a organização com a qual ele mantenha vínculo de natureza meramente esportiva”? Nunca se reconheceu vínculo de emprego sem que estivessem presentes os requisitos necessários para a sua configuração: pessoalidade, não-eventualidade, subordinação e onerosidade.

A questão é mais do que simples, tangenciando as raias do simplório: presentes os requisitos fático-jurídicos previstos no art. 3o da CLT, há vínculo de emprego, gerando direitos e deveres às partes. Fora disso, há uma infinidade de possibilidades, sem qualquer fundamento para estabelecer o “desvínculo” de emprego, lançando mão de um neologismo nem tão novo assim.2

Talvez o real objetivo da lei não seja dizer o óbvio – que não há vínculo de emprego quando não estejam preenchidos os requisitos necessários para que haja um vínculo de emprego –, mas, mais uma vez, institucionalizar a fraude. Tal qual o cinema com suas continuações em série e franquias sem início, meio e fim, o Legislador brasileiro insiste em remakes de trillers de suspense e terror do Direito do Trabalho, requentando antigas fórmulas ou criando figuras horripilantes como as estabelecidas nos arts. 442, parágrafo único, da CLT (cooperativados), 442-B também da CLT (autônomos com pessoalidade) e da Lei no 14.297/22 (entregadores sem vínculo de emprego).

Em face da mais recente atualização normativa e dessa ode à liberdade contratual, não podemos deixar de considerar que, segundo relatório da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), mais da metade dos atletas profissionais de futebol recebem valores equivalentes a um salário-mínimo e que quase 90% recebem menos de cinco salários-mínimos. Além disso, dos mais de 360 mil atletas registrados na CBF, 75% são amadores e não encontraram no futebol sua principal fonte de sustento.3 Se essa é a realidade do esporte que é a “paixão nacional”, o que se dirá das demais modalidades esportivas?

A prática de desvirtuar as relações de emprego para que se tornem contratos de natureza civil não é exclusiva dos atletas, nem é tão nova assim.

Há quase trinta anos, o Legislador ordinário já alterara a CLT para impedir o reconhecimento do vínculo de emprego entre sociedade cooperativa e seus associados, ou entre esses e os tomadores de serviço daquela. Ora, é comezinho que não há vínculo de emprego entre cooperados, haja vista tratarem-se de trabalhadores autônomos. Então, por que acrescentar isso na lei? Em que sentido deveria ser considerada uma inovação no Ordenamento Jurídico Trabalhista?

Retrocedendo um pouco mais, há quase meio século, a Lei nº 6.094, de 30 de agosto de 1974, dispunha não haver vínculo de emprego entre o condutor autônomo de veículo rodoviário e seus auxiliares, até o máximo de dois. A questão que insiste: por que o Estado tem de dizer que não há vínculo de emprego se o trabalho dos auxiliares se der efetivamente de forma autônoma, ou seja, sem subordinação? E mais, por que limitar a dois auxiliares? Será novamente a instituição da fraude, mas com algum limite?

Se retrocedermos ainda mais, aproximadamente uns dois séculos na história, chegaremos ao auge da autonomia da vontade, em que as relações de trabalho eram mantidas por contratos de natureza civil e a liberdade de contratar imperava sem as peias da legislação trabalhista. Os famigerados “bons tempos”, em que todos viviam livres, em harmonia, sem a intervenção do Estado para cercear os quereres entre iguais...

Este caminho de “modernização às avessas”4 não está sendo seguido apenas pelo Congresso Nacional. Em recentes decisões, o Supremo Tribunal Federal também vem “avançando para trás”.

Em 2018, ao decidir o mérito do RE no 958252, que deu origem ao Tema no 725, o STF entendeu “lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas (...)”. A partir deste entendimento, passou a se considerar regular toda a forma de intermediação de mão de obra, independente do número de desdobramentos, terceirização, quarteirização, etc... Sistemática que nos faz lembrar trecho da música Flor da Idade, do genial Chico Buarque: “Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo Que amava Juca que amava Dora que amava...”. Só que, em vez de amor, estamos falando de precarização, representação máxima de “desamor” e “desvínculos”.

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E assim mais uma vez se abria a “caixa de pandora trabalhista”. Engana-se quem pensa que a terceirização é uma forma de modernização da estrutura produtiva. Karl Marx já denunciava, n’O Capital, as diferentes formas de terceirização e intermediação de mão-de-obra nos primórdios do capitalismo, bem como a sua proibição pelas primeiras leis laborais, justamente por se reconhecer a precariedade que essa forma de organização da atividade empresarial implicava às relações de trabalho.5

A partir desse Leading Case (para utilizar a denominação “moderna”, adotada pelo próprio STF) várias outras decisões foram tomadas, citando o Tema no 725 – sobre terceirização(!) – para legitimar formas alternativas de trabalho, sem o reconhecimento do vínculo de emprego: médicos com hospitais; professores com escolas; advogados com escritórios de advocacia; motoristas com empresas de transporte e, mais recentemente, motoristas com empresas-plataforma.

Curiosamente, em tais decisões, a mais alta corte de justiça do país não vem julgando apenas contra a legislação trabalhista, os princípios e os fundamentos do Direito do Trabalho. A própria sistemática processual e a teoria geral do processo vêm sendo vilipendiadas. Confundindo matéria de mérito com questões preliminares, o Supremo tem entendido que, ainda que o trabalhador alegue a existência de fraude, coação ou qualquer vício de vontade na contratação e postule o reconhecimento do vínculo de emprego, a competência será da Justiça Comum pela simples existência formal de um contrato civil entre as partes, independentemente da validade de tal contrato.

Com isso, não apenas afasta a aplicação do art. 9º da CLT – sem declarar a sua inconstitucionalidade – deixa de observar o princípio da proteção e as suas vertentes da aplicação da norma mais favorável e do in dubio pro operario, bem como o princípio da primazia da realidade; são simplesmente ignorados os próprios fundamentos e a razão de existir do Direito do Trabalho enquanto limitador da autonomia da vontade das partes.

Sob o pretexto de respeitar a liberdade contratual, o STF descumpre a própria Constituição Federal ao desconsiderar os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Observe-se, a propósito, que, como já insistimos em outros textos,6 os fundamentos da República não são nem o trabalho nem a livre iniciativa, mas os valores sociais que tanto o trabalho quanto a livre iniciativa devem respeitar. Além disso, essas medidas legislativas e decisões judiciais contrariam o mais básico direito fundamental dos trabalhadores que é o de ter reconhecida a relação de emprego, conforme preceitua o inciso I do art. 7º da Constituição Federal.

Todo esse aparato constitucional, legislativo e principiológico não existe por acaso. Em meados do século XIX, Lacordaire já advertia que "entre os fortes e fracos, entre ricos e pobres, entre senhor e servo é a liberdade que oprime e a lei que liberta". Se não quisermos retornar aos primórdios do capitalismo, podemos voltar “apenas” pouco mais de meio século – para o ano de 1966, quando o FGTS foi instituído como uma opção para o trabalhador e, na prática, se mostrou uma condição para a sua efetiva contratação – para nos darmos conta de que a liberdade de contratação entre uma pessoa que, por definição, deve obedecer a quem a está contratando não passa de uma falácia.

As alegadas “modernizações” das relações de trabalho tratadas no presente texto não passam, na verdade, do retorno de velharias que já foram utilizadas em demasia, durante séculos, para a intensificação da exploração dos trabalhadores. As reformas do legislador ordinário e as decisões do Supremo Tribunal Federal não passam de velhas formas de exploração que tentam se disfarçar em novas (e velhas) roupagens.

A “caixa de pandora trabalhista” foi aberta, permitindo que desgraças como a precarização, a informalidade, a pauperização e, com elas, doenças do corpo e da alma venham à tona. Contudo, assim como a sua símile mitológica, desejamos que sua versão contemporânea também traga escondida, dentre tantas desgraças, o único dom capaz de vencê-las: a esperança.

Santa Cruz do Sul/RS e Rio do Sul/SC, 15 de junho de 2023.

1 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes – selo Martins – 2016, p. 83.

2 KROST, Oscar. Lei no 14.297/22 e o direito ao desvínculo de emprego, disponível em <https://direitodotrabalhocritico.com/2022/01/10/lei-no-14-297-22-e-o-direito-ao-desvinculo-de-emprego/>. Acesso em: 15 jun. 2023.

3 Fonte: <https://br.indeed.com/conselho-de-carreira/pagamento-salario/salario-jogador-futebol-brasil#:~:text=Sal%C3%A1rios%20segundo%20a%20CBF&text=33%25%20dos%20jogadores%20ganham%20entre,R%24%2050.001%20e%20R%24%20100.000>. Acesso em: 15 de jun. 2023.

4 Referência expressa a GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Tradução Sérgio Faraco. Porto Alegre: L&PM, 2011.

5 MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, passim.

6 Neste sentido, ALMEIDA, Almiro Eduardo de; KROST, Oscar. As recentes decisões do STF sobre os direitos dos trabalhadores: reforma ou destruição? Uma releitura. In: MARANHÃO, Ney. TUPINAMBÁ, Pedro Tourinho. (coordenadores). O mundo do trabalho no contexto das reformas: análise crítica – Homenagem aos 40 anos da Amatra8. São Paulo: LTr, 2017, p. 204-12, e, dos mesmos autores, Verde-amarelismo jurídico: movimento por um trabalho sem direitos”, disponível em <https://jus.com.br/artigos/77806/verde-amarelismo-juridico>. Acesso em: 15 jun. 2023.

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Sobre os autores
Oscar Krost

Juiz do Trabalho vinculado ao Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região, Professor, Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade Regional de Blumenau (PPGDR/FURB), Membro do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho (IPEATRA), autor do blog e da obra “O lado avesso da reestruturação produtiva: a 'terceirização' de serviços por 'facções”. Blumenau: Nova Letra, 2016, colaborador de sites, revistas e obras jurídicas.

Almiro Eduardo de Almeida

Juiz do Trabalho Titular da 2ª Vara do Trabalho de Santa Cruz do Sul, no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, Professor Universitário na Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, Doutor em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo – USP, Mestre em Direitos Sociais e Políticas Públicas pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, Especialista em Direito do Trabalho pela Universidad de la República Oriental del Uruguay e Especialista em Relações de Trabalho pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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