NORMAS PROGRAMÁTICAS E GERAÇÃO DE COMPLEXIDADE
Sob a perspectiva da teoria dos sistemas sociais de Luhmann, a Constituição forma um acoplamento estrutural entre o sistema do direito e o sistema da política. Há entre esses sistemas acoplados estruturalmente, uma relação paradoxal de independência e dependência, e de complementaridade e tensão, cenário que, ao mesmo tempo, de forma alguma significa subordinação de um sistema pelo outro (NEVES, 2009, p. 35).
Nas democracias, todo processo constituinte originário conta com o acoplamento estrutural entre a decisão política e a normatividade jurídica. Para Neves (2009, p. 62) a Constituição fecha o sistema jurídico e o povo fecha o sistema político, autolegitimando-os. Constituição é norma e política é decisão.
Antes da norma jurídica ser produzida pelo sistema autopoiético do direito, ela foi, primeiro, comunicação resultante da aplicação do código binário do sistema político: governo e oposição (LUHMANN, 2016, p. 322-344).
A norma jurídica é, portanto, a operação resultante das engrenagens funcionais do sistema do direito, que, precedida das operações embrionárias do sistema político, visa reduzir a complexidade das comunicações sociais que circulam pelo ambiente, gerando, com isso, a generalização e a estabilização das expectativas normativas da sociedade, função que é própria do sistema do direito.
Agora, o que fazer quando há risco a essa estabilização, ou seja, quando a conduta social de conformidade dessas expectativas normativas não pode ser alcançada porque o sistema do direito não consegue fazê-lo por si próprio, como ocorre com as normas ditas programáticas?
Os defensores da inexigibilidade imediata dos direitos sociais prestacionais respondem a essa questão sustentando que o acoplamento estrutural da norma programática é diferenciado, pois ainda que seja norma jurídica oriunda da mesma fonte das demais espécies de normas - a Constituição -, paradoxalmente o sistema do direito reabre-se para a uma outra decisão não jurídica, advinda do sistema da política.
Sob essa errática perspectiva, a norma programática, ao admitir uma reabertura para que a comunicação jurídica não seja mais essencialmente jurídica e sim política, ao invés de reduzir, paradoxalmente aumenta a complexidade sistêmica. Por isso que, do ponto de vista sistêmico de Luhmann (2016, p. 122), “o direito não pode enunciar de forma duradoura: você tem direito, mas infelizmente não o podemos ajudar” , pois é “preciso que sejam oferecidos ao menos substitutos para o cumprimento do exigido (multas, indenizações etc.) e que haja a capacidade de imposição desses sucedâneos” (LUHMANN, 2016, p. 122).
Como se nota, não pode um sistema emitir comunicação baseada em um código diverso do seu, sob pena de quebra de unidade sistêmica. Logo, se o Executivo se omite no seu dever de afirmar concretamente determinada norma garantidora do mínimo existencial, é papel constitucional do Judiciário afirmá-la em substituição, seja através de ações individuais seja por meio de ações coletivas, tais como o mandado de injunção coletivo, a ação direta de constitucionalidade por omissão, a arguição de descumprimento de preceito fundamental e a ação civil pública.
E assim o é, segundo Lima (2011, p. 8), porque embora o sistema jurídico tenha partido do sistema político para criar a norma, o ato de aplicá-la e interpretá-la depende dos tribunais, com base em novas escolhas. Se a Constituição, gerada a partir desse acoplamento estrutural, tem por função impor limites à política, o seu uso simbólico (NEVES, 2009, p. 81-82), negando efetividade aos direitos sociais fundamentais, gera mutação de funções, com a política limitando o sistema do direito (a Constituição), quando deveria ser exatamente o oposto (LUHMANN, 2016, p. 378-380)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Predomina o entendimento segundo o qual os direitos sociais prestacionais não podem ser efetivados através de ordem judicial, por faltar aos juízes legitimidade política para garantir a adjudicação de prestações sociais, ainda que mínimas, na medida em que essas, por serem normas programáticas, dependem de condições políticas e macroeconômicas (corrente não concretista).
Ainda que se reconheça a importância das questões políticas e econômicas a envolverem a temática, a visão majoritária não parece acertada, ao menos no âmbito de países periféricos que tanto têm por avançar em termos de justiça social, como é o caso do Brasil, que tem como postulado constitucional a aplicabilidade imediata de todos os direitos fundamentais, sem exceção, como preconiza o art. 5.º, §1º, da CF/88.
É certo que tal debate se acirra ao se constatar que a efetivação dos direitos sociais é economicamente vultoso e politicamente mais complexo que a concretização dos demais direitos. Todavia, a complexidade em torno da concretude da norma não pode ser pretexto para simplesmente negar ou protrair indiscriminadamente no tempo direitos fundamentais que substanciam a própria dignidade humana, como reconhece a Constituição da República.
Nessa linha, as prestações estatais positivas, por serem verdadeiros direitos públicos subjetivos, que independem ou vão além da atuação do legislador infraconstitucional, devem ser efetivadas pela via judicial quando há omissão dos demais poderes, pois o Poder Judiciário, quando chamado, não pode fugir ao seu dever constitucional de não frustrar as aspirações do poder constituinte originário, externalizadas através do texto normativo da Constituição.
Com razão Mello (2009, p. 51) e Leonetti (1999, p. 114) ao preconizarem que “quem diz a verdade jurídica não é o legislativo, nem o executivo, mas o judiciário, e como disposições constitucionais são normas, o judiciário é o titular do poder de dizer sobre elas”.
Certamente a teoria concretista não deve ficar imune a limites, de tal sorte que os direitos subjetivos prestacionais devem ser efetivados diretamente pelo Judiciário apenas e tão somente quando o Executivo descumprir de tal maneira a sua função a ponto de colocar seriamente em risco a igualdade material, negando-se ou omitindo-se na garantia de distribuir condições mínimas de dignidade para todos.
Há, portanto, como defendido por Canotilho (1982, p. 363), uma mutação plástica operada nas relações entre a lei e os direitos fundamentais, e hoje não se fala mais em direitos fundamentais na medida da lei, e sim em leis na medida dos direitos fundamentais, com esses justificando a existência, a validade e a eficácia daquelas (SARLET, 1998, p. 324)
Com efeito, é possível, com base em uma norma proclamatória de direito social fundamental, reconhecer-se ao particular ou à coletividade, no caso das ações coletivas difusas ou concentradas, um direito subjetivo, facultando o direito de exigir judicialmente do Estado uma determinada prestação material, como educação pré- escolar e fundamental, saúde, comida, assistência social, acesso à Justiça etc.
Logo, decisão judicial que obriga o Poder Público a entregar dado direito social prestacional é juridicamente possível por encontrar pleno lastro constitucional, até porque o Judiciário só se manifesta se chamado, não se imiscuindo em outros poderes de ofício, cumprindo a ele, quando provocado, fazer com que os outros poderes cumpram suas funções e competências constitucionais.
Nesse cenário, aquilo que antes era mera promessa ou discurso vazio, passa a ter conteúdo jurídico. Aquele que passa necessidade não precisa mais beijar a mão de político para ter direitos, pode ir ao Poder Judiciário e exigi-los, dentro de um contexto de democracia substancial e participativa.
Por outro lado, isso também não pode dar ao Judiciário um superpoder, a prejudicar o que foi conquistado até aqui por nossa jovem democracia, é preciso observar se, ao garantir Justiça no caso concreto, não se está gerando injustiça. Seguindo o pensamento aristotélico, a virtude está no meio, e o “meio”, no campo dos direitos sociais fundamentais, deve estar sempre na garantia do mínimo existencial.
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Abstract: Under the perspective of the Luhmannian systemic theory, the article addresses the social rights that guarantee the existential minimum. For the predominant legal literature, such norms have low efficacy density, being, therefore, merely programmatic and directing future commitments and not binding on the State, as they depend on political factors and public policies assumed as "flags" by each elected government and also on economic and budgetary issues. It turns out that the adoption of this premise has distorted the autopoiesis of the legal system, generating a systemic crisis, deteriorating the normative reproduction capacity of the Constitution, hindering the process of concretizing social rights and corrupting the structural plan of normative social expectations.
Key words: Social Rights. Existential Minimum. Social Systems Theory.