9. Comportamento da sociedade
Já escrevi alhures e hoje reafirmo com dose redobrada de convicção: "Quem quiser saber o que é o direito, consulte o que o homem faz. Olhe em seu redor. Se por acaso encontra leis que definem, ou pensam definir, o que é obrigatório, facultado ou proibido, convém continuar observando. Isto é, convém verificar se seus destinatários e, especialmente, os órgãos encarregados de dar-lhes execução, agem em tal sentido" (O poder judiciário e a lei: a decisão contra a lei na jurisprudência penal catarinense. Dissertação de mestrado submetida ao CPGD/UFSC. Florianópolis: 1979, p.180).
O fato é que uma rigorosa metodologia já deixou patente a indiferença, a passividade e, mesmo, a aprovação tácita ou militante de importantes camadas da população, de maior poder persuasivo e decisório, com respeito a uma série de condutas teoricamente enquadráveis na Parte Especial do Código, que tipifica os delitos. É o que se passa, por exemplo, com o aborto consentido, mormente nas primeiras semanas de gravidez (à parte o problema ético e religioso, inconfundível com sua faceta jurídico-penal); com a prática de esportes e outras atividades intrinsecamente perigosos e nocivos à saúde e integridade corporal; com a exploração de motéis e outros locais de "alta rotatividade", destinados a encontros de natureza libidinosa; com a publicação, venda e exposição de escritos e cenas de caráter claramente pornográficos; com o favorecimento à prostituição, em sua forma simples, na hipótese de "vítima" eleitora, maior e vacinada; com a ortotanásia ou eutanásia por omissão; com certos tipos de aparente corrupção de menores, ou de abandono moral e intelectual; com o trote acadêmico e a "pendura" em restaurante, por parte de acadêmicos de direito, em sua data festiva (11 de agosto); com certas espécies de curandeirismo e assim por diante.
Registro especial merece o revogado art. 220 do Código Penal em vigor, que até recentemente (ano de 2005) considerava delito o "rapto" consensual de vítima beirando os 21 anos de idade. Não havia clima nem chance para a abertura de processo-crime. Mas a doutrina, sem pestanejar, e com impecável rigor dogmático, anotava e explicava a estrutura típica, ilícita e culpável do exótico dispositivo legal...
Vale também o reverso da medalha. Nem sempre a ideologia da lei (princípio da reserva legal) suplanta os preconceitos e idiossincrasias do intérprete, que procede, então, acobertado pela segurança do cargo e a certeza de receptividade às decisões contra legem, em prejuízo dos acusados. A mesma parafernália teórico-argumentativa se volta agora contra réus liminarmente indefesos, apesar da lei, cuja inoperância se denota proporcional à impotência do grupo e à petulância de alguns intérpretes.
Tudo se resume em vontade e liberdade de ação. O valor da lei reside em sua capacidade de eliminar no intérprete a liberdade para impor, ele próprio, uma vontade adversa. Isso ocorre apenas nos casos fáceis, de corriqueira identidade ideológica. Maior liberdade de ação diante da lei lembra divergência valorativa no seio da sociedade ou, pelo menos, imobilidade funcional desta última em termos de controle e fiscalização.
10. Participação do intérprete
É bom que se insista. Nenhuma teoria, de seu turno, subsiste por si só. A teoria jurídica precisa seduzir o intérprete a ponto de eliminar o poder de convencimento de qualquer outra, que lhe dispute, como rival, a indicação do caminho a seguir. E não necessita ser exclusivista, açambarcante, absoluta, se bem que neste caso o desfecho se deduza com facilidade, conforme já exposto, em virtude do processo de identificação de premissas convergentes. Para o latrocida, em conseqüência, não há outra resposta senão a da condenação criminal, porque a premisssa da lei, neste caso, é a premissa da sociedade e é, também, a premissa do intérprete.
Outras vezes, todavia, o problema se torna insolúvel. São infinitas as hipóteses de variações interpretativas de peso e valor relativamente razoáveis, em função da incompletude normativa do sistema. O sistema jurídico não se limita à lei e, por isso mesmo, está sempre a demandar o esforço participativo da própria sociedade, que se antecipa, por suas idéias e atitudes, ao gesto decisório de quem age em seu nome, ou em nome do Estado.
Além disso, conforme assinalado em outro contexto, o penalista precisa se dar conta de que profere suas lições em linguagem natural (no Brasil, em língua portuguesa), o que significa dizer que não se liberta dos vícios que lhe são inerentes, mesmo quando se atém à terminologia técnica, especializada. E as regras de hermenêutica jurídica ainda conservam as mesmas virtudes e defeitos de qualquer sistema de linguagem articulada, virtudes e defeitos que se encontram igualmente na linguagem utilizada pelo próprio legislador ("Interpretação e analogia em face da lei penal brasileira: visão teórico-dogmática e crítico-metodológica". Jus Navigandi, Teresina, ano 11, nº. 1474, 15 jul. 2007).
De qualquer modo, o que importa realçar é que as leis, com toda a sua vagueza e ambigüidade, guardam uma zona de clareza que não tem impedido seu descumprimento, com ou sem ficções argumentativas. Mas até mesmo quando cumpridas à risca as leis não escapam à condição de simples projeto de direito, à espera de ratificação. Essa ratificação se dá como ato de vontade e liberdade e, não, como decorrência natural de sua projeção lógica. É que em outras oportunidades, na alternância de dispositivos, o intérprete pode preferir a utilização de técnica diferente, à revelia da lei, não passando os argumentos e teorias invocadas de véu encobridor de inconfessada autonomia jurídica.
Vejamos outros exemplos.
Os penalistas não se entendem sobre a natureza da ação cabível na hipótese de estupro cometido com violência real. Para o art. 225 do Estatuto Repressivo a ação penal é privada, mas a presença concomitante do art. 101, referente aos crimes complexos, vem permitindo a certos juízes e doutrinadores optar pela tese da ação penal pública. Trabalham, portanto, com muita liberdade em torno da aplicação do princípio que determina a prevalência da regra especial sobre a regra geral.
Não nego, aqui, a confusão causada pelo próprio legislador. Entretanto, não posso deixar de realçar mais uma vez a insuficiência das técnicas hermenêuticas diante da fonte maior do direito que é a vontade relativamente livre de quem se encontra no exercício do poder decisório.
É o que sucede também, nos livros de doutrina e no dia-a-dia forense, com as discussões acerca da existência de crime único ou, ao contrário, de concurso de delitos: material, formal, crime continuado.
No furto em residência, fica absorvido o crime de violação de domicílio? A ausência de representação da vítima na hipótese de lesão corporal culposa encerra qualquer possibilidade de processo e julgamento pela direção de veículo em estado de embriaguez (CTB, art. 306) ou sem habilitação ou permissão (CTB, art. 309)? Há estelionato, falsidade documental ou ambos os delitos na hipótese de vantagem ilícita obtida mediante o citado artifício fraudulento? Quantos roubos comete o assaltante que, de arma em punho, subtrai dinheiro de cada passageiro de um ônibus? Quantos crimes pratica o motorista sem permissão ou habilitação que, em estado de embriaguez alcoólica, participa de um "racha" nas proximidades de um hospital?
As teorias do cardápio (especialidade; subsidiariedade; delito-meio em face do delito-fim; consunção; fato posterior impunível; conceito de ato e de ação, dentre outras) não resolvem absolutamente o enigma, tendo em vista que variam, nas circunstâncias, o apetite e a predisposição visual dos especialistas. Os métodos utilizados, terrivelmente frágeis em suas próprias contradições, acabam cedendo terreno à manipulação ocasional do intérprete, agente concreto de um direito que, não raro, simula previamente positivado pelo legislador. Recorde-se que nas vezes em que decide contra legem nem sempre ele age abertamente, preferindo esconder-se nas sutilezas de uma retórica pessoal e comprometedora.
Pior ainda é constatar-se, com Alessandro Baratta, que "pesquisa empírica tem ilustrado as diferentes atitudes avaliativas e emotivas dos juízes diante de pessoas pertencentes a diferentes classes sociais". Se bem que inconscientemente, são feitos "julgamentos diferenciados segundo a classe social do acusado" relativos ao elemento subjetivo (dolo, culpa), ao caráter sintomático do crime e individualização da pena. "Em geral, pode-se afirmar que existe uma tendência de parte dos juízes de esperar comportamento em conformidade com a lei de indivíduos pertencentes às classes média e alta, e comportamento bastante contrário de indivíduos pertencentes às classes mais baixas"("Marginalidade social e justiça", [trad.]. Revista de Direito Penal, Instituto de Ciências Penais do Rio de Janeiro, nº. 21/22, jan./jun. 1976, p. 13).
Em síntese: mesmo no plano teórico (dogmática jurídica) a solução termina por depender do intérprete e, não, da qualidade dos argumentos expendidos. E como estes mudam a cada mudança de artigo ou parágrafo, em função, quem sabe, de novo conteúdo ideológico, cai por terra toda e qualquer objetividade aparentemente proclamada. Direito é fenômeno ocasional, circunstancial, aglutinado que se encontra à heterogeneidade normativa e contraditória de várias fontes em disputa.
11. Lições da contradição
Quais as lições de tudo isso, em nível de ensino do direito?
Ora, todo professor ou jurisconsulto necessita em seu ministério de uma teoria explicativa da realidade jurídica; melhor dizendo, de uma teoria delimitadora de uma realidade jurídica inalcançável em sua intrínseca objetividade.
A melhor teoria ainda é aquela que se realimenta das observações e retificações aportadas pelo objeto tal como ele se apresenta aos sucessivos processos de apreensão e reconhecimento, no plano intelectual.
A contradição é a mola propulsora do direito. Sem contradição o direito pára, estaciona. Conservação ou mudança, todavia, são questões que transcendem ao vocabulário do jurista. Ingressam no delicado terreno do "dever ser", onde as respostas se condicionam a programas ideológicos necessariamente destituídos de embasamento científico. Problemas políticos e filosóficos se resolvem na ação e omissão comprometidas com prévio engajamento emocional. As premissas do "dever ser" escapam ainda, em seu sentido absoluto, da humana capacidade de resolução de conflitos.
Percebida a essência contraditória do direito, segue-se outra importante lição, de ordem metodológica. Há que se ensinar, de preferência, o raciocínio dos juristas, suas técnicas argumentativas e, sobretudo, os fatores ideológicos de suas atitudes e motivações. A insistência em eliminar as antinomias compromete, em sua origem, a objetividade do processo de busca e apreensão do direito. Este é sempre dinâmico e aberto à participação valorativa de vários interlocutores, que invalidam, com seu gesto, as mistificações dogmáticas de cunho subjetivista.
Ensinar o direito é curvar-se à realidade normativa dos próprios fatos, gerados concretamente nas interações coercitivas inerentes ao intercâmbio de condutas.
Em outras palavras, e para ficar-se com a velha sabedoria, contra os fatos inexiste argumento. Mais cedo ou mais tarde se descobre, por exemplo, a inoperância da clássica "separação de poderes" se Executivo, Legislativo e Judiciário caminham de mãos dadas na preservação de graves injustiças sociais, algumas delas, inclusive, institucionalizadas, como se deu com a escravidão.
A reação popular, através de suas lideranças, pode contribuir para o arrefecimento de privilégios e desigualdades ou corrigir os excessos dogmáticos através da reinvenção de outro direito, em termos de conteúdo. Esse arrefecimento e essa reinvenção passam também, a título de aliança, pelo eventual desequilíbrio das forças que dividem entre si o comando oficial da normatização jurídica.
O grupo social, se não dita formalmente o direito, pelo menos o reformula no entrechoque de suas próprias necessidades, carências e frustrações. Direito, afinal, não é sinônimo de justiça, embora seja lícito esperar que ambos se aproximem reciprocamente na adesão participativa dos destinatários.
Fica implícita nesta pedagogia a revalorização das fontes tradicionais do direito – lei, costumes, jurisprudência – desde que niveladas dialeticamente e, não, fragmentadas e distorcidas na estrutura arquitetônica de pretensas hierarquias, meramente convencionais.
Diferentemente do magistrado romano, que pede os fatos para fornecer, em seguida, o direito, o teórico de visão crítica e realista pede os fatos do legislador, do juiz e da sociedade para deles extrair, em suas potencialidades e convergências dialéticas, os fatos normativos concretos, ainda que contraditórios.
E quanto às perspectivas para o futuro, se os fatos precedem à teoria?
O direito, enquanto fenômeno, se antecipa a quem o ensina. Pode, porém, transformar-se, em sentido ético e funcional, na medida em que seu aprendizado alargar o campo de liberdade de sua própria natureza evolutiva, germinada pelos homens em suas relações de convivência social.
Referências bibliográficas:
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BARATTA, Alessandro. Marginalidade social e justiça, [trad.]. Revista de Direito Penal, Instituto de Ciências Penais do Rio de Janeiro, nº 21/22, jan./jun. 1976.
BASTOS, João José Caldeira. Interpretação e analogia em face da lei penal brasileira: visão teórico-dogmática e crítico-metodológica. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, nº 1474, 15 jul. 2007.
Disponível em: <http://jus 2. uol. com. br/doutrina/texto.asp?id = 10130>. Acesso em 15 jul. 2007.
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FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio. O dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Constitucionalismo e interpretação: um certo olhar histórico. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1523, 2 set. 2007. Disponível em: <http://jus 2. uol.com.br/doutrina/texto.asp?id = 10351>. Acesso em 07 out. 2007.