Aplicabilidade da Lei Maria da Penha a toda e qualquer violência familiar, independentemente de gênero

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RESUMO

  • A violência contra a mulher é uma das mais tristes vivenciadas pela sociedade ao longo dos tempos e o seu combate é um dos grandes desafios da pós-modernidade, que mesmo tendo avançado em inúmeros aspectos, ainda parece estagnada e só aumenta em termos de violência. A lei Maria da Penha é uma conquista gigantesca na proteção da mulher e contra a violência doméstica e familiar, porém, de tão certo que está dando, pode vir a abarcar outras situações de violência no contexto familiar, como de fato vem já sendo feito. Não precisamos lembrar que a violência combatida nesta lei é praticada no ambiente familiar, que é, por sua vez, composto de seres humanos, que podem praticar e sofrer, como de fato sofrem, as consequências da violência praticada. Sob essa perspectiva, é preciso afirmar que a violência doméstica pode atingir também homossexuais, homens, transsexuais, LGBT+. Defendemos que a extensão do alcance desta lei é uma evolução. Ao passo que, para proteger a pessoa humana, a Lei Maria da Penha pode e deve ser aplicável a todos os casos de violência, independentemente de gênero. No entanto, como a violência é quase sempre escondida da sociedade, é preciso trazer à tona todas as suas formas e questões para o meio jurídico e acadêmico, discutindo e debatendo a fim de melhorar qualitativamente seu alcance. Assim, o objetivo do presente artigo é demonstrar a aplicabilidade da Lei Maria da Penha a toda e qualquer violência doméstica e familiar, independentemente de gênero. Aplicando a Lei Maria da Penha a todo constrangimento físico e moral praticado contra todo ser humano no contexto familiar, independentemente do gênero. Para a realização deste trabalho foi realizada uma pesquisa bibliográfica, documental e qualitativa, haja vista tratar-se de uma temática vigente nas ciências sociais atuais. Foram pesquisadas legislações e ementas referidas à aplicação da Lei Maria da Penha destinadas a casos específicos, quando, por exemplo, a vítima é homem, homossexual ou transsexual. Diante do estudado, entende-se que o combate à violência contra a mulher, ao ser humano e a todos os grupos sociais são de responsabilidade da sociedade, do Estado, da Família e dos executores da Lei. Em graus diferentes pensamos, mas, deve ser garantida a todos. Enquanto não há uma mudança legislativa, que é o modo formal de alteração da lei, podemos nos valer de outras fontes do direito como a jurisprudência, doutrina, Constituição e Princípios do direito, para ampliar o alcance da norma aqui tratada, aplicando ao caso concreto via analogia in bonam partem, quando se tratar de outros gêneros, desde que sofram violência doméstica e familiar. Desta forma, garantimos a extensão e o alcance desta magnífica lei a favor do ser humano, da qual a mulher faz parte, protegendo-os de toda forma de violência e resguardando a família.

Palavras-chave: Violência doméstica e familiar; Princípio da Igualdade; Políticas Públicas; Lei Maria da Penha. Analogia em bonam partem.

Sumário: I. Introdução. II. Considerações Finais. III. Referências.

I. INTRODUÇÃO

A Lei Maria da Penha foi e é um marco na luta contra a violência à mulher, a qual garante à vítima uma proteção estatal que até então não conhecíamos. A luta conta o comportamento machista secular que subjugou a mulher até os dias de hoje é árdua, mas nem por isso devemos esmorecer, pois a paz social verdadeira e efetiva precisa ser alcançada. A defesa da ampliação de seu alcance para que cada vez menos mulheres e pessoas sofram violência e menos lares padeçam desta moléstia humana é a missão da sociedade moderna.

Vale salientar aqui que a violência nem sempre é fácil de ser conceituada, porém, muito fácil de ser sentida. O dano sofrido pela vítima, seja qual for, é violência. Vejamos:

Ainda que existam dificuldades para definir o que se nomeia como violência, alguns elementos consensuais sobre o tema podem ser delimitados: a noção de coerção ou força; o dano que se produz em indivíduo ou grupo de indivíduos pertencentes a determinada classe ou categoria social, gênero ou etnia (WAISELFISZ, 2013, p. 11).

Não obstante, é possível nomear uma grande variedade de tipos de violência, tais como: de gênero, doméstica, intrafamiliar, sexual, violência física e a psicológica. A Violência sofrida pela mulher é milenar e atualmente lutamos todos contra o feminicídio, seu ápice. Mas não só ela pode ser vítima de violência, e sim todo ser humano. E se sofre, é passível de tutela pelo estado, como de fato é. Por essa razão pensamos que a ampliação de seu alcance para todos os membros da família será uma vitória inenarrável da Lei e de toda a sociedade. Será uma vitória da defesa da pessoa humana, do ser humano.

Defendemos que a proteção trazida com a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06) (BRASIL, 2010) à mulher pode ser ampliada a toda entidade familiar, a toda pessoa humana vítima de violência doméstica, independentemente de quem pratica ou sofra a violência, devendo alcançar e proteger todos os membros desse instituto, seja a vítima mulher, LGBT+ ou mesmo homens. Todos, sem exceção, devem ter seus direitos tutelados.

Vimos demonstrar a aplicabilidade da lei Maria da Penha à proteção da violência praticada a toda pessoa humana no seio familiar, independentemente do gênero da vítima ou agente. Na prática, isso permitirá que as medidas protetivas sejam aplicadas a todos que sofrem violência doméstica e familiar, defendendo a dignidade da pessoa humana (o princípio da dignidade da pessoa humana é um valor moral e espiritual inerente à pessoa humana2, princípio esse que está elencado no rol dos fundamentos da Constituição Brasileira de 1988). Portanto, deve ser aplicada a todos, sem distinção, devendo proteger todas as pessoas, independentemente de sua classificação de gênero, desde que inseridas no contexto de violência doméstica e familiar (BRASIL, 1988).

Não há sombra de dúvidas que a Lei nº 11.340/06 foi e é um avanço social, e é justamente por tal eficácia, evolução e vulto, que não se comporta em si mesma, devendo e podendo, ao nosso ver, ser ampliada para proteger a dignidade da pessoa humana inserida na entidade familiar, aplicando à vítima e ao agente todas as medidas protetivas previstas na norma, independentemente do gênero. Não há previsão legal, por exemplo, para protetivas para o homem capaz que sofre violência, para o incapaz já há (CPP art. 213, III). Muito embora em número infinitamente menor que as mulheres, há também casos assim. Igualmente não se aplicaria a um casal de homossexuais ou transsexuais. Quando muito, a agressão é registrada apenas como lesão corporal (em suas gradações), no entanto, não se aplica a Lei Maria da Penha. Assim, deixa, nesses casos, de prestigiar a proteção à igualdade de tratamento e da dignidade da pessoa humana, princípios caros à humanidade e à sociedade brasileira. E não se aplica decerto, por falta de previsão legal.

Para corrigir e preencher essa lacuna, o Judiciário, que está sempre atento aos conflitos sociais, vem aplicando de forma análoga a Lei nº 11.340/06 a fim de proteger outras vítimas de violência, aplicando protetivas à vítima, independentemente de gênero. Importante dizer que esse entendimento não traz prejuízo ao atual espírito da lei, que é a proteção à mulher.

O Legislativo também já se moveu no sentido de modificar o Código Penal, pois com a criação da Lei nº 12.403/11, que inseriu nesta norma a possibilidade de ser decretada a prisão preventiva (protetiva) quando se tratar de violência doméstica e familiar, contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência 3. Vemos aqui já a ampliação legislativa das medidas protetivas, que agora englobam idosos, enfermos, crianças e adolescentes (todos independentemente de gênero!).

Em princípio, o deferimento de protetivas à vítima de outro gênero que não o feminino poderia lhes parecer ilegal, mas ao observarmos sob prisma das decisões jurisprudenciais e legais (CPP art. 313, III) aqui trazidas, vemos que é plenamente possível, posto que a aplicação fora dessa hipótese legal, como alguns poderiam pensar, não se trataria de uma aplicação da lei por analogia em malan partem4 (pois se assim o fosse, não poderia ser aplicada por tratar-se de norma incriminadora), mas, de analogia em bonam partem à vítima, deferindo-lhe protetivas, o que é perfeitamente possível.

No tocante à analogia e no caso concreto, não se trata de piorar a situação do autor do fato, mas de proteger a vítima da violência doméstica e familiar, seja de qual gênero ela for, e sim aplicar a lei em analogia em bonam partem, como dito acima. Quando fora da hipótese prevista no artigo 213. Para poder enxergarmos melhor a possibilidade da aplicabilidade da tese, precisamos visualizar um conceito de violência para notar, essencialmente, a violência atinge direitos elementares do ser humano:

(...) uso da força física, psicológica ou intelectual para obrigar outra pessoa a fazer algo que não está com vontade; é constranger, é tolher a liberdade, é incomodar, é impedir a outra pessoa de manifestar sua vontade, sob pena de viver gravemente ameaçada ou até mesmo ser espancada, lesionada ou morta. É um meio de coagir, de submeter outrem ao seu domínio, é uma forma de violação dos direitos essenciais do ser humano (CAVALCANTI, 2010, p. 11). Grifo nosso.

Sendo uma forma de violação a direitos essenciais do ser humano, pode atingir a todos, indistintamente de gênero, classe social, cor ou credo. Desta forma, qualquer pessoa pode sofrer violência doméstica, e não apenas um único gênero. A violência doméstica e familiar é um fato preocupante na sociedade atual, principal e indubitavelmente contra as mulheres, difícil de ser combatida, justamente por ocorrerem em ambientes internos de convivência das vítimas e praticada por parentes próximos. Este tipo de violência muitas vezes está subnotificado, especialmente devido à falta de denúncias, uma vez que as vítimas normalmente ainda se sentem constrangidas ou também por dependência (financeira ou psicológica) ou medo de denunciar, devido à proximidade do agressor.

Para se ter uma ideia, apenas no final da década de 1960 do século XX, a violência doméstica passou a ser vista como como problema social e de saúde pública, devido à pressão exercida pelos movimentos feministas e estudos na área social sobre relações familiares, o papel da mulher na família tradicional e a condição feminina na sociedade (GOMES et al, 2007). Antes era velada às quatro paredes. O movimento hoje busca a tutela da dignidade humana. É certo que sequer contemos a violência contra a mulher, mas isso não pode ser fato de desmotivo para não desejar a proteção da dignidade da pessoa humana.

Essa mudança já ocorre. Há decisões judiciais que já abrem precedentes e apontam a direção. E como fonte formal do direito não podemos as ignorar. Por exemplo, o Desembargador do Mato Grosso, à época magistrado, Mário Kono de Oliveira, aplicou a um homem, vítima de violência doméstica e familiar, as protetivas previstas na Lei Maria da Penha. Fundou sua decisão na analogia em bona partem5 aplicada à vítima. Vejamos trecho da sentença (mais adiante na íntegra) e do raciocínio que concedeu à vítima do gênero masculino medidas protetivas: “Ora, se podemos aplicar a analogia (bonam partem) para favorecer o réu, é óbvio que tal aplicação é perfeitamente válida quando o favorecido é a própria vítima de um crime ” (CORREIO FORENSE, 2009, p. 2). Aplicando em seguida protetivas ao homem vítima de violência doméstica.

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A decisão acima foi embasada na analogia em bonam partem direcionado à vítima, quando em sua essência seria aplicável ao réu.

Se não podemos aplicar a analogia in malam partem, não quer dizer que não podemos aplicá-la in bonam partem, ou seja, em favor da vítima quando não se trata de norma incriminadora, como prega a boa doutrina: “Entre nós, são favoráveis ao emprego da analogia in bonam partem: José Frederico Marques, Magalhães Noronha, Aníbal Bruno, Basileu Garcia, Costa e Silva, Oscar Stevenson e Narcélio de Queiróz” (JESUS, 2011, p. 8).

Já temos também decisões no sentido de garantir a transsexuais as protetivas desta Lei. Muito embora, essa decisão trazida como exemplo tenha uma ressalva quanto à vítima identificar-se como mulher (a vítima trans se identificava como mulher), não deixa de ampliar as benesses sociais e a proteção alcançadas pela Lei, que essencialmente visa proteger e punir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal, ao julgar um recurso do MP do DF, numa situação de violência familiar (casal transsexual), decidiu que se aplicava a Lei Maria da Penha ao casal Trans. O relator do recurso, George Lopes, ao analisar o caso concreto, verificou que a vítima se enquadrava em dois conceitos da lei: de vulnerabilidade e hipossuficiência física do gênero feminino, combatidos pela lei Maria da Penha, e a aplicou. Disse essencialmente que a lei é fruto de uma construção social e não apenas uma questão biológica. Foi, deste modo, publicada a ementa:

1. O Ministério Público recorre contra decisão de primeiro grau que deferiu medidas protetivas de urgência em favor de transexual mulher agredida pelo companheiro, mas declinou da competência para a Vara Criminal Comum, por entender ser inaplicável a Lei Maria da Penha porque não houve alteração do patronímico averbada no registro civil. 2. O gênero feminino decorre da liberdade de autodeterminação individual, sendo apresentado socialmente pelo nome que adota, pela forma como se comporta, se veste e se identifica como pessoa. A alteração do registro de identidade ou a cirurgia de transgenitalização são apenas opções disponíveis para que exerça de forma plena e sem constrangimentos essa liberdade de escolha. Não se trata de condicionantes para que seja considerada mulher. 3. Não há analogia in malam partem ao se considerar mulher a vítima transexual feminina, considerando que o gênero é um construto primordialmente social e não apenas biológico. Identificando-se e sendo identificada como mulher, a vítima passa a carregar consigo estereótipos seculares de submissão e vulnerabilidade, os quais sobressaem no relacionamento com seu agressor e justificam a aplicação da Lei Maria da Penha à hipótese. 4. Recurso provido, determinando-se prosseguimento do feito no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com aplicação da Lei Maria da Penha. (Acórdão 1089057, Relator Des. GEORGE LOPES, 1ª Turma Criminal, data de julgamento: 5/4/2018, publicado no DJe: 20/4/2018.)

No caso anterior a esse, o magistrado fundou sua decisão no conceito de vítima de violência doméstica e familiar. Nesse caso, o juiz funda sua decisão em dois pilares: a autoidentificação como mulher e a vulnerabilidade e hipossuficiência física. Mas não deixa de estender sua aplicação para defender a dignidade da pessoa humana, que é o espírito que anima a Lei, que tutela a integridade física e a vida humana.

Temos também decisão aplicando a norma a casais homossexuais, ampliando mais uma vez seu alcance. Vejamos matéria do site Exame sobre o tema e a decisão:

Segundo o juiz, embora a Lei Maria da Penha tenha como objetivo original a proteção das mulheres contra a violência doméstica, todo aquele em situação vulnerável, ou seja, enfraquecido, pode ser vitimado. Em sua decisão, também observou que a união homoafetiva deve ser vista como fenômeno social, merecedor de respeito e de proteção efetiva com os instrumentos contidos na legislação (EXAME, 2019, p. 2).

Completa ainda a matéria “A vedação constitucional de qualquer discriminação e mesmo a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República, (…)" dão lastro à tese (EXAME, 2019, p. 2). No caso acima, trata-se de casal homossexual do gênero masculino. Diante disso, não há dúvidas quanto a um casal homoafetivo do gênero feminino, posto que a lei foi criada para a proteção da violência contra a mulher, essencialmente.

Outro caso relevante e inédito em relação à ampliação do alcance da Lei Maria da Penha, em caso contra a violência psicológica, ocorreu quando Mulher alvo de stalking6 conseguiu proteção através da Lei Maria da Penha em São Paulo, sendo mais um desdobramento no sentido de ampliação de seu alcance e do que a Lei pode abranger:

A Justiça de São Paulo que concedeu liminarmente medidas protetivas a uma mulher vítima de stalking. Segundo a defensora pública Mariana Chaib, autora do pedido, esse é um dos primeiros casos no Brasil em que a Lei Maria da Penha é utilizada para esse tipo de prática. A perseguição, na argumentação apresentada pela Defensoria Pública, se enquadra como violência psicológica, que inclui diminuição da autoestima, perseguição e vigilância constante. Um dos elementos que chamam a atenção no caso, conforme pontua a defensora na matéria, “é que a vítima nunca teve uma relação íntima com o acusado" - embora a Lei Maria da Penha preveja que os casos de violência doméstica pressupõem algum vínculo entre o agressor e a vítima (ARCOVERDE, 2020, p. 1).

Isso nos mostra que a Lei Maria da Penha é letra viva e avança na proteção de vítimas de violência psicológica virtual (stalking). Como podemos notar, esta norma é tão poderosa que não se contém, pelo contrário, tende a ampliar seus domínios naturalmente, como que guiada pelo espírito da sociedade que clama pela tutela da vida e da integridade física e psicológica das pessoas.

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Voltando ao primeiro caso trazido acima, segue abaixo a decisão do magistrado Kono de Oliveira, acima citado – uma decisão interlocutória que deferiu medida protetiva de urgência elaborada por C. B. (homem) contra M. C. F. D. (mulher), que ameaçava seu cônjuge, bem como aplicava-lhe agressões físicas, psicológicas e financeiras:

DECIDO: A inovadora Lei 11.340 veio por uma necessidade premente e incontestável que consiste em trazer uma segurança à mulher vítima de violência doméstica e familiar, já que por séculos era subjugada pelo homem que, devido a sua maior compleição física e cultura machista, compelia a fêmea a seus caprichos, à sua vilania e tirania.

Houve por bem a lei, atendendo a súplica mundial, consignada em tratados internacionais e firmados pelo Brasil, trazer um pouco de igualdade e proteção à mulher, sob o manto da Justiça. Esta lei que já mostrou o seu valor e sua eficácia, trouxeram inovações que visam assegurar a proteção da mulher, criando normas impeditivas aos agressores de manterem a vítima sob seu julgo enquanto a morosa justiça não prolatasse a decisão final, confirmada pelo seu trânsito em julgado. Entre elas a proteção à vida, a incolumidade física, ao patrimônio, etc.

Embora em número consideravelmente menor, existem casos em que o homem é quem vem a ser vítima da mulher tomada por sentimentos de posse e de fúria que levam a todos os tipos de violência, diga-se: física, psicológica, moral e financeira. No entanto, como bem destacado pelo douto causídico, para estes casos não existe previsão legal de prevenção à violência, pelo que requer a aplicação da lei em comento por analogia. Tal aplicação é possível?

A resposta me parece positiva. Vejamos: É certo que não podemos aplicar a lei penal por analogia quando se trata de norma incriminadora, porquanto fere o princípio da reserva legal, firmemente encabeçando os artigos de nosso Código Penal: Art. 1º. Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.

Se não podemos aplicar a analogia in malam partem, não quer dizer que não podemos aplicá-la in bonam partem, ou seja, em favor do réu quando não se trata de norma incriminadora, como prega a boa doutrina: Entre nós, são favoráveis ao emprego da analogia in bonam partem: José Frederico Marques, Magalhães Noronha, Aníbal Bruno, Basileu Garcia, Costa e Silva, Oscar Stevenson e Narcélio de Queiróz (JESUS, 2011, p. 48).

Assim, é exequível a utilização da analogia in bonam partem para favorecer qualquer pessoa ou qualquer outra vítima de violência doméstica e familiar por meio da aplicação da Lei nº 11.340/2006. Se se aplica ao réu, quiçá à vítima. Este entendimento já é utilizado no Brasil para este fim, uma vez que é necessário resguardar a integridade e dignidade da pessoa humana, de qualquer pessoa que se encontre na situação de violência doméstica e familiar, ampliando e reforçando seu alcance.

O movimento de ampliação do alcance desta norma nos lembra a teoria tridimensional do direito de Miguel Reale: Fato (violência), norma (lei) e valor (porque não punir toda violência familiar?), e também a evolução desta, que, a posteriori, passou a ter a interação entre esses elementos, desta vez nomeada de tridimensionalidade genérica (SANTOS, 2015). E é esse terceiro elemento, denominado valor, que permite a extensão da norma. A valoração de situações que podem ser abarcadas e alcançadas pela norma. O valor social atual dado ao fato. A norma não é uma letra morta, mas vívida e dinâmica como toda ciência humana, não podendo ser estática e inerte ante as mudanças da sociedade e casos de violência doméstica e familiar.

Com embasamentos normativos, além da doutrina, ainda temos a força constitucional dos princípios da igualdade e isonomia, da não discriminação (Art. 3º, IV) e da Dignidade da Pessoa Humana. Estes, por si sós, já balizariam a tese, dando lastro e sustentação à ampliação do seu alcance a toda e qualquer violência familiar.

Se podemos aplicar analogia para beneficiar o réu, óbvio que podemos usá-la para proteger vítimas gays, trans, homens e mulheres vítimas de abusos e violência por parte de seus respectivos companheiros ou companheiras no contexto familiar. Lembremos que a lei visa, por essência, proteger a parte violentada, não podendo fechar os olhos e se omitir diante do caso concreto de violência que demanda as medidas previstas em lei.

A inexistência de lei similar que garanta ao ser humano e não apenas a um gênero humano vítima de violência doméstica as medidas protetivas, força o jurista a buscar soluções racionais e legais para um problema concreto. E sendo fontes do direito, a jurisprudência e a doutrina têm legitimidade para iniciar tal precedente de avanço. Aumentar seu alcance não foge ao espírito da lei, ao contrário, amplia de forma inteligente a defesa à integridade física e a defesa da dignidade de qualquer pessoa humana que esteja sofrendo violência doméstica e familiar e necessite da tutela estatal.

Temos avanços nesse sentido também no legislativo, além dos precedentes jurisprudenciais. Por exemplo, a Lei 12.403/2006, citada acima, ampliou o alcance das protetivas para os considerados vulneráveis, podendo ser aplicadas a qualquer pessoa vítima de violência familiar (não importando o sexo ou gênero), deixando, porém, os não considerados vulneráveis de fora (BRASIL, 2006). A ampliação do alcance não permitirá que a violência adentre qualquer lar, independentemente de sua constituição.

A ampliação do alcance da norma para toda violência familiar nos parece inevitável, considerando que já temos diversas fontes do direito apontando para esse caminho. Aqui temos fontes constitucionais, jurisprudenciais, doutrinárias e legais. O que é uma verdadeira prova de que a Lei Maria da Penha é uma lei vitoriosa que veio proteger a mulher, a sociedade, a família e o ser humano. Graças às fontes do direito, essa lacuna vem sendo preenchida. Quando a jurisprudência aplica por analogia as protetivas e por consequência as reprimendas, o combate a violência doméstica ganha forma e força. Vejamos artigo de Eudes Quintino de Oliveira Júnior sobre o tema, publicado no site migalhas, sobre o tema:

Tanto é verdade que várias decisões já foram proferidas no sentido de ampliá-la e, posteriormente, para alcançar o homem, a criança, o idoso, os conviventes homoafetivos quando forem vítimas de violência doméstica e familiar. Nesta ginástica interpretativa, chega-se à conclusão, por analogia e com a aplicação do princípio da isonomia que, em situação não idêntica, porém bem parecida, a lei aplica-se a todos, sem qualquer distinção, desde que a violência ocorra intramuros familiar (OLIVEIRA JÚNIOR, 2019, p. 3).

Sim, pois, não se trata de estender norma incriminadora ao autor do fato, lhe prejudicando pela analogia em malam partem, mas de estender o dispositivo protetivo à vítima, independentemente de gênero e, por analogia em bonam partem, as protetivas que a lei lhe confere. E aí não há que se falar nulidade alguma, mas da ampliação de uma norma tão cara ao sistema jurídico e à sociedade, que trouxe e há de trazer paz aos lares e à integridade física de quem quer que seja, dentro do contexto familiar.

A importância dessa complexa temática encontra-se no fato de que a violência doméstica é das mais difíceis de ser combatida, uma vez que as denúncias não correspondem à realidade vigente. Deste modo, a aplicabilidade da Lei Maria da Penha a toda violência familiar, independentemente de gênero, ampliará e protegerá mais pessoas, bem como tutelará a dignidade da pessoa humana e não apenas de um único gênero.

II. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A violência doméstica é um dos grandes gargalos do século vigente, quer seja esta sofrida por mulheres (estas em maior número), homens, idosos, crianças ou qualquer integrante de grupo social, dificultando ainda sua dimensão devido ao fato de que nem sempre a realidade corresponde aos dados do sistema público, especialmente quando a violência doméstica não se refere a mulheres.

A vítima, independente do gênero, tem dificuldades em denunciar, quer seja por medo, vergonha, dependência, ou ainda por crer que a justiça é muito difícil de ser efetivada nesses casos. Note que são sentimentos humanos que qualquer pessoa ou gênero poderia sentir. A dignidade da pessoa humana não tem gênero e sofrimento também não.

Neste contexto e fundado na jurisprudência, doutrina, lei, constituição e princípios internacionais do direito, a Lei Maria da Penha é um instrumento que o operador do direito pode e deve aplicar para tutelar a integridade física de quem quer que seja, independentemente de gênero. Acima trouxemos decisões que aplicaram a lei com casais homossexuais, trans e heterossexuais, logo, notamos que a ampliação do alcance já se materializou nos tribunais e já tutela o bem da vida de todos os integrantes da família, necessitando apenas ser melhor trabalhada.

Cabe salientar que este trabalho de combate à violência doméstica e familiar necessita ser efetivado não apenas mediante a aplicação da Lei, mas em conjunto com o Estado e a sociedade para que possa ser eficaz. É importante colocar aqui o papel de toda sociedade na detecção da violência doméstica e familiar, e também da mídia, no sentido de estar divulgando que todo tipo de violência doméstica (contra a pessoa humana) tem a mesma gravidade quando imputada à mulher ou a qualquer gênero, pois, em essência protegem a integridade física, psicológica, a dignidade da pessoa humana.

A sociedade não pode ser conivente com a violência doméstica e familiar, seja ela com quem for. É necessário que haja um incentivo à notificação, e que todos os casos sejam encarados com seriedade e respeito, devendo ter a vítima seus direitos resguardados. Afinal, o combate à violência doméstica e familiar é dever de todos. Assim, esse complexo tema exige que a situação da violência doméstica e familiar seja encarada diante de todos os seus efeitos e contextos, merecendo as vítimas, de qualquer gênero o amparo adequado do Estado.

Pontua-se também a necessidade de se combater o estigma de que o homem deve ser sempre forte e másculo, pensamento fruto da sociedade machista e patriarcal vigente no Brasil, e que diante desse pensamento, não deve denunciar os casos de violência doméstica e familiar quando em posição de vítima. Igualmente os gays, trans e demais minorias. De modo geral, todos sofrem e não são atendidos pela estado-Lei Maria da Penha como deveriam, sendo a ampliação de seu alcance extremamente benéfica e bem-vinda.

Então, diante desse fato social e das decisões judiciais, percebemos que a Lei Maria da Penha pode ser ampliada e aplicada por meio da analogia em bonam partem e ou pelas fontes formais de direito. Para que as vítimas de qualquer gênero sejam acolhidas e protegidas com todas as contemplações que a supracitada norma coloca a favor das mulheres, ampliando-a para proteger a pessoa humana.

Finaliza-se aqui recomendando que seja possível alterar a Lei Maria da Penha de modo que a proteção contra a violência doméstica seja aplicada a todos os integrantes da entidade familiar, independentemente do gênero a fim de tratá-los de forma igualitária, resguardando e elevando a dignidade da pessoa humana ao patamar acima dos gêneros, conforme obriga a Constituição Federal. Sobretudo, ampliando a força e o alcance desta Lei tão cara à sociedade.

III. REFERÊNCIAS

ARCOVERDE, Léo. Justiça de São Paulo concede medida protetiva para vítima de perseguição virtual. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/03/03/justica-de-sao-paulo-concede-medida-protetiva-para-vitima-de-perseguicao-virtual.ghtml. Acesso em: 03 fev 2020.

AUAD, Fahd. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, Just. do Direito Passo Fundo, v. 20, n. 1, p. 111-120, 2006.

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COSENZA, Alyne; MENEZES, José Euclimar Xavier. A receptividade à comunidade LGBTQ+, direitos humanos e desenvolvimento, num espaço temporário de Salvador: o Carnaval. 2018. Disponível em: https://revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/download/5387/3424 Acesso em: 27 fev 2020.

GOMES, Nadielene Pereira; ARAÚJO, Anne Jacob de Souza; DINIZ, Normélia Maria Freire; COELHO, Tâmara Maria de Freitas. Compreendendo a violência doméstica a partir das categorias gênero e geração. Acta Paul Enferm, v. 20, n. 4, p. 504-8, 2007.

JESUS, Damásio de. Direito Penal, volume 1: parte geral / Damásio de Jesus. — 32. ed. — São Paulo: Saraiva, 2011.

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SANTOS, Thiago Henrique de Souza. Tridimensionalidade do direito diante dos fundamentos de Miguel Reale. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/37848/tridimensionalidade-do-direito-diante-dos-fundamentos-de-miguel-reale. Acesso em: 27 fev 2020.

WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2013: homicídios e juventude no Brasil. 2013. Disponível em: bibjuventude.ibict.br. Acesso em: 12 fev 2020.


  1. ........

  2. “A dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida” (AUAD, 2006, p. 111).

  3. Código Penal Art. 313: Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva: (…) III - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.

  4. “Se não podemos aplicar a analogia in malam partem, não quer dizer que não podemos aplicá-la in bonam partem, ou seja, em favor do réu quando não se trata de norma incriminadora, como prega a boa doutrina: 'Entre nós, são favoráveis ao emprego da analogia in bonam partem: José Frederico Marques, Magalhães Noronha, Aníbal Bruno, Basileu Garcia, Costa e Silva, Oscar Stevenson e Narcélio de Queiróz'” (JESUS, 2011, p. 48).

  5. A Lei Maria da Penha pode ser aplicada por meio da analogia in bonam partem para que as vítimas homens sejam acolhidas e protegidas com todas as contemplações que a supracitada lei coloca a favor das mulheres, incluindo as medida de afastamento com pagamento de multa caso não seja cumprida a sentença ou até reclusão, a depender do parecer do Juiz.

  6. Termo utilizado para a perseguição contumaz tanto na internet quanto presencialmente.

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Sobre o autor
José Ferreira de Farias Junior

Advogado. Especializando em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Escola Superior de Advocacia de Pernambuco (ESA). Membro da Academia Brasileiras de Ciências Criminais (ABCCRIM). Membro da Comissão de Defesa das Prerrogativas da OAB/PE Seccional Jaboatão Dos Guararapes.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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