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Direitos sociais prestacionais garantidores do mínimo existencial a partir da teoria sistêmica

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18/10/2023 às 19:35

Resumo:


  • O artigo analisa os direitos sociais prestacionais sob a teoria sistêmica de Luhmann, destacando a garantia do mínimo existencial e argumentando contra a visão de que tais direitos são meramente programáticos e dependentes de políticas públicas, o que acaba por aumentar a complexidade sistêmica e comprometer a estabilização das expectativas normativas da sociedade.

  • De acordo com a literatura jurídica dominante, as normas que definem direitos sociais fundamentais são consideradas programáticas e carecem de ação legislativa para sua concretização, o que pode levar ao entendimento equivocado de que a política tem primazia sobre o direito, gerando riscos à eficácia do sistema jurídico e à realização da justiça social.

  • A corrente crítica defende que os direitos sociais prestacionais são imediatamente aplicáveis e vinculam os órgãos estatais, sendo dever do Estado implementar políticas públicas para garantir a igualdade material e a dignidade humana, o que inclui a possibilidade de exigir judicialmente do Estado a efetivação de direitos sociais fundamentais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A GARANTIA DO MÍNIMO EXISTENCIAL

Em tempos de ultraneoliberalismo e de naturalização de discursos de ódio ecoados por vozes autoritárias, é sempre necessário, antes de tudo, bradar a plenos pulmões que a dignidade humana é o valor máximo do Estado Democrático de Direito, encontrando no mínimo existencial o conteúdo social do princípio isonômico (LOPES, 2013, p. 66). Nesse sentido, Häberle (2005, p. 120) aponta:

A dignidade humana constitui a “base” do Estado constitucional como tipo, expressando as suas premissas antropológico-culturais. Os poderes Constituintes, “de mãos dadas”, com a jurisprudência e a ciência, e mediante uma atuação também criativa, desenvolveram e construíram estes fundamentos. Acompanhar e seguir as fases do crescimento cultural e, com isso, também as dimensões da dignidade humana em permanente processo de evolução, é tarefa de todos: o Poder Constituinte até o cidadão, resultando no direito do cidadão à democracia.

A literatura jurídica alemã repercute que a garantia de condições mínimas para uma existência digna integra o conteúdo essencial do princípio do Estado Social de Direito, constituindo uma de suas principais tarefas e obrigações (SARLET, 1998, p. 293)

Scholler (1980, p. 672) defende que a dignidade apenas estará assegurada “quando for possível uma existência que permita a plena fruição dos direitos fundamentais, de modo especial, quando seja possível o pleno desenvolvimento da personalidade.”

Nesse mesmo contexto, Sarlet (1998, p. 318-319) expõe:

[...] ao Estado não apenas é vedada a possibilidade de tirar a vida (daí, por exemplo, a proibição da pena de morte), mas também (...) a ele se impõe o dever de proteger ativamente a vida humana, já que esta constitui a própria razão de ser do Estado, além de pressuposto para o exercício de qualquer direito (fundamental, ou não). Não nos parece absurda a observação de que negar ao indivíduo os recursos materiais mínimos para a manutenção de sua existência (negando-lhe, por exemplo, uma pensão adequada na velhice, quando já não possui condições de prover seu sustento) pode significar, em última análise, condená-lo à morte por inanição, por falta de atendimento médico etc. Assim, há como sustentar – na esteira da doutrina dominante – que ao menos na esfera das condições existenciais mínimas encontramos um claro limite à liberdade de conformação do legislador.

Estabelecida a premissa segundo a qual as prestações sociais mínimas são direitos fundamentais, pergunta-se: e qual seria então esse mínimo? Em resposta: o mínimo existencial deve compreender renda básica, saúde, alimentação, moradia, educação pré-escolar e fundamental, água e luz subsidiadas aos vulneráveis, acesso gratuito dos hipossuficientes à Justiça, de um modo geral, o art. 6º da CF-88.

Barcellos assenta que o mínimo existencial configura o núcleo irredutível da dignidade humana, sendo composto por quatro elementos: a educação fundamental, a saúde básica, a assistência aos desamparados e o acesso à Justiça.(BARCELLOS, 2002, p. 258)

Ferreira (2008, p. 30-34) aponta a clássica obra Teoria das Necessidades Humanas, de Doyal e Gogh, como importante catálogo daquilo que deve ser garantido a todos, universalmente, enquanto direitos sociais, sob a perspectiva das necessidades humanas básicas:

Alimentação nutritiva e água potável; b) Habitação adequada; c) Ambiente de trabalho desprovido de riscos; d) Ambiente físico saudável (meio ambiente ecologicamente sadio); e) Cuidados com a Saúde; f) A proteção à infância; g) Segurança econômica, planejamento de condições materiais de vida, mediante normas duradouras e estáveis; h) Segurança física (proibição de tortura); i) Relações primárias significativas – não segregar indivíduos, não limitar suas relações com parentes, amigos e sociedade em geral; j) Educação Apropriada; k) Segurança no planejamento familiar, na gestão e no parto.

Todos direitos sociais acima mencionados estão inscritos na Constituição brasileira - arts. 3.º, III, 5º, III, 6º, 7º, 196, 200, IV e VI, 203, 205, 206, 208, 210, 225, 226, § 7º, 227 e 229 -, devendo ser acrescidos a esse catálogo seguridade social e o acesso dos vulneráveis à Justiça, na linha do que traça Barcellos (2002, p. 258).

Sarlet (1998, p. 316) defende ser inverídico o argumento comum segundo o qual em tempos de crise econômica até mesmo a garantia de direitos sociais mínimos poderia colocar em risco a estabilidade capitalista. Nessa linha, Alexy (1990, p. 467) apregoa que é exatamente “em tais circunstâncias que uma proteção de posições jurídicas fundamentais na esfera social, por menor que seja, se revela indispensável”.

Sobre o dever estatal de garantir um mínimo de proteção social, a jurisprudência do STF já assentou a indispensabilidade desse direito constitucional, como observado na Reclamação Constitucional 4.374:

[...] a miséria constatada pelo juiz é incompatível com a dignidade da pessoa humana, princípio garantido no art. 1º, inc. III, da Constituição da República; e a política definida a ignorar a miserabilidade de brasileiros é incompatível com os princípios postos no art. 3º e seus incisos da Constituição; e a negativa do Poder Judiciário em reconhecer, no caso concreto, a situação comprovada e as alternativas que a Constituição oferece para não deixar morrer à mingua algum brasileiro é incompatível com a garantia da jurisdição, a todos assegurada como direito fundamental (art. 5º, inc. XXXV, da Constituição da República).


A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO

O princípio da proibição do retrocesso não está expresso na Constituição, ele decorre de uma interpretação finalística do sistema constitucional, segundo a qual uma lei, ao instituir um direito social previsto na Constituição o incorpora definitivamente ao patrimônio jurídico da cidadania e, por isso, não pode mais ser arbitrariamente suprimido (SARLET, 2008, p. 22)

Sobre as normas constitucionais que reconhecem direitos sociais prestacionais, Canotilho e Moreira (1991, p. 131) sugerem que elas implicam uma proibição de retrocesso, já que, para os autores, “uma vez dada satisfação ao direito, este se transforma, nessa medida, em direito negativo, ou direito de defesa, isto é, num direito a que o Estado se abstenha de atentar contra ele”.

Nessa perspectiva, na medida em que se concretiza determinado direito social prestacional ele acaba por transformar-se em direito de defesa. Em razão disso, uma lei posterior não poderá cessá-lo, ao revés, deverá manter os graus mínimos de segurança social alcançados, evitando-se retrocesso ou abolição a um direito fundamental.

O que se veda, portanto, é o ataque à efetividade da norma, que foi alcançada a partir da sua regulamentação. O legislador infraconstitucional, que deu concretude ou tornou viável o exercício de um direito constitucional que dependia de sua intermediação, poderá até produzir a alteração do ato legislativo, desde que dentro dos limites constitucionalmente admitidos, mas não poderá simplesmente extingui-lo ou revogá-lo, fazendo a situação voltar ao estado de omissão legislativa anterior (BARROSO, 2003, p. 158-159)

Um bom exemplo do princípio da proibição do retrocesso social é o Programa “Bolsa Família” (durante parte do governo de Jair Bolsonaro mudou o nome para “Auxílio Brasil”), pois uma eventual extinção dessa política pública de transferência de renda somente pode se dar se for criada outra política social compensatória, de igual ou superior valor e alcance, sob pena de ser objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade, a menos que se elimine de vez a miséria no Brasil, a ponto de ninguém mais precisar de programas dessa espécie, o que não parece estar no horizonte, lamentavelmente.

E é nesse ambiente que cada vez mais se admite a existência do princípio da vedação do retrocesso em direitos fundamentais, tema que, para Sarlet (2007, p. 10), embora ainda não esteja suficientemente difundido, “tem encontrado crescente acolhida no âmbito da doutrina mais afinada com a concepção do Estado Democrático de Direito” .


A RESERVA DO FINANCEIRAMENTE POSSÍVEL

Embora este artigo se alinhe à corrente concretista segundo a qual os direitos sociais prestacionais são dotados de exigibilidade imediata pelo Poder Judiciário - ao menos no tocante à garantia do mínimo existencial -, não se pode, por outro lado, fechar os olhos para o conteúdo marcadamente econômico que envolve tais direitos.

Sarlet (1998, p. 318) assim desenvolve o referido paradoxo:

Se, por um lado, pode afirmar-se que eventual abertura e indeterminação do enunciado normativo não constituem, por si só, argumento suficiente para sustentar a dependência dos direitos sociais prestacionais de interposição legislativa, já que mesmo na esfera dos direitos de defesa e até das normas organizacionais tal circunstância não impede, de regra, sua imediata aplicabilidade e eficácia, da mesma forma, é preciso reconhecer que, mesmo no caso de uma suficiente determinação do conteúdo da prestação ao nível da Constituição, isto não resultaria na neutralização da barreira fática da reserva do possível, pois, mesmo sabido exatamente o que buscar pode disto não dispor o destinatário.

Mitigar esse antagonismo passa pela adoção de prioridades e por conscientização política. Priorizar no sentido de aplicar o orçamento em seu máximo com a garantia de existência física e moral do indivíduo, como saúde e educação, pois a dignidade deve ser o fundamento central do dever estatal de arrecadar. Já a conscientização política significa utilizar o dinheiro público de maneira eficiente.

Como aborda Lopes (2013, p. 79) “não pode ser a existência de recursos alocados um condicionante dos direitos fundamentais sociais; ao revés, são os direitos fundamentais sociais que devem condicionar a alocação dos recursos existentes”.

Não parece aceitável, por exemplo, despender gastos com shows, propagandas, eventos, reformas estéticas em imóveis públicos, lanches para políticos, autoridades e servidores dos três poderes, auxílios, diárias, etc, enquanto não forem totalmente realizadas as necessidades humanas mínimas dos economicamente pobres.

Quem mais recolhe tributo no Brasil é a base da pirâmide social, ou seja, aquelas pessoas que recebem até três salários mínimos, contribuindo com cerca de 53% de toda a arrecadação tributária do país (FARIAS, 2014). Ainda assim, ao invés de transferir recursos para quem realmente mais necessita, transfere-se o dinheiro recolhido por esses para quem menos precisa, o topo da pirâmide, e isso é um exemplo de Estado Antissocial e não do Estado Social abrigado pela Carta de 1988.

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Nessa conjuntura, será que é mais importante, para quem mais contribui, que o Estado implemente teto de gastos ou reformas fiscais a fim de obter superávit primário e assim agradar o “mercado”, ou que ele gaste com a garantia dos direitos sociais fundamentais em benefício da maioria? A segunda opção parece óbvia.

Para Amaral (2001, p. 184) dizer que se gasta muito recurso público e se obtém pouco “é uma maneira mais gentil de dizer que milhares, talvez milhões de pessoas são privadas de serviços básicos não por carência de recursos, mas por má alocação”.

Direto ao ponto, Sarlet (2009/2010, p. 43) expressa:

Em verdade, quanto mais diminuta a disponibilidade de recursos, mais se impõe uma deliberação democrática e responsável a respeito de sua destinação, especialmente de forma a que sejam atendidas satisfatoriamente todas as rubricas do orçamento público, destacando-se aquelas que dizem com a realização dos direitos fundamentais e da própria justiça social. Na mesma proporção, deverá crescer o índice de sensibilidade por parte daqueles aos quais foi delegada a difícil missão de zelar pelo cumprimento da Constituição, de tal sorte que – em se tratando do reconhecimento de um direito subjetivo a determinada prestação social – assume lugar de destaque o princípio da proporcionalidade, que servirá de parâmetro no indispensável processo de ponderação de bens que se impõe quando da decisão acerca da concessão, ou não, de um direito subjetivo individual ou mesmo da declaração de inconstitucionalidade de uma medida restritiva dos direitos sociais.

Para negar imediata exigibilidade aos direitos sociais, a corrente não concretista busca compará-los aos direitos individuais, sustentando que os gastos com esses direitos são baixos por não exigirem um agir positivo estatal, como ocorre com os direitos sociais. Mas tal visão é equivocada, já que os direitos liberais também consomem vultosos recursos públicos, como por exemplo a realização de eleições, a manutenção das corporações policiais e do próprio Poder Judiciário (BARROSO, 2008, p. 224).

Ainda na linha da definição de prioridades, Galdino (2006, p. 325) salienta:

O que verdadeiramente frustra a efetivação de tal ou qual direito reconhecido como fundamental não é a exaustão de um determinado orçamento, é a opção política de não se gastar dinheiro com aquele mesmo “direito”. A compreensão dos custos como meios de promoção dos direitos, e a observação empírica de que tais meios são insuficientes para atender a todas as demandas, leva necessariamente à conclusão de que não é propriamente a ‘exaustão da capacidade orçamentária’ que impede a realização de um determinado direito. O argumento da ‘exaustão orçamentária’ presta-se unicamente a encobrir as trágicas escolhas que deixaram de fora do universo do possível a tutela de um determinado ‘direito’.

A reserva do possível adquire importância prática quando as reivindicações por direitos sociais batem às portas do Judiciário, pois é partir daí que se observa o desvirtuamento do debate pelo Poder Executivo, cuja tese central de defesa é sempre a ausência de recursos. Mas não basta a mera alegação de insuficiência orçamentária, é preciso comprová-la concretamente, e esse ônus é exclusivamente do poder público, como decidido mocraticamente pelo Ministro Celso de Mello na ADPF nº 45 MC/DF, ainda em curso:

[...] Cabe assinalar, presente esse contexto – consoante já proclamou esta Suprema Corte – que o caráter programático das regras inscritas no texto da Carta Política “não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado” (RTJ 175/1212-1213, Rel. Min. CELSO DE MELLO). Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo ao tema pertinente à “reserva do possível” (STEPHEN HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, “The Cost of Rights”, 1999, Norton, New York), notadamente em sede de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas. [...] Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.

É inegável que a reserva do possível é um argumento plausível, mas, apesar disso, não pode ser subterfúgio para negar continuamente direitos sociais fundamentais. Entre a reserva do possível e a implementação de direitos fundamentais esses últimos devem sempre prevalecer, pois, como aponta Vieira (2019, p. 145), ao reconhecer a “Constituição como a ordem jurídica de valores que justifica a existência do Estado, automaticamente exige-se dele a realização desses valores”.

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Sobre o autor
Alexandre Perin da Paz

Defensor Público do Estado de Minas Gerais. Mestrando em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Especialista em Direito Público pela Escola Paulista da Magistratura (2010). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (2005).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAZ, Alexandre Perin. Direitos sociais prestacionais garantidores do mínimo existencial a partir da teoria sistêmica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7413, 18 out. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/105397. Acesso em: 22 dez. 2024.

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