Resumo: Existe, no ordenamento jurídico brasileiro, uma categoria de normas que, embora positivadas e cumpridas pelo Estado, parece não possuir a aceitação da sociedade brasileira: os direitos individuais penais e processuais penais, constitucionalmente assegurados, e seus consectários legais. Em todas as regiões do Brasil, pessoas vociferam contra a aplicação desses direitos em benefício de criminosos diversos. A experiência cotidiana demonstra que a “voz comum” da rejeição retumba pela população brasileira em geral, sendo ouvida entre pessoas de diferentes classes sociais, cores, crenças, filosofias, ideologias políticas, níveis de formação educacional e intelectual, inclusive entre profissionais jurídicos. Por essa razão, o presente trabalho se dedica a compreender as razões promotoras da dissonância entre os direitos e garantias individuais penais constitucionalmente assegurados, bem como de seus consectários legais, e a sociedade brasileira em geral, que tem demonstrado um crescente anseio punitivista. A partir de uma pesquisa qualitativa, bibliográfica e documental, consubstanciada em análise de artigos e livros já publicados, bem como das Constituições brasileiras e de fontes normativas em geral, este trabalho, sem intenção de esgotar o tema, pretende fornecer bases para a investigação da rejeição da sociedade em relação a direitos que pertencem ao seu patrimônio jurídico-subjetivo.
Palavras-chave: Direitos individuais penais. Dissociação. Anseio social punitivista.
1. INTRODUÇÃO
A expressão ubi homo, ibi societas; ubi societas, ibi jus; ergo, ubi homo, ibi jus, habitualmente traduzida como “Onde está o homem, está a sociedade; onde está a sociedade, está o Direito; logo, onde está o homem, está o Direito”, atribuída ao filósofo e jurista romano Ulpiano (170-228 d.C.) pelo Corpus Iuris Civilis, consoante registro de Poiares (2018), representa o sentido de aproximação entre as normas, desde sua elaboração até sua aplicação, e a sociedade para a qual estão direcionadas. Idealmente, deve haver uma confluência entre o espírito e a finalidade das leis (em sentido amplo) e os anseios dos seus destinatários. Portanto, a fim de que uma lei seja considerada “boa”, no sentido de ser bem compreendida, aceita e respeitada por seus receptores, o legislador precisa ter em mente, no decorrer de suas atividades típicas, as características da sociedade na qual ele está inserido: história; formação cultural e intelectual; igualdades e desigualdades; problemas e necessidades; valores e aspirações; aspectos comuns e particularidades etc. Somente quando se verifica que a norma foi preparada e “temperada” nesse “caldo” social multifatorial, é possível dizer que, no meio em que ela foi posta, o famoso brocardo recebe aplicação, ocorrendo, de fato, uma simbiose entre leis e sociedade, que se retroalimentam. E, na busca por esse feedback, ganha destaque a figura necessária da Sociologia Jurídica, enquanto “disciplina que investiga, por meio de métodos e técnicas de pesquisa empírica (isto é, pesquisa baseada na observação controlada dos fatos), o fenômeno social jurídico em correlação com a realidade social” (SOUTO e SOUTO, 2003, p. 42).
No Brasil, porém, vigora um senso comum empírico de que parte das normas vigentes se encontra distante da realidade social. É muito comum se dizer que, aqui, há “leis que pegam” e “leis que não pegam”, expressões que intrigaram o jurista português José de Oliveira Ascensão, merecendo registro em sua obra O Direito – Introdução e Teoria Geral: uma perspectiva luso-brasileira (1994). No entanto, tais expressões são geralmente utilizadas em referência a normas que exigem um “fazer” ou um “não fazer” do Estado e um “obedecer” por parte dos particulares. Se predomina o entendimento comum de que uma norma deva ser respeitada e aplicada (aquelas destinadas à proteção de mulheres e crianças, por exemplo, ou a que prevê prisão civil por não pagamento de pensão alimentícia), então se diz que a “lei pegou”. Por outro lado, se o Estado não cumpre as ações a que se comprometeu através de normatização (normas programáticas); ou se se omite quando deveria implementar direitos sociais (por exemplo, ausência de legislação sobre o direito de greve dos servidores públicos, previsto na Constituição Federal); ou, ainda, se os próprios particulares decidem não obedecer às normas, como acontece com várias regras de trânsito; então se diz que a “lei não pegou”.
Nesse sentido, existe uma categoria de normas que, embora positivadas e cumpridas pelo Estado, parece não possuir a aceitação geral da sociedade brasileira. Trata-se dos direitos individuais penais e processuais penais, constitucionalmente assegurados, e de seus consectários legais: presunção de inocência, duplo grau de jurisdição, excepcionalidade da prisão, liberdade provisória, ampla defesa, contraditório, direitos do preso etc. É curioso como o Brasil, “gigante pela própria natureza”, multicultural, que abarca pessoas das mais diversas origens e realidades sociais, intelectuais e econômicas; com uma democracia ainda frágil, justamente por conta de diferentes ideologias e interesses, o que dificulta o diálogo necessário para formar um ambiente democrático saudável; que atualmente se encontra eleitoral e politicamente polarizado; onde as pessoas “concordam em discordar”; que não possui sequer uma identidade de pensamento no que tange à sua maior “paixão nacional”, o futebol; parece ter encontrado sua “voz comum” na seara da rejeição aos direitos individuais penais.
Em todos os Estados e regiões do Brasil, pessoas em geral vociferam contra a aplicação dos direitos e garantias fundamentais penais e dos seus corolários legais em benefício de criminosos diversos. Noite e dia, programas policialescos de televisão bradam “a plenos pulmões” contra as normas garantistas. É comum ouvir os gritos de apresentadores quando descobrem, por exemplo, que a liberdade provisória foi conferida pelo Judiciário a quem foi preso em flagrante delito ou que um acusado recorrerá em liberdade de sua sentença condenatória. Pede-se uma “lei mais dura”, com penas mais severas (“de morte”, se possível, afinal “bandido bom é bandido morto”) e sem quaisquer direitos para “vagabundos”. Clama-se pelo fim da maioridade penal. A comoção é ainda maior quando se deparam com a garantia dos direitos da execução penal em benefício daqueles que já iniciaram o cumprimento da pena, como progressão de regime, saídas temporárias e livramento condicional. Como exemplo, causa ojeriza nos âncoras toda notícia sobre qualquer benefício recebido por Suzane von Richthofen, no desenrolar do cumprimento de sua pena.
Obviamente, os programas policialescos carregam um forte “quê” de sensacionalismo e apelação. Porém, não se pode ignorar que eles refletem o pensamento da sociedade como um todo, afinal são dependentes de audiência, e dificilmente teriam audiência se os temas abordados e a respectiva linguagem não espelhassem o sentimento do público. É claro que não se pode generalizar, tendo em vista que há muitas pessoas engajadas na defesa dos direitos humanos de todas as categorias, que compreendem e acreditam em sua inegável importância. No entanto, a simples experiência do cotidiano demonstra que a “voz comum” de rejeição aos referidos direitos retumba pela população brasileira em geral. Essa “voz”, que por vezes desesperadamente grita, berra e clama, é ouvida em todas as classes sociais, entre pessoas de todos os “cantos” do país, de todas as cores, crenças, filosofias e ideologias políticas, de todos os níveis de formação educacional e intelectual. Essa “voz” ecoa fortemente, inclusive, entre profissionais jurídicos de áreas diversas que, em tese, estudaram o processo de conquista e evolução dos direitos fundamentais e compreendem (ou deveriam compreender) a sua necessidade e importância para o Estado Democrático de Direito. É comum se presenciar, por exemplo, a revolta de muitos advogados, de diferentes especialidades, contra os seus colegas criminalistas, porque estes “defendem bandidos”.
Neste momento, importa fazer um adendo. É recorrente na doutrina jurídica o estudo sobre existência, validade, vigência e eficácia das normas. Em termos gerais, uma norma existe quando é criada e positivada. No entanto, ela só terá validade se se coaduna ao ordenamento jurídico, ou seja, quando a sua produção se dá por autoridade competente e obedece aos procedimentos regulares de tramitação (validade formal), bem como quando o seu conteúdo se adéqua às normas de hierarquia superior (validade material). Em sua doutrina sobre a pirâmide hierárquica, Kelsen ensina que “uma norma que representa o fundamento de validade de outra norma é figurativamente designada como norma superior, em confronto com uma norma que é, em relação a ela, a norma inferior” (1987, p. 205). Por sua vez, a vigência da norma começa, em regra, a partir do marco temporal designado para o início da produção de seus efeitos. Quando produz concretamente os efeitos dela esperados, diz-se que a norma é eficaz. Se, por exemplo, o Estado implementa o programa social que ele mesmo normatizou, ou se os particulares decidem obedecer ao mandamento, a norma é eficaz. Portanto, “a eficácia social se verifica na hipótese de a norma vigente, isto é, com potencialidade para regular determinadas relações, ser efetivamente aplicada a casos concretos” (TEMER, 1998, p. 23). Feito o adendo, é possível visualizar que as normas constitucionais sobre direitos individuais penais, bem como os seus consectários legais, são existentes, válidas, vigentes e eficazes, porém, mesmo assim, não costumam ser bem recebidas pela sociedade brasileira em geral.
Muitos pesquisadores se debruçam sobre o fenômeno das “leis que pegam” e das “leis que não pegam”. Porém, suas análises se voltam quase que exclusivamente às normas que envolvem um “fazer” ou um “não fazer” do Estado, referentes à implementação de programas de governo ou de direitos sociais, e um “obedecer” dos particulares. Conclui-se, geralmente, que o problema reside na falta de eficácia: quando o Estado não cumpre o prometido ou não cria condições para que os particulares desenvolvam os seus direitos, ou quando os particulares não lhes obedecem, as normas envolvidas nesses cenários padecem de eficácia. Elas existem, são válidas e vigentes, mas não produzem efeitos.
No entanto, não há pesquisas voltadas especificamente para investigar o porquê de normas existentes, válidas e vigentes, como os direitos individuais penais e seus corolários legais, não serem aceitas pela sociedade como um todo, mesmo possuindo eficácia. E possuem eficácia porque a produção de seus efeitos independe da obediência dos particulares. Assim, “alheios” à “voz” da sociedade, constituintes e legisladores promoveram (e promovem) os referidos direitos e garantias fundamentais, e julgadores os aplicam, mesmo a contragosto da população. Acusados continuam sendo postos em liberdade, e apenados continuam recebendo direitos, independentemente do “querer” social. Obviamente, há injustiças, e nem todos os acusados e apenados são tratados como preveem as normas garantistas. Porém, em geral, é possível dizer que os direitos individuais penais possuem eficácia no Brasil, porque são (bem ou mal) aplicados e produzem efeitos concretos.
Há, ainda, trabalhos que, superficialmente, buscam averiguar a razão do descontentamento da população em relação aos direitos individuais penais, associando-o exclusivamente à impunidade que supostamente impera no país. Porém, esse tipo de análise, voltada a um fator único, é insuficiente para a compreensão do fenômeno como um todo, podendo ser facilmente enfraquecida a partir da observação do cotidiano. Esta revela que existe punição no Brasil, considerando o exponencial crescimento da população carcerária, ainda que a taxa de punição não consiga acompanhar os altos índices de criminalidade. No entanto, mesmo quando ocorre punição, a sede punitivista da sociedade não é saciada pela quantidade da pena aplicada ao criminoso, nem por sua natureza ou pela forma como ela é cumprida, e tampouco se sacia em relação àqueles que já cumpriram ou estão cumprindo as suas penas. A sociedade parece estar sempre “querendo mais”.
É como se o Estado agisse como um pai que toma as decisões pelo filho ainda criança, porque ele “não sabe o que faz” nem o que “é melhor para si”. Considerando esse cenário, questiona-se:
É possível afirmar que a sociedade brasileira ainda é “criança”, por não compreender a importância dos direitos individuais penais?
Se sim, por que ainda é “criança”?
Quais motivos impedem a sociedade em geral de chegar à maturidade de entender a necessidade dos referidos direitos?
Ou seria o Estado brasileiro um “pai superprotetor”, que não enxerga que o filho, maduro ou não, não “abre mão” de tomar as suas próprias decisões?
Se enxerga, seria ele arbitrário ao ponto de tolher totalmente a vontade do filho?
Estaria o Estado alheio, insensível e imóvel diante dos anseios populares e da realidade social?
Diante disso, apresenta-se o problema central que guia este trabalho: Quais as razões promotoras da dissonância entre a aplicação dos direitos e garantias individuais penais constitucionalmente assegurados, bem como de seus consectários legais, e o crescente anseio punitivista da sociedade brasileira em geral?
O problema central pode, ainda, ser desdobrado em uma série de perguntas que, uma vez respondidas, podem levar à elucidação do tema proposto:
O brasileiro tende a ser individualmente mais vingativo?
A criminalidade e a impunidade favorecem uma cultura coletiva de vingança?
O histórico do sistema penal brasileiro enraizou na sociedade brasileira um sentimento punitivista?
Houve participação popular nas decisões históricas do Brasil, na elaboração das Constituições e na implantação dos direitos fundamentais?
Quais forças, movimentos e ideologias atuaram na conquista dos direitos individuais penais no Brasil, em especial perante a Assembleia Nacional Constituinte que elaborou a Constituição da República de 1988?
Os direitos individuais penais e seus consectários legais são vistos como conquistas pela população ou foram meramente positivados?
A população compreende a necessidade e a importância dos referidos direitos?
As normas garantistas “falam a língua” da sociedade brasileira?
A partir de uma pesquisa qualitativa, bibliográfica e documental, consubstanciada em análise de artigos e livros já públicos, bem como das Constituições brasileiras e de fontes normativas em geral, o presente trabalho, sem a pretensão de esgotar o tema, em razão de sua complexidade, pretende fornecer bases para a investigação do problema apresentado, visando, especificamente:
-
a) conhecer a forma de atuação do sentimento de vingança no homem (em sentido amplo) enquanto indivíduo, pois, em atendimento à integralidade do silogismo que abre este projeto, é preciso entender também as particularidades do “ser” individual para se chegar à compreensão da sociedade e do Direito;
b) averiguar se o brasileiro tende a ser individualmente mais vingativo, considerando a sua raiz cultural latina, empiricamente conhecida como mais passional do que as demais culturas;
c) investigar se o aumento dos índices de criminalidade, associados a maior ou menor (im)punidade, tem contribuído para que o sentimento individual de vingança se torne um sentimento punitivista coletivo, uma vez que o crescimento da violência faz aumentar o número de vítimas e de criminosos, além de levar à sensação geral de insegurança; d) levantar o histórico do sistema penal brasileiro, a fim de compreender qual tipo de consciência punitiva está arraigada no sentimento social;
e) avaliar a intensidade da participação popular, o contexto histórico e as forças atuantes nos processos históricos, no constitucionalismo, na elaboração das constituições, na Assembleia Nacional Constituinte de 1988 e na implementação dos direitos e garantias individuais penais, para medir a distância entre os particulares, as instituições e as normas;
f) integrar os resultados encontrados nos objetivos específicos anteriores, analisando o “caldo de cultura” no qual a sociedade brasileira está inserida e os motivos que colaboram para o crescimento do anseio social punitivista e o seu consequente distanciamento dos direitos e garantias individuais penais constitucionais e de seus corolários legais.
2. VINGANÇA E SISTEMAS HISTÓRICOS DE PUNIÇÃO
Em Ética a Nicômaco, Aristóteles já identificava que as pessoas sofrem quando encolerizadas e sentem prazer quando se vingam. No seu estudo da obra de Nietzsche, Paschoal (2009) discorre sobre as ideias do filósofo em relação a ressentimento e vingança. Para Nietzsche, o ressentimento está associado a uma ideia de autoenvenenamento por meio de sentimentos como inveja, rancor e ódio. Quando não podem ser descarregados para fora, eles se voltam para o interior do homem, onde são constantemente ressentidos. No indivíduo, a percepção da própria fraqueza e o sentimento de frustração geram um sentimento de rancor e, consequentemente, a vontade de ferir e produzir sofrimento em quem o feriu. Apropria-se dele, então, uma sede de vingança. Em seu estado de natureza, o ofendido não se interessa em conscientizar, recuperar, ensinar e reintegrar o agressor, mas tão somente em feri-lo com a mesma ou maior intensidade do seu próprio sofrimento.
Percebe-se, assim, que o sentimento de vingança é natural, inerente e presente em todo ser humano. Para Lopes (2000), fazer com que o outro sofra uma punição, ou melhor, uma vingança, resulta de um impulso natural, uma paixão: aquele movimento interior que não se controla e faz com que o agente sofra a ação em vez de realizá-la. Uma vez que a vida social é frequentemente marcada por frustrações em relação ao outro, é possível dizer que não existe quem não tenha sido machucado, traído ou violentado por alguém. Dessa forma, há sempre terrenos bastante férteis para que a vingança brote, cresça e se reproduza no meio social.
Desde os tempos remotos da humanidade, a ideia de vingança sempre esteve presente na vida em sociedade. Ora divina, cujos castigos eram aplicados pelos sacerdotes, “portadores da vontade das divindades”, contra os infratores que colocavam em risco a segurança de toda a comunidade, atraindo a “ira dos deuses”; ora privada, cujas penas eram aplicadas pelas próprias vítimas ou por seus respetivos grupos contra os infratores que cometiam afrontas individuais; a vingança pura e simples, para produzir no outro a mesma dor sofrida, foi a base do sistema de punições. Segundo Capez (2003), o mal recebido era quase sempre retribuído com brutalidade desproporcional. Ensina Caldeira (2009) que, nesse período, a Lei de Talião ganhou destaque, com a máxima “olho por olho, dente por dente”. Por sua vez, Diniz (2005) anota que, nessa fase, não existia a ideia de proporcionalidade, sendo a punição comumente incongruente à ofensa. Para Ferrajoli (2002), a “vingança de sangue” não era apenas uma reação instintiva ao mal sofrido, mas sim um direito. E mais: um dever da vítima ou de seu grupo.
Fadel (2012) destaca que, nos primórdios da civilização, a vingança, além de desproporcional, era realizada contra o agressor e os membros de sua família ou tribo, o que gerava uma sucessão de revanches (no Brasil, até hoje, há muitas notícias, advindas especialmente do Nordeste, de rixas que dizimaram famílias inteiras, geradas por ódio e vingança. Como exemplo do ensinamento do autor, destaca-se a história, contida no Pentateuco, sobre a matança de um povo inteiro pelos filhos do patriarca Jacó, vingando o estupro de uma das suas irmãs, cometido pelo filho do rei desse povo dizimado). Segundo Fadel (2012), a reação ao mal sofrido era puramente instintiva.
Mesmo com a evolução das teorias e dos sistemas penais, com o Estado passando a intervir nos conflitos privados e obrigando a vítima a aceitar composição ao invés de vingar-se (DINIZ, 2005), momento histórico conhecido como fase da vingança pública, as práticas penais revelam que, apesar do ideal de abandono dos instintos de natureza, o sentimento de vingança não foi totalmente abolido. Esse deslocamento do exercício do direito de punir para o Estado (FERRAJOLI, 2002), baseado nas teorias da pena, representou, muitas vezes, a mera transferência da vingança em si, do indivíduo para o poder político, ou seja, uma forma de “vingança do rei” ou da sociedade através da autoridade política (FOUCAULT, 2009).
Greco (2015) leciona que, já no século XVIII, período identificado com a fase da vingança pública, a sociedade vivia em uma situação de terror e desigualdades. O processo penal era inquisitivo e realizado secretamente, sem que o acusado tivesse conhecimento das provas produzidas contra ele. A tortura era um meio oficial utilizado pelo Estado para obter a confissão do “culpado”. Os juízes eram peças frágeis a serviço de um governo despótico. As penas eram indeterminadas, ficando ao alvedrio do julgador aplicá-las de acordo com a sua conveniência. As leis existentes eram confusas e rebuscadas, o que impedia a sua compreensão pelos particulares. Analisando as características do sistema punitivo, Foucault (2009) identificou que as funções da pena, muitas vezes aplicada em forma de espetáculo em praça pública, eram voltadas para refletir no corpo do condenado, à vista de todos, a violência do delito por ele cometido. A lei era considerada uma extensão do corpo do soberano, sendo lógico que a vingança atingisse o corpo do condenado.
Fadel (2012) registra que, na França, já no século XVIII, subsistia a pena de morte por esquartejamento, fogo, roda, forca e decapitação, todas estas formas temperadas com extrema crueldade. O processo penal, secreto, adotava oficialmente, como meio de obtenção de prova, a tortura contra os acusados e as testemunhas não merecedoras de fé. O mesmo ocorria na Alemanha, na Itália, na Espanha e em Portugal. Verifica-se, portanto, que o monopólio estatal da punição não deixou de promover o sentimento de vingança, que apenas recebeu uma nova roupagem. Essa ideia se coaduna ao pensamento de Nietsche, estudado por Paschoal (2009), no qual o ressentimento, além de sua noção individual, possui uma abordagem social que está nas origens da justiça. Assim, o ressentimento está presente na vontade do Poder, manifestando-se no Direito, na Política e na Moral.
Dentro desse cenário, fruto de um apanhado de razões individuais e históricas, insere-se o brasileiro, enquanto ser humano e portador de todas as suas características inerentes, em maior ou menor escala. Embora o Brasil seja um país relativamente novo, não há como ignorar que o brasileiro, assim como todos os povos, advém de uma mesma origem, da qual sentimentos, ideias e percepções sobre o mundo e a humanidade são transmitidos, mesmo que inconscientemente, ao longo do tempo, de geração em geração. Dessa forma, o brasileiro, por “ser” humano, é naturalmente atraído pelo desejo de vingança. A ideia de vingança, portanto, está entranhada no brasileiro pelo simples fato de ser “homem” (em sentido amplo) e por advir de uma humanidade que, por muito tempo, naturalizou a punição exclusivamente como forma de vingança. E, mesmo com o advento das modernas ideias penais, ela não conseguiu abolir a figura da vingança dos sistemas punitivos. Esses ideais são relativamente novos se comparados a todo o período histórico precedente. Além disso, para retirar o homem do seu estado de natureza e fazê-lo controlar os seus instintos, requer-se uma melhor formação intelectual dos particulares, coisa da qual ainda poucos brasileiros dispõem.
Soma-se a isso o fato de que o brasileiro se destaca no cenário mundial por ser um povo naturalmente mais emotivo do que os demais. Segundo reportagem produzida pela BBC Brasil (Povo emotivo? Por que choramos, rimos, vaiamos e ficamos furiosos na Rio 2016?), elaborada a partir de estudos de pesquisadores diversos, o brasileiro tende a demonstrar mais as suas emoções, uma vez que a nossa socialização não é tão rígida no controles delas. Por isso, a emotividade é algo característico do povo brasileiro. Além disso, não se deve ignorar a sua origem latina, pois, conforme reportagem produzida pela Gazeta do Povo (Pesquisa mostra que países latinos são os mais emotivos do mundo), os povos latinos são os mais emotivos do mundo, segundo pesquisa realizada pelo instituto Gallup. Destarte, sendo o brasileiro mais emotivo por natureza, a dificuldade em controlar os seus sentimentos, especialmente raiva, ódio, rancor, mágoa e ressentimento, deságua em uma maior tendência ao desejo por vingança.
Portanto, é possível apontar os processos históricos de concepção e evolução dos sistemas punitivos (permeados por sanções baseadas na vingança instintiva) e as características do povo brasileiro (enquanto parte da humanidade que também recebe influência histórica e, particularmente, por ser mais emotivo) como as primeiras razões contributivas para o atual crescimento do anseio social punitivista, em confronto com a aplicação dos direitos e garantias individuais penais e seus consectários legais. Naturalmente, os brasileiros em geral possuem mais dificuldade em compreender, aceitar e receber normas que “protejam” aqueles que lhes fizeram mal e que lhes retirem a possibilidade de dar vazão aos seus ressentimentos.