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Um destino em processo

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09/07/2023 às 14:11
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1. QUANDO A PENA É DADA: A LEI DE EXECUÇÃO PENAL

Mais de quatro décadas separam a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984) dos códigos Penal e de Processo Penal atualmente em vigor no Brasil. Na prática, isso significa que o país viveu quase 45 anos sem uma norma que tivesse força suficiente para regular a maneira como se daria a execução da pena imposta pelo juiz à pessoa acusada de cometer determinado crime. Embora, hoje, o preso (provisório ou já condenado) seja sujeito de direitos e de obrigações, nem sempre foi assim no Brasil.

Enquanto isso não acontecia, o Judiciário brasileiro já vinha aplicando desde o início dos anos 1940 as leis penais que estão até hoje em vigor: as condutas que poderiam ser consideradas crimes e as suas respectivas penas já estavam definidas (e regulamentadas pelo Código Penal, de 1940) e o caminho para aplicá-las sem excesso, arbitrariedade e ilegalidade também (baseado nas regras ditadas pelo Código do Processo Penal).

Faltava, no entanto, uma lei que orientasse sobre o que aconteceria a partir do momento que o preso chegasse à prisão: o que seria dele lá? A ideia era apenas largá-lo em um estabelecimento de privação de liberdade e esperar que isso fosse o suficiente para ele aprender a não repetir seus erros? E quando chegasse o dia que o cumprimento da pena chegasse ao fim? Ele (e a sociedade) estaria preparado para a sua liberdade?

Foi nesse contexto que nasceu a Lei de Execução Penal – ou, simplesmente, LEP –, em 1984, ao fim do período ditatorial e às vésperas da aprovação da chamada Constituição Cidadã.

1.1 A evolução histórica das Leis de Execução Penal no Brasil

Embora o Brasil tenha ficado tanto tempo sem a égide de uma lei que legislasse sobre a execução da pena do detento, a história mostra que existiram algumas tentativas.

Alguns anos antes dos códigos Penal e de Processo Penal entrarem em vigor, o país teve um primeiro ensaio de uma codificação acerca das normas de execução penal. Tratava-se do chamado Código Penitenciário da República, elaborado pelo advogado, jornalista e político brasileiro Cândido Mendes, pelo advogado Lemos de Brito e pelo médico psiquiatra Heitor Carrilho. O projeto era de 1933, mas a legislação só entraria em vigor em 1937, três anos antes da aprovação do Código Penal e quatro anos antes do Código de Processo Penal (MIRABETE; FABBRINI, 2006). Essa codificação, no entanto, não durou: acabou abandonada poucos anos depois, porque destoava do Código Penal.

Quando tal legislação entrou em vigor – seguida, logo depois, pelo Código de Processo Penal –, não demorou para se perceber que não era adequada para cumprir esse papel. A legislação até trazia algumas regras pertinentes à forma de execução da pena do acusado, principalmente envolvendo os estágios de cumprimento da pena e seus respectivos regimes prisionais. Mesmo assim, se tratava de algo insuficiente. A doutrina continuava a clamar por uma Lei de Execução Penal que fosse capaz de assumir as necessárias demandas penitenciárias que surgiam após a sentença do juiz (MIRABETE; FABBRINI, 2006).

Então, em 1957, uma nova lei passou a dispor sobre normas gerais de regime penitenciário. A Lei n° 3.274 era resultado do projeto do deputado federal Raimundo Barbosa de Carvalho Neto e levou seis anos para ser aprovada. Ela trouxe para o ordenamento jurídico os primeiros passos para a consecução do objetivo humanitário de tornar o preso (provisório ou já condenado) um sujeito de direitos e de obrigações, consagrando a ele o direito à previdência social, por exemplo.

Mas, assim como a sua antecessora, tal norma também não estava preparada para compor o ordenamento jurídico brasileiro: ela carecia de eficácia e não trazia previsão de sanções em caso de descumprimento dos princípios e das regras que trazia. Na prática, tornou-se letra morta no sistema normativo brasileiro (MIRABETE; FABBRINI, 2006).

Apesar disso, demorou quase 30 anos para a atual Lei nº 7.210 ser aprovada, em 1984, revogando a legislação de 1957 (NUNES, 2013). A sua concepção, no entanto, já era discutida desde 1970, quando o anteprojeto da normativa havia sido enviado para apreciação.

A atual Lei de Execução Penal (LEP) entrou, então, em vigor em 13 de janeiro de 1985 – concomitantemente com a lei de reforma da Parte Geral do Código Penal – para tratar de todos os aspectos pertinentes a tornar efetiva a sanção punitiva estatal (MIRABETE; FABBRINI, 2006).

Três anos depois, em 1988, foi proclamada a nova Constituição Federal – a lei suprema do país, que estabelece normas superiores a todas as outras –, consagrando algumas normas básicas relacionadas ao Direito Penal brasileiro já existente, como proibições relacionadas à detenção arbitrária, à tortura física e moral, à pena de morte, à prisão perpétua e à prisão por dívida. Isso incluiu também algumas regras características da execução, como a personalidade e a individualização da pena como garantias do indivíduo perante o Estado, um avanço na busca da humanização da pena, e também na possibilidade de reinserção social.

Nesse contexto, a execução das penas e das medidas de segurança deixa de ser um Livro do Código de Processo para ser introduzido nos costumes jurídicos brasileiro de forma autônoma e essencial à dignidade de um novo ramo jurídico: o Direito de Execução Penal (Exposição de Motivos da LEP).

Na prática, isso demonstra que a LEP não limita a temática da execução penal ao seu próprio texto. Ela ganha outras garantias e amplia seu arcabouço ao fazer parte de todo um complexo de princípios e regras que delimitam e jurisdicionalizam a execução das medidas de reação criminal. De outra forma, seria inviável reprimir em um único diploma legal fechado todas as situações jurídicas oriundas das relações estabelecidas por uma disciplina.

A execução, portanto, é uma ciência autônoma, com princípios próprios, mas ainda vinculada ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal, por razões inerentes à sua própria existência (NUCCI, 2014).

1.2 Os objetivos da LEP

Não havia muitas dúvidas sobre quais eram os objetivos da LEP quando ela foi criada. Sabiam os juristas: a nova legislação trata de organizar a pretensão punitiva estatal e orientar as questões do cárcere e das condições do apenado. O papel da nova legislação, no entanto, vai muito além disso. A LEP é a responsável por garantir dignidade e proteção às pessoas a partir do momento que elas saem do convívio social e passam a ser consideradas presas e – mais do que isso – estabelecer medidas para reabilitar o condenado. De uma forma bem direta: ela surge para punir e, ao mesmo tempo, humanizar.

A ressocialização do apenado é, portanto, o ponto alto da nova legislação. Está prevista como um dos objetivos do cumprimento da pena, expresso já no art. 1º da LEP: “efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”.

Em outras palavras, o que a lei pede é um olhar para a pessoa que está ali e que não se confunde com o condenado que ela se tornou e que, um dia, deixará de ser. O condenado, esse sim, deve cumprir a pena que lhe foi imposta e pagar pelo crime que cometeu e o afastou do convívio social. A pessoa, por outro lado, continuará ali, existindo, depois que a pena for cumprida em sua totalidade.

De certa forma, a LEP veio para tentar quebrar um paradigma social difícil de romper. Ela pensa no depois; a sociedade, nem sempre. Os indivíduos, em geral, protestam por condenação e por justiça sempre que um crime é cometido e ganha as manchetes dos jornais. Essa revolta, no entanto, é legítima. O fato é que ninguém pensa no depois: o que vai acontecer quando o condenado deixa de ocupar esse papel e é liberado para voltar à liberdade. A Constituição Federal brasileira não permite a prisão perpétua, mas nem sempre o povo parece lembrar disso.

A LEP, portanto, veio para resolver tudo isso. Se os caminhos para preparar a pessoa ao retorno do convívio não estão na iniciativa social, eles encontram respaldo na legislação expressa. É a lei que busca efetivar a reeducação do preso para evitar um novo comportamento nocivo à sociedade, ainda mais motivado pelo tratamento que ele recebeu na prisão.

O caso, aqui, não é questionar a lei penal, tampouco se ela é justa ou não. São duas discussões controversas, mas que a sociedade confunde como se fosse uma: de um lado, uma legislação criminal deficiente e ineficiente e, de outro, as condenações injustas e não efetivas. A segunda se baseia na primeira e só existe porque a legislação criminal brasileira assim a orienta.

Pudera. O Brasil possui uma lei penal que já não condiz com a realidade social encontrada no país hoje. O texto jurídico do Código Penal, atualmente em vigor, ainda apresenta multas cobradas em réis, moeda oficial dos anos 1940 quando foi criada. A sociedade para a qual ele foi pensado – e também o Código de Processo Penal, um ano depois – não é a mesma dos anos 2020. Em 1940, quando ele passou a vigorar, o Brasil ainda não tinha nem legislação trabalhista (a CLT só viria em 1943), a internet ainda não existia e a maioria dos presidentes da República mais atuais do Brasil sequer haviam nascido.

O fato é a defasagem não está na LEP, nem na execução da pena cumprida pelo preso. Está, na verdade, nas leis que regulam o sistema criminal brasileiro na etapa anterior à sentença do juiz que a profere. Neste contexto, a LEP (que surge posteriormente a este momento) possui plena adaptação aos preceitos democráticos protegidos pela Constituição Federal.

Na prática, até o juiz é outro: o magistrado que dá a pena não é o mesmo que determina a sua execução. O primeiro se baseia nos textos legais dos códigos Penal e de Processo Penal e, o segundo, nas previsões da LEP.

Assim, quando o caso chega nas suas mãos, o juiz da execução passa a ter algumas competências definidas em lei. Diz o art. 66 da LEP:

Art. 66. Compete ao Juiz da execução:

I. aplicar aos casos julgados lei posterior que de qualquer modo favorecer o condenado;

II. declarar extinta a punibilidade;

III. decidir sobre:

a) soma ou unificação de penas;

b) progressão ou regressão nos regimes;

c) detração e remição da pena;

d) suspensão condicional da pena;

e) livramento condicional;

f) incidentes da execução.

IV. autorizar saídas temporárias;

V. determinar:

a) a forma de cumprimento da pena restritiva de direitos e fiscalizar sua execução;

b) a conversão da pena restritiva de direitos e de multa em privativa de liberdade;

c) a conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos;

d) a aplicação da medida de segurança, bem como a substituição da pena por medida de segurança;

e) a revogação da medida de segurança;

f) a desinternação e o restabelecimento da situação anterior;

g) o cumprimento de pena ou medida de segurança em outra comarca;

h) a remoção do condenado na hipótese prevista no § 1º, do artigo 86, desta Lei.

i) (VETADO);

VI. zelar pelo correto cumprimento da pena e da medida de segurança;

VII. inspecionar, mensalmente, os estabelecimentos penais, tomando providências para o adequado funcionamento e promovendo, quando for o caso, a apuração de responsabilidade;

VIII. interditar, no todo ou em parte, estabelecimento penal que estiver funcionando em condições inadequadas ou com infringência aos dispositivos desta Lei;

IX. compor e instalar o Conselho da Comunidade.

X. emitir anualmente atestado de pena a cumprir (BRASIL, 1985).

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1.3 Dando início à execução: a concepção da pena

Quando Suzane von Richthofen, protagonista de um dos casos policiais mais conhecidos do Brasil, foi acusada pela polícia de ser mandante do assassinato dos pais, em 2002, as notícias do julgamento dela foram transmitidas pela TV quase de forma instantânea. O mesmo aconteceu com o casal Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, pai e madrasta da menina Isabella Nardoni que morreu ao cair da janela do sexto andar do edifício onde a família morava, em 2008. Na época, os brasileiros acompanharam – estarrecidos – as várias horas de audiência que, nos dois casos, resultaram na condenação dos acusados pelas mortes das vítimas.

O fato é que esse procedimento pelo qual Suzane, Alexandre e Anna Carolina passaram até serem considerados, de fato, culpados e receberem uma condenação é um dos mais conhecidos da Justiça pelo grande público. O chamado processo penal é fase em que todos os acusados de cometer algum crime enfrentam para se defender perante o juiz (ou os jurados) e para que a vítima possa comprovar a autoria e a existência do dano. Esta etapa tem fim com a condenação ou com a declaração de inocência da pessoa que está sendo julgada.

No caso da condenação, o juiz profere uma pena que deve ser cumprida pelo indivíduo a partir de então, como forma de sanção. Tem início, então, a chamada fase de execução.

Costa (2017) dizia que a pena é a consequência do delito. É como se fosse o castigo imposto pelo Estado à pessoa que praticou um crime, tirando a sociedade da sua rotina. Segundo Masson (2009, p.513-514), a pena tem a função de “castigar seu responsável, readaptá-lo ao convívio em comunidade e, mediante a intimidação endereçada à sociedade, evitar a prática de novos crimes e contravenções”.

A pena consiste, basicamente, em dois tipos: a privação de liberdade (como a reclusão e a detenção) e a restrição de direitos (como a prestação pecuniária, a limitação de fim de semana ou prestação de serviço à comunidade, por exemplo, que somente pode ser aplicada nos casos autorizados em lei).

A pena só é imposta, no entanto, após o acusado passar pelo devido processo legal a que todos os cidadãos têm direito, independente do crime que cometeram. Essa proteção está expressa na Constituição Federal de 1988. Durante o processo penal é obrigatório para o juízo averiguar a autoria e a materialidade do fato ocorrido. Este último, inclusive, precisa obedecer a três requisitos essenciais: ser típico, antijurídico e culpável (SANCHES, 2016).

O fato típico é, a grosso modo, a conduta praticada por um indivíduo cujo resultado é considerado crime pela legislação (tipo é o nome dado à descrição do crime na lei). Esse é um requisito básico do fato, porque, diferente do que muitas pessoas acreditam, nem todos os atos praticados são considerados criminosos: é preciso que ele esteja previsto na lei, imprescindível e expressamente.

O episódio do artista que apresentou uma performance sem roupa no Museu de Arte Moderna (MAM), em São Paulo, em setembro de 2017, por exemplo, não é crime, apesar de muita gente ter considerado a conduta imoral. O Código Penal não aponta a imoralidade como crime.

Para Sanches (2016, p. 177), o fato típico é uma

“ação ou omissão humana, antissocial que, norteada pelo princípio da intervenção mínima, consiste numa conduta produtora de um resultado que subsume ao modelo de conduta proibida pelo direito penal, seja crime de contravenção penal. Do seu conceito extraímos seus elementos, conduta, nexo causal e tipicidade.”

O fato antijurídico, por sua vez, é todo aquele que contraria o ordenamento jurídico. Na prática, a conduta antijurídica é considerada contrária à lei penal quando não viola os chamados bens jurídicos que são protegidos pelo ordenamento jurídico pátrio – como a vida e o patrimônio, por exemplo. Mas se determinada pessoa intentar contra a vida de outra, mas sob condições de estado de necessidade ou legítima defesa, por exemplo, ela não estará violando o bem jurídico da vida, já que a legislação prevê esse tipo de “exceção”, por assim dizer.

A culpabilidade, por fim, aufere se uma pessoa deve ou não responder pelo crime cometido. É, portanto, apenas uma consequência jurídica do delito e não uma característica dele. Afinal, nem todas as desgraças são causadas pela conduta de uma pessoa: um deslizamento de terras, por exemplo, pode tirar a vida de alguns indivíduos, mas nem sempre foi provocado por ação humana – a menos que se prove o contrário. Por isso, a culpabilidade, de acordo com o entendimento finalista, é composta dos elementos: imputabilidade, a consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa. Ou seja, outro meio de agir.

Assim, ausente qualquer um desses requisitos – o fato típico, antijurídico e culpável –, a conduta que levou à prática de algum delito não pode ser considerada crime. E o processo penal não tem continuidade.

A pena também possui uma tríplice finalidade: retributiva, preventiva e a reeducativa (SANCHES, 2016). Em sua finalidade retributiva (também chamada de teoria absoluta), a pena mostra-se como uma retribuição estatal, ou simples punição justa ao mal provocado pelo condenado, em razão da prática de um delito. Segundo Masson (2009), ela não se preocupa com a readaptação social do infrator da lei penal (não há finalidade prática). “A pena atua como instrumento de vingança do Estado contra o criminoso” (MASSON, 2009, p. 517).

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Já a finalidade preventiva (ou teoria relativa), a pena imposta tem por objetivo impedir novas práticas delituosas, haja vista a gravidade da natureza do crime. Na prática, a finalidade da pena, segundo Lenza (2005, p.469), “é a de intimidar, evitar que delitos sejam cometidos”.

Por fim, a finalidade reeducativa da pena, ou de caráter educativo, se dá a partir da fase da sua execução e está prevista ao longo de toda a LEP. A ideia, portanto, é buscar a reparação do ser humano e oferecer condições dignas para ajudar na reintegração social do condenado.

1.4 Princípios que regem a aplicação e execução da pena

A partir do momento um crime é praticado por alguém, surge para o Estado o dever de punir o indivíduo que o cometeu e aplicar-lhe a sanção prevista em lei de acordo com os requisitos apontados pelo Código Penal a determinada conduta.

Mas não é só. Além dos dispositivos legais, alguns princípios consagrados do Direito Penal também devem ser levados em conta pelo juiz na hora de calcular a pena (ou fazer a sua dosimetria, conforme termos técnicos). Tais princípios – que norteiam a tarefa do magistrado tanto durante a fase de aplicação da pena quanto na fase da sua execução – estão previstos na Constituição Federal de 1988 e também no próximo Código Penal, sejam eles expressos ou implícitos.

Assim, com base no que diz o texto constitucional, é possível enumerar seis princípios que regem todas as fases de aplicação e execução da pena: legalidade e anterioridade, personalidade, individualização da pena, proporcionalidade, humanidade e inderrogabilidade. Outros princípios conhecidos, como da fragmentariedade, intervenção mínima, insignificância ou lesividade, não entram nesta relação por se tratarem de gerais do Direito Penal que estão mais relacionados à existência (ou não) da infração penal e da possibilidade (ou não) da tipificação de uma conduta, e não à aplicação da pena como é o caso de interesse aqui.

1.4.1 Princípio da legalidade e princípio da anterioridade

O princípio da legalidade (também chamado de reserva legal) sustenta que a conduta praticada pelo indivíduo só pode ser considerada crime se já existir uma tipificação legal que seja anterior ao fato praticado – ou seja, que já esteve em vigor quando o caso aconteceu. Em outras palavras, pode-se afirmar que a pena ser aplicada sem a chamada prévia cominação legal – que, em latim, pode ser traduzida pela conhecida expressão nulla poena sine praevia lege. Por este motivo, Greco (2016) considera esse o mais importante princípio do Direito Penal. Essa proteção está garantida no art. 5.°, inciso XXXIX, da Constituição Federal, onde consta exatamente essa justificativa:

XXXIX. não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal (...).

Logo abaixo da Constituição, o Código Penal também aparece para reforçar tal garantia. A legislação é a única fonte do Direito Penal e, portanto, é a única capaz de proibir ou impor condutas sob a ameaça de sanção. Ou seja: tudo o que não for expressamente proibido é lícito em Direito Penal. Ela vem registrada já em seu art. 1º, aonde orienta:

Art. 1º. Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.

Na prática, o princípio da legalidade exige que as infrações penais sejam tipificadas em uma lei aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República, respeitando, portanto, o processo legislativo nos termos das formalidades constitucionais. É importante lembrar, no entanto, que uma nova infração penal não pode ser criada por meio de decreto, resolução ou medida provisória, por exemplo, segundo ensina Lenza (2015). A única possibilidade é fazê-la por intermédio de leis ordinárias e leis complementares, que demandam um determinado quórum mínimo de votos para a sua aprovação.

Em sequência a isso surge, então, o princípio da anterioridade. A anterioridade considera inconcebível que uma lei seja criada para punir determinado fato que tenha sido praticado antes da sua edição – assim como também não permite que o aumento da pena prevista para determinado crime atinja os fatos acontecidos antes dessa mudança (LENZA, 2015). Por isso, em respeito ao princípio da anterioridade se faz necessário que a lei incriminadora seja anterior ao fato delituoso que se pretende punir.

1.4.2 Princípio da personalidade

É com base no princípio da personalidade que os indivíduos que cercam aquela que cometeu um crime – como a sua família, por exemplo – de pagar pelo mal feito à sociedade. Na prática, isso significa que a pena é sempre personalíssima e não pode, portanto, passar da pessoa do delinquente.

O princípio da personalidade também impera por outros nomes como responsabilidade pessoal, intransmissibilidade, intranscedência ou pessoalidade e, assim como acontece com a legalidade, também está protegido pela lei mais importante do país.

A Constituição Federal trata sobre o assunto no art. 5.°, inciso XLV, que anuncia:

XLV. nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido (...).

Verifica-se, assim, que a pena aplicada só pode ser cumprida pelo indivíduo que foi condenado, sem qualquer possibilidade de ser transferida a um sucessor após a sua morte. É diferente, portanto, do que acontece no Direito Civil com a chamada responsabilidade por culpa in eligendo ou culpa in vigilando, em que outras pessoas podem responder pelos danos causados por determinado indivíduo (PACELLI; CALLEGARI, 2016). É o caso, por exemplo, do pai em relação ao filho ou do patrão em relação ao empregado.

A responsabilidade penal, portanto, é pessoal e intransferível.

1.4.3 Princípio da individualização da pena

O princípio da individualização da pena significa exatamente aquilo que o nome dela traz: para cada pessoa, o Estado-juiz deve estabelecer a pena exata e merecida. Ou seja, a pena-padrão deve ser evitada.

A proteção, mais uma vez, vem expressa na principal lei do país. Desta vez, a menção está concentrada no caput seu art. 5.°, inciso XLVI, onde se lê:

XLVI. a lei regulará a individualização da pena (...).

Nesse sentido, são três as fases de individualização da pena: cominação, aplicação e execução. A primeira começa já nas escolhas feitas pelo legislador, antes ainda da transformação em lei. É o momento que os parlamentares definem as condutas, positivas ou negativas, que atacam os bens jurídicos que devem ser objeto de proteção pelo Direito Penal e que devem, portanto, ser criminalizadas.

Segundo Greco (2016), ao fazer tal seleção, o legislador valora as condutas de acordo com critérios políticos e comina-lhe penas que variam de acordo com a importância do bem a ser tutelado e gravidade do ato praticado.

A proteção à vida, por exemplo, deve ser feita com uma ameaça de pena mais severa do que aquela prevista para resguardar o patrimônio; um delito praticado a título de dolo terá sua pena maior do que aquele praticado culposamente; um crime consumado deve ser punido mais rigorosamente do que o tentado etc (GRECO, 2016, p. 120).

A segunda fase é a da aplicação propriamente dita da pena: aquela feita pelo juiz, quando recebe o caso concreto para julgamento. É neste momento que ele avalia os requisitos do fato, ouve as partes, analisa as provas e dá o veredito. Entra em cena, então, a chamada dosimetria da pena (ou, simplesmente, o cálculo da pena que será aplicada).

Sobre isso, diz Greco (2016, p. 120): do bem a ser tutelado e gravidade do ato praticado.

Se o agente, v.g., optou por matar ao invés de ferir, a ele será aplicada a pena correspondente ao crime de homicídio. Tendo o julgador chegado à conclusão de que o fato praticado é típico, ilícito e culpável, dirá qual a infração penal praticada pelo agente e começará, agora, a individualizar a pena a ele correspondente. Inicialmente, fixará a pena-base de acordo com o critério trifásico determinado pelo art. 68 do Código Penal. atendendo às chamadas circunstâncias judiciais; em seguida, levará em consideração as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento de pena. Esta é a fase da chamada aplicação da pena, a qual compete, como deixamos antever, ao julgador, ou seja, ao aplicador da lei.

Greco (2016) ainda alerta para a importante transferência de esferas que acontece a partir do momento que a individualização da pena chega a esta etapa: a pena sai do plano abstrato (de cominação e mero planejamento do legislador) e passa para um plano mais concreto (de aplicação e julgamento).

Por fim, a terceira fase de individualização da pena é aquela pela qual os condenados são submetidos à classificação prevista no art. 5° da LEP que leva em consideração os seus antecedentes e a sua personalidade para colocar em prática a execução penal, enfim.

Além disso, é com base no princípio da individualização da pena que o Supremo Tribunal Federal (STF) tem entendido e julgado inconstitucional as leis que passaram a exigir regime obrigatório fechado para o início do cumprimento da pena no caso de alguns delitos. A ideia, segundo os ministros, faz referência ao fato de que a opção legislativa subtrai do Estado-juiz o dever de apreciar as circunstâncias que contornam o caso concreto.

Por isso, o STF editou a Súmula Vinculante nº 26, que diz:

Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei na 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico.

1.4.4 Princípio da proporcionalidade

Quase como uma sequência em relação à individualização da pena, o princípio da proporcionalidade surge para proteger o indivíduo de uma pena exagerada ou, então, branda demais. É isso que o princípio tenta promover: que tal pena seja sempre proporcional ao crime cometido, fazendo um equilíbrio entre a gravidade do delito praticado e a sanção penal a ser imposta.

Franco (apud GRECO, 2016, p. 125), por exemplo, enfatiza a importância de haver um juízo de ponderação nestes casos, que envolva a relação existente entre o bem que é lesionado ou posto em perigo (gravidade do fato) e o bem de que pode alguém ser privado (gravidade da pena). Toda vez que, nessa relação, houver um desequilíbrio acentuado, estabelece-se, em consequência, inaceitável desproporção.

A proteção ao princípio da proporcionalidade pode ser retirada de forma implícita do art. 5.°, inciso XLVI, da Constituição Federal, o mesmo onde a individualização da pena está mencionada. O resto do dispositivo, no entanto, enumera cinco tipos de sanção a serem aplicadas, da mais leve para a mais grave:

XLVI. a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:

a) privação ou restrição da liberdade;

b) perda de bens;

c) multa;

d) prestação social alternativa;

e) suspensão ou interdição de direitos;

Como se sabe, o Direito Penal se sustenta na adequada posição da intervenção mínima. Então, não faria sentido estipular penas demasiadas para crimes de menor importância e prever penas ínfimas para proteção de bens jurídicos de maior relevo (NUCCI, 2015).

É por este motivo que o legislador, ao elaborar normas incriminadoras, não pode aprovar leis penais extremamente rigorosas no calor de certos episódios isolados ou, então, em razão do clamor público. Conforme enfatiza Lenza (2015), isso importaria em distorções entre a pena prevista em abstrato e a gravidade do delito.

Araújo (apud SANCHES, 2015) também lembra que o princípio da proporcionalidade está diretamente vinculado à limitação do poder estatal na tutela do interesse público e dos interesses individuais. Assim, o agir estatal há de ser proporcional entre os meios a serem empregados e os fins a serem alcançados.

1.4.5 Princípio da humanidade

O princípio da humanização das penas é uma tentativa do Estado brasileiro vedar a aplicação de penas abusivas, cruéis, indignas, degradantes ou desumanas aos apenados, mais comuns de serem encontradas em países como os Estados Unidos, por exemplo. Seria o caso daquelas que impõem sentença de morte (a única exceção no ordenamento jurídico brasileiro, hoje, é nos casos de guerra declarada), trabalhos forçados e banimentos do brasileiro, seja ele nato ou naturalizado, de estar no território do país (admite-se apenas a deportação, a expulsão e a extradição de estrangeiros1 por se tratarem de penas de natureza administrativa e não sanção penal).

Tampouco são permitidas agressões e açoites ao apenado, como chicotadas e marcações com ferro em brasa. Entra também nessa lista de vedações as prisões de caráter perpétuo (que, no Brasil, não podem passar de 30 anos, nos casos de penas privativas de liberdade).

A própria Constituição Federal de 1988 se antecipou expressamente em relação a isso, declarando a dignidade da pessoa humana como o princípio mais importante de todo o sistema normativo brasileiro e um dos pilares que fundamentam o Estado Democrático de Direito no Brasil. A referência está feita já no art. 1º, que dá a orientação inicial a todos os demais dispositivos que vêm na sequência:

Art. 1º . A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I. a soberania;

II. a cidadania;

III. a dignidade da pessoa humana;

IV. os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V. o pluralismo político.

Para Pacelli e Callegari (2016), a dignidade da pessoa humana é mais que um princípio de natureza jurídica. É, também, “a base de todo o sistema político, social e econômico brasileiro, instituindo-se como mais importante núcleo de regulação do Estado (PACELLI; CALLEGARI, 2016, p. 105).

Por esse motivo, esse superprincípio encontra respaldo também no art. 5°, parágrafos 1° e 2°, da Convenção Americana de Direitos Humanos, tratado internacional entre países da qual o Brasil é signatário desde 1992:

§ 1º Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.

§2º Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o devido respeito à dignidade inerente ao ser humano.

Sendo assim, pode-se afirmar que o princípio da humanidade tem origem direta no superprincípio da dignidade da pessoa humana como forma de evitar ofensas à dignidade do cidadão. Além disso, a força do princípio que impede a tortura e a humilhação do cidadão que está preso também faz com que o Estado não perca a sua legitimidade de ius puniendi, nem venha a se igualar ao mesmo nível dos delinquentes (SANCHES, 2016). Mas não satisfeita em proteger os cidadãos apenas com o superprincípio da dignidade, a Constituição também voltou a reforçar o assunto outras vezes ao longo do seu texto. É o que acontece, por exemplo, com os incisos XLVII, XLIX e L do art. 5º:

XLVII. não haverá penas:

a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;

b) de caráter perpétuo;

c) de trabalhos forçados;

d) de banimento;

e) cruéis.

XLIX. é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral.

L. às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação.

Além disso, a legislação ordinária também segue os passos dados pelo texto constitucional. No Código Penal, por exemplo, o art. 38 diz:

Art. 38. O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral.

Já a LEP retoma a importância direta do princípio em pelo menos dois dispositivos: o 3º e o 40, que seguem:

Art. 3º. Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei.

Art. 40. Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios.

É essa manutenção da humanidade que garante também a busca pela ressocialização do apenado. Afinal, deve existir uma responsabilidade social do Estado em recuperar o condenado e a livre disposição de ajuda e a assistência social são caminhos para tanto, conforme lembram Mirabete e Fabbrini (2013).

Na prática, no entanto, o Estado tem dado pouca atenção ao princípio da humanização nas últimas décadas, especialmente no que se refere ao sistema carcerário e o consequente cumprimento da pena, conforme reitera Nucci (2014).

1.4.6 Princípio da inderrogabilidade

Uma vez constatada a prática da infração penal, e presentes todos os pressupostos legais, a pena deve ser fielmente aplicada e cumprida. É isso que trata o princípio da inderrogabilidade, como consequência da legalidade: ao reconhecer que uma pessoa praticou um fato típico, antijurídico e culpável, o juiz está obrigado a aplicar a pena e determinar o seu cumprimento.

No entanto, este princípio comporta exceções. É o que acontece com situações expressamente previstas em lei, como o perdão judicial, por exemplo, que, segundo lembra Lenza (2015), pode ser concedido em crimes como o homicídio culposo, a lesão corporal culposa e a receptação culposa, entre outros. Neste caso, a sanção penal foi desnecessária, mas o Estado-juiz exerce o seu o poder de decidir por não aplicá-la.

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Sobre o autor
Edward Müller Pickler

Bacharel em Direito. Escritor de obras jurídicas em Direito Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PICKLER, Edward Müller. Um destino em processo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7312, 9 jul. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/104964. Acesso em: 21 nov. 2024.

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