Introdução
O emprego da terminologia "inteligência artificial" (IA) tem uma história curiosa e, às vezes, mal interpretada1. Este termo, como um chamariz de recursos, foi primeiramente introduzido por John McCarthy2 em 1955, no intuito de angariar fundos da Rockefeller para a realização de uma conferência em Dartmouth, centrada na temática de "computadores automáticos" (PURSELL; WALKER, 2020).
Segundo os autores Pursell e Walker (2020), a ambição essencial da conferência era descobrir métodos para "fazer com que as máquinas utilizassem a linguagem, formassem abstrações e conceitos, resolvessem problemas antes considerados exclusivamente humanos e se auto aprimorassem". Embora estejamos ainda longe de alcançar completamente esse objetivo, certas implementações tecnológicas contemporâneas podem parecer estar alarmantemente próximas.
Nos dias atuais, mais de mil empresas utilizam a denominação "IA" como instrumento de marketing para os seus serviços ou para atrair investimentos que suportem os seus gastos operacionais. Entretanto, se essas empresas realmente implementam algoritmos de IA é uma questão separada e merece uma avaliação crítica (PURSELL; WALKER, 2020).
No decurso dos últimos sessenta anos, a IA tem atravessado ciclos, denominados como "invernos da IA", em que expectativas elevadas conduziram a resultados decepcionantes, desiludindo investidores e causando uma diminuição nos recursos direcionados para a pesquisa nesta área. Conforme apontam Pursell e Walker (2020), cerca de uma vez por década, há ocorrência de um "inverno da IA".
Atualmente, parece que estamos mais uma vez imersos em um ciclo de superestimação da IA. As declarações acerca das capacidades da IA estão se proliferando descontroladamente na mídia e na publicidade, deixando para trás a estrita disciplina da ciência da computação. No entanto, apesar deste panorama, Pursell e Walker (2020) não preveem um novo "inverno da IA" em razão dos reais avanços em velocidade de processamento e armazenamento de dados, bem como do crescimento exponencial de dados disponíveis.
Embora se antecipe uma reestruturação significativa entre os fornecedores, a tecnologia continua em um processo de melhoria (PURSELL; WALKER, 2020). Para Pursell e Walker (2020), o primeiro passo para a implementação bem-sucedida e lucrativa da tecnologia de IA em qualquer organização é dissipar os mitos e as concepções errôneas que distorcem a sua imagem real.
A seguir, analisaremos os sete mitos recorrentes acerca da IA, segundo os autores.
Mito 1: A IA é um robô
O primeiro mito é a comum confusão entre IA e robôs. Segundo Pursell e Walker (2020), a IA refere-se a um conjunto de procedimentos de análise de dados ou algoritmos realizados por software em um hardware, enquanto os robôs são dispositivos equipados com sensores que produzem dados digitalizados, uma unidade de processamento central para esses dados, partes mecânicas para realizar tarefas e uma fonte de energia para operar. Os autores destacam que muitas aplicações de IA, como em vendas e marketing, recursos humanos, finanças, atendimento ao cliente, educação, jurídico e governo, geralmente não envolvem robôs. Além disso, esclarecem que, embora a IA possa ser usada para controlar robôs, isso não confere a esses robôs uma inteligência semelhante à humana, não importa quão realistas eles possam parecer.
Mito 2: A IA sabe o que está fazendo
O segundo mito é a ideia de que a IA é autônoma e consciente de suas ações. A obra de Pursell e Walker (2020) enfatiza que a IA é uma ferramenta, não possuindo vontade ou volição. Seu desempenho e "comportamento" são inteiramente dependentes das instruções fornecidas por programadores humanos. Os autores advertem que as verdadeiras ameaças associadas à IA são resultado de negligência, descuido, malícia ou mal-entendidos humanos, não da IA em si. Eles citam como exemplo o infame caso do chatbot "Tay3" da Microsoft, que começou a produzir mensagens ofensivas após aprender com interações não moderadas nas redes sociais.
Mito 3: A IA é inescapável
O terceiro mito abordado por Pursell e Walker (2020) se refere à concepção equivocada de que a IA é inescapável. Sem dúvida, a IA desempenha um papel cada vez mais proeminente na economia moderna, com aplicações se espalhando por diversos setores como fogo. A rejeição das tecnologias da IA, de acordo com a ótica de alguns, poderia situar uma organização em desvantagem competitiva.
Entretanto, importante ressaltar que, a despeito da abrangência de suas aplicações, a IA permanece como uma ferramenta criada e controlada pelos humanos, sem poder para determinar a forma correta de administrar negócios ou de viver. De fato, grandes nomes da área, como Geoffrey Hinton, têm refutado veementemente a ideia de que os algoritmos da IA, como os de retro propagação, possam um dia permitir aos computadores aprender de forma independente e sem supervisão, como as crianças pequenas fazem.
Mito 4: O discernimento da IA
O quarto mito postulado por Pursell e Walker (2020) é a crença na capacidade da IA de discernir, compreender e perceber padrões ocultos. Apesar da presença de terminologias como "deep learning" e "redes neurais4", é fundamental entender que os algoritmos de IA operam de forma puramente matemática, sem compreensão contextual ou discernimento inerente.
Um algoritmo de IA não distingue correlação de causa, nem possui a capacidade de analisar o que poderia acontecer sob circunstâncias diferentes. Da mesma forma, algoritmos de retro propagação, nos quais a IA, o "deep learning" e as "redes neurais" são baseados, apenas tomam números de entrada, fazem cálculos baseados neles e geram números de saída.
A problemática surge quando a falta de transparência desses processos - as chamadas "caixas pretas" da IA - é confrontada com a necessidade legal de conformidade e de explicabilidade das decisões tomadas por algoritmos, especialmente no contexto da União Europeia, onde as pessoas têm o direito de saber o porquê de uma decisão algorítmica.
Mito 5: IA equivale a dinheiro fácil
Os autores postulam que o simples emprego de algoritmos de IA nos dados corporativos não gera automaticamente economia de custos, aumento de receita e lucros correspondentes (Pursell e Walker, 2020). De acordo com eles, é imprescindível uma reformulação dos processos de negócio ao incorporar essa tecnologia.
Eles argumentam ainda que futuristas entusiastas da IA alardeiam um futuro onde todas as tarefas seriam automatizadas, levando a empresas rentáveis praticamente sem trabalhadores humanos. Todavia, essa perspectiva é vista pelos autores como fantasiosa e irrelevante.
Mito 6: A IA vai dirigir os negócios
Contrariando o senso comum, a IA não assume o controle da gestão empresarial (Pursell e Walker, 2020). A IA oferece auxílio na compreensão sobre clientes e colegas de trabalho, podendo agilizar algumas operações e aliviar a carga em algumas tarefas, mas nunca substitui a liderança e a tomada de decisão humanas.
Mito 7: a IA vai controlar sua mente
Os autores destacam que, embora as ferramentas de IA como Google e Facebook processem volumes massivos de dados e categorizem os usuários para fins publicitários, cabe ao indivíduo a decisão final de adquirir ou não os produtos ou serviços anunciados (Pursell e Walker, 2020). Assim, concluem que a responsabilidade pelas decisões tomadas e os resultados gerados recaem sobre as pessoas, e não as máquinas.
Conclusão
Em suma, "Outsmarting AI" (Pursell e Walker, 2020) oferece um olhar esclarecedor e objetivo sobre a IA, demonstrando que, apesar de seu potencial, essa tecnologia tem suas limitações e não anula a necessidade de intervenção humana. Além disso, para uma adoção bem-sucedida de IA, é essencial ajustar os procedimentos operacionais padrão e considerar as pessoas que os gerenciam. Portanto, a obra se destaca por desmistificar percepções errôneas comuns sobre a IA, guiando profissionais e empresas na maximização de seu potencial.
Finalmente, os autores concluem que, embora a IA possa realizar tarefas complexas e até superar humanos em certos contextos, como jogos com regras bem definidas, a qualidade de seu desempenho é diretamente proporcional à qualidade dos dados em que foi treinada e das regras que lhe foram dadas. Como exemplo, eles mencionam "Norman5", a "primeira IA psicopata do mundo" criada por pesquisadores do MIT, cujas associações de texto e imagem perturbadoras foram inteiramente resultado de sua programação.
A obra destaca, portanto, que a IA, embora sofisticada, ainda está muito longe de alcançar a inteligência humana ou de atuar de forma autônoma e imprevisível. A responsabilidade pelo bom uso da IA recai sobre os humanos, não sobre a própria IA. A discussão aqui apresentada é um extrato adaptado do Capítulo 1 da obra de Pursell e Walker (2020) e serve para refutar alguns dos mal-entendidos mais comuns sobre a IA na literatura e na mídia popular. Para uma compreensão mais abrangente e detalhada dos conceitos e ideias discutidos, recomenda-se a leitura integral da obra.
PURSELL, Brennan; WALKER, Joshua. Outsmarting AI: Power, Profit, and Leadership in the Age of Machines. Lanham: Rowman & Littlefield Publishers, 2020.
MCCARTHY, J.; MINSKY, M.L.; ROCHESTER, N.; SHANNON, C.E. A proposal for the dartmouth summer research project on artificial intelligence. 31 ago. 1955. Disponível em: http://www-formal.stanford.edu/jmc/history/dartmouth/dartmouth.html. Acesso em: 11 jul. 2023.
https://web.archive.org/web/20160324232840/https://www.tay.ai/
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Redes Neurais (Neural Networks em inglês) são uma forma de Inteligência Artificial que busca replicar o funcionamento do cérebro humano através de algoritmos e cálculos matemáticos. Elas são formadas por unidades de processamento, denominadas neurônios, organizadas em camadas, que trabalham juntas para aprender a partir de dados.
Imagine, por exemplo, uma rede neural projetada para reconhecer imagens. Cada neurônio em sua estrutura analisa um pequeno fragmento da imagem e passa essa informação para os neurônios da próxima camada. Cada camada analisa a imagem de uma forma cada vez mais complexa, até que a rede seja capaz de entender a imagem como um todo.
Já Deep Learning (Aprendizado Profundo em português) é um subcampo da Inteligência Artificial que se concentra no uso de redes neurais com várias camadas - daí o termo "profundo". Essas redes, chamadas de redes neurais profundas, são capazes de aprender padrões muito complexos.
No contexto jurídico, por exemplo, o Deep Learning poderia ser usado para analisar grandes quantidades de casos legais e jurisprudências, identificando padrões e tendências que podem ajudar um advogado a formular uma estratégia legal mais eficaz.
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