Gratuidade de Justiça e honorários sucumbenciais

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17/08/2023 às 12:03

Resumo:


  • A evolução dos honorários advocatícios sucumbenciais no ordenamento jurídico brasileiro.

  • Análise da relação entre gratuidade de Justiça e honorários advocatícios sucumbenciais.

  • Discussão sobre a imposição de trabalho não remunerado a particulares, à luz do valor social do trabalho e da Constituição Federal.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Resumo

O presente trabalho visa apresentar a gênese e uma análise acerca da relação entre gratuidade de Justiça e honorários advocatícios sucumbenciais com destaque para a evolução de ambos os conceitos no ordenamento pátrio de modo a estudar a in(constitucionalidade) da previsão, por norma infraconstitucional, de condição suspensiva e impeditiva para o recebimento dos honorários sucumbenciais por vencedor em causas nas quais o devedor se afigura pessoa hipossuficiente ante o princípio da valorização social do trabalho, da valorização do trabalho humano, da razoabilidade, da isonomia e da proporcionalidade.

Palavras chave: Honorários advocatícios sucumbenciais. Gratuidade de Justiça.

Introdução

O texto tem por objetivo analisar, sob o enfoque constitucional, a possibilidade de o Estado estabelecer uma imunidade, em favor do litigante comprovadamente hipossuficiente, das verbas particulares alimentares atinentes aos honorários advocatícios de sucumbência à semelhança da imunidade estatal em relação às custas ou taxas judiciais e aos honorários periciais, estes custeados pelo erário, em outros termos, discute-se a possibilidade de o Estado impor um trabalho voluntário não remunerado e previamente desconhecido a particulares ou se isso violaria a Constituição Federal.

Para tanto, o artigo a seguir se divide em três partes: a primeira enfoca no estabelecimento dos conceitos e da gênese da questão, a segunda deita luzes acerca da diferenciação legal em relação à situação envolvendo as multas processuais, os honorários periciais e os honorários advocatícios devidos aos patronos dos hipossuficientes, quando vencedores, e se isso seria proporcional e razoável, e, a terceira, enfoca especificamente na natureza da verba como particular e alimentar e na insindicabilidade do tema pelo Estado, sob a ótica da proteção da esfera individual, da remuneração pelo trabalho e da imposição de uma filantropia involuntária.

Conceitos e gênese da discussão

A Constituição da República, em seu artigo 5º, LXXIV, dispõe que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recurso”. Quanto a essa garantia fundamental, a doutrina tem dividido o direito constitucional em dois pontos: (i) Assistência Jurídica aos hipossuficientes, isto é, o serviço gratuito de representação, em juízo e a consultoria e orientação extrajudicial; e (ii)  a Justiça gratuita que trata da dispensa quanto ao pagamento das despesas processuais e extraprocessuais, necessárias para o andamento do processo judicial ou para a concretude de sua efetividade (ex. emolumentos).

Quanto à assistência jurídica gratuita, o legislador constituinte realizou a adoção expressa do salaried staff model2, incumbindo a Defensoria Pública de realizar a assistência jurídica integral e gratuita dos necessitados com profissionais concursados, titulares de cargos públicos efetivos e remunerados de maneira fixa, custeada diretamente pelo Estado, sob regime de dedicação exclusiva (art. 134 da Constituição).

Já no tocante à gratuidade de Justiça, esta constituiria instituto jurídico de Direito Público que possui natureza dúplice: “manifesta natureza tributária3 quando dispensa a antecipação do pagamento das custas stricto sensu, taxa judiciária e emolumentos notariais ou registrários; e manifesta natureza processual quando afasta o pagamento das despesas processuais de ordem civil e dos honorários sucumbenciais4.

Segundo a doutrina, no tocante ao direito processual, a gratuidade de Justiça deveria abranger “todos os gastos gerados pelo processo, dentre os quais naturalmente deveriam ser incluídos os honorários advocatícios devidos à parte contrária” Pois, “somente assim poderia o hipossuficiente econômico valer-se plenamente do processo para defender seus direitos, sem ser inibido de ingressar em juízo ou dissuadido a aceitar acordos desvantajosos em virtude do medo da ruína financeira no caso de derrota”5.

Convém destacar que a discussão doutrinária sobre o âmbito objetivo de incidência da Justiça gratuita na sucumbência, nos tempos do artigo 12 da Lei n° 1.060/19506, se dividia em três correntes: 1) corrente plurilimitativa: sustentava que o reconhecimento do direito à gratuidade de justiça não teria o condão de dispensar o pagamento de qualquer verba sucumbencial, mas apenas a dispensa do adiantamento dessas verbas; 2) corrente monolimitativa: sustentava que a gratuidade de justiça aplicada na sucumbência asseguraria apenas a dispensa condicional do pagamento das custas lato sensu, não abrangendo os honorários advocatícios; 3) corrente extensionista (ou não limitativa): defendia que a gratuidade de justiça na sucumbência deveria abranger tanto as custas lato sensu, quanto os honorários advocatícios devidos à parte contrária7.

No entanto, todas as correntes se fiavam à interpretação do artigo 12 daquela lei, sob o aspecto gramatical ou literal, sem aprofundamento na análise da diversidade da natureza jurídica das despesas processuais e dos honorários advocatícios, estes, inclusive, com escopo e proteção bem inferiores há época8, porquanto não gozavam da característica de direito autônomo e alimentar que gozam atualmente9, mas, ao revés, representavam uma punição ao litigante temerário nas hipóteses previstas em lei.

A crítica à primeira corrente seria no sentido de que, se aplicada, contrariaria a interpretação “razoável” do referido artigo 12 e que violaria a isonomia e o acesso à justiça, porquanto “mesmo sendo a condenação sucumbencial imposta apenas ao final do processo, o receio da derrota e, consequentemente, de ser obrigado a pagar as despesas processuais e honorários advocatícios, poderia inibir o hipossuficiente econômico de ingressar em juízo”.

A crítica à segunda corrente se dava em razão de que sua interpretação ao artigo 12 seria “desarrazoada” e caracterizaria limitação “ilegítima ao direito à gratuidade de Justiça”10, porquanto o fato de a norma não mencionar expressamente o vocábulo “honorários” se daria exclusivamente em razão de estes possuírem, há época, natureza excepcional razão pela qual “como via de regra não havia condenação ao pagamento dos honorários advocatícios, não era necessária a edição de norma que dispensasse o hipossuficiente econômico vencido do pagamento dessa despesa” Destarte, no entendimento da crítica, “por isso, ao não incluir expressamente o termo “honorários” na redação original do art. 12 da Lei nº 1.060/1950, não pretendia o legislador excluir os honorários sucumbenciais do âmbito de incidência da gratuidade de justiça; ele não incluiu, simplesmente, porque não era necessário incluir11.

Nesse cenário, entendeu-se que a “melhor interpretação” seria a estabelecida pela terceira corrente, porquanto “somente assim poderia o hipossuficiente econômico valer-se plenamente do processo para defender seus direitos, sem ser inibido de ingressar em juízo ou dissuadido a aceitar acordos desvantajosos em virtude do medo da ruína financeira no caso de derrota12.

No entanto, como se denota, em nenhuma das correntes ou de suas críticas restava aprofundada a discussão sobre a natureza jurídica diversa dos honorários advocatícios em relação às custas processuais, nem mesmo na segunda corrente que pregava essa diferenciação, porquanto naquela a divergência se daria pelo simples fato de a norma (Art. 12 da Lei n° 1.060/1950) não prever o vocábulo “honorários” em sua redação, sendo uma discussão estritamente gramatical e literal.

Pois bem. Desde a referida discussão – anos 1950 –, o Estado Brasileiro já teve duas novas Constituições (1967 e 1988) e, ainda, dois novos Códigos de Processo Civil (1973 e 2016), sendo, que, no período, a própria natureza jurídica dos honorários advocatícios foi radicalmente alterada.

Na década de 1950, com o Código de Processo Civil de 1939, os honorários sucumbenciais eram vistos como uma forma de ressarcir o litigante vencedor, ao menos em parte, pelos gastos despendidos com a contratação de advogado para a defesa de seus direitos.

Esse entendimento, contudo, apresentou gradativa evolução e, atualmente, os honorários de sucumbência constituem receita própria do advogado (art. 85, § 14, do CPC/2015 c/c o art. 23 da Lei nº 8.906/1994), podendo ser executados de maneira autônoma pelo próprio vencedor ou por seu advogado não constituindo natureza acessória ao processo (Súmula Vinculante 4713, REx 564.132/STF e REsp 1347736/STJ),

Deste modo, sob essa nova ótica legal e constitucional é que a isenção/imunidade quanto aos honorários de sucumbência deve ser analisada em um resgate da ideia exposta pela corrente monolimitativa, mas agora de forma aprofundada diante da evolução legal e jurisprudencial do conceito e da natureza jurídica da referida verba.

Diferenciações legais. Análise de sua proporcionalidade e razoabilidade.

O Código de Processo Civil estipula:

Art. 85.

........................................................................................................................................ § 14: Os honorários constituem direito do advogado e têm natureza alimentar, com os mesmos privilégios dos créditos oriundos da legislação do trabalho, sendo vedada a compensação em caso de sucumbência parcial.

Art. 98. A pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça, na forma da lei.

§ 1º A gratuidade da justiça compreende:

........................................................................................................................................ VI - os honorários do advogado e do perito e a remuneração do intérprete ou do tradutor nomeado para apresentação de versão em português de documento redigido em língua estrangeira;

........................................................................................................................................ § 2º A concessão de gratuidade não afasta a responsabilidade do beneficiário pelas despesas processuais e pelos honorários advocatícios decorrentes de sua sucumbência. § 3º Vencido o beneficiário, as obrigações decorrentes de sua sucumbência ficarão sob condição suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser executadas se, nos 5 (cinco) anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que as certificou, o credor demonstrar que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão de gratuidade, extinguindo-se, passado esse prazo, tais obrigações do beneficiário.

§ 4º A concessão de gratuidade não afasta o dever de o beneficiário pagar, ao final, as multas processuais que lhe sejam impostas.

Art. 95. Cada parte adiantará a remuneração do assistente técnico que houver indicado, sendo a do perito adiantada pela parte que houver requerido a perícia ou rateada quando a perícia for determinada de ofício ou requerida por ambas as partes.

........................................................................................................................................ § 3º Quando o pagamento da perícia for de responsabilidade de beneficiário de gratuidade da justiça, ela poderá ser:

I - custeada com recursos alocados no orçamento do ente público e realizada por servidor do Poder Judiciário ou por órgão público conveniado;

II - paga com recursos alocados no orçamento da União, do Estado ou do Distrito Federal, no caso de ser realizada por particular, hipótese em que o valor será fixado conforme tabela do tribunal respectivo ou, em caso de sua omissão, do Conselho Nacional de Justiça. (Grifos acrescentados)

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Conforme se denota, há três situações com soluções diversas no que concerne ao escopo deste artigo.

Situação n° 01: Beneficiário da gratuidade de Justiça e dispêndio com o custo de honorários periciais. Solução: Pagamento pelo Estado com base em tabela estipulada pelo Poder Judiciário.

Situação n° 02: Beneficiário da gratuidade de Justiça e condenação ao pagamento de multas processuais. Solução: Exigibilidade incondicionada da verba a partir do trânsito em julgado.

Situação n° 03: Beneficiário da gratuidade de Justiça e condenação ao pagamento de honorários advocatícios. Solução: Suspensão da exigibilidade por cinco anos, salvo mudança na condição financeira do devedor não obstante sua natureza alimentar e equiparada à de crédito trabalhista.

Analisemos com calma as situações na profundidade de sua natureza para, após, passarmos à análise acerca de sua razoabilidade e proporcionalidade.

A primeira situação estipula ser um ônus do Estado a responsabilidade de arcar com os honorários periciais, porquanto este “tem o dever constitucional de prestar assistência judiciária aos hipossuficientes”14

Referidos honorários – periciais – possuem natureza jurídica de verbas alimentares, porquanto visam custear o sustento dos profissionais e são equivalentes a salários. Sobre o tema destaca-se o acórdão relatado pelo Ministro Carlos Velloso no âmbito do Supremo Tribunal Federal (RE 146.318/SP), no qual se consignou que: “Os honorários advocatícios e periciais remuneram serviços prestados por profissionais liberais e são, por isso, equivalentes a salários. Deles depende o profissional para alimentar-se e aos seus, porque têm a mesma finalidade destes. Ora, se vencimentos e salários têm natureza alimentar, o mesmo deve ser dito em relação aos honorários.”.

Nesse sentido, pode-se sintetizar que os honorários periciais são verbas alimentares que devem ser custeadas pelo Estado, quando a sucumbência recai sobre parte hipossuficiente, porquanto a realização de perícia se vincula indissociavelmente ao dever de prestação de assistência judiciária previsto na Constituição Federal.

De mais a mais, como forma de parametrizar a contraprestação estatal, inclusive para fins de planejamento financeiro, o Código de Processo Civil estipula que o valor a ser pago pelo Estado, nestes casos, se limita ao valor fixado “conforme tabela do tribunal respectivo ou, em caso de sua omissão, do Conselho Nacional de Justiça”. (Art. 95, §3º, II, CPC).

Quanto à segunda situação, envolvendo as multas processuais, verifica-se que essas constituem sanções pecuniárias impostas pelo juiz em razão do descumprimento de deveres processuais15,

E, segundo a leitura do Código de Processo Civil, a gratuidade de justiça não abrange as multas, sejam de caráter punitivo ou coercitivo (art. 98, § 4º, do CPC/2015).

Referida situação, segundo a doutrina, se dá em razão de que “o reconhecimento da hipossuficiência da parte não lhe garante imunidade para a prática de toda e qualquer conduta processual ilegal, procrastinatória ou abusiva16 e que “a pobreza não justifica a concessão de umbill de indenidade quanto a comportamentos antijurídicos17 ou ainda, em razão de que “a gratuidade da justiça não pode servir como escudo para a procrastinação e a litigância de má-fé. Daí a razão pela qual o beneficiário da justiça gratuita deve ser executado normalmente em relação a elas18.

Nesse viés, pode-se, novamente, sintetizar a situação da seguinte forma: as multas processuais são verbas sancionatórias de condutas processuais violadoras da boa-fé e, assim, superariam o benefício da gratuidade de justiça, uma vez que no conflito entre uma atitude antijurídica e a hipossuficiência, aquela prevaleceria como sobressalente. Em outros termos, o acesso à Justiça não justifica o acesso abusivo à Justiça, devendo-se penalizar aquele que se utiliza de forma ilegal do Judiciário.

Ademais, as multas processuais, conforme legislação e ampla doutrina19, não possuem causa suspensiva de exigibilidade após o trânsito em julgado.

Por fim, quanto à situação n° 03, como visto no tópico anterior, sua justificativa ontológica e histórica se deu em razão de facilitar com que o hipossuficiente ingressasse em juízo sem ser inibido ou dissuadido em virtude do medo da ruína financeira no caso de derrota judicial. No entanto, referida justificativa, embora defensável em 1950, haja vista a natureza praticamente punitiva dos honorários sucumbenciais há época, não encontra guarida no atual ordenamento constitucional por ausência de razoabilidade e proporcionalidade.

Explica-se: a verba advocatícia de sucumbência representa natureza alimentar (Súmula Vinculante n° 47), isto é, destina-se à manutenção da subsistência do advogado – tal como a verba atinente aos honorários periciais vistos alhures –, devida pela realização de um trabalho exitoso, em sentido literal, (defesa de tese e vitória em processo judicial), contudo, diferentemente da verba pericial, se sujeita à condição suspensiva de exigibilidade, qual seja, a hipossuficiência do devedor, até sua prescrição, no prazo de 05 (cinco) anos.

Nota-se, portanto, em cotejo, que o tratamento de verbas alimentares, autônomas, vinculadas a um trabalho específico e decorrentes – mas não acessórias – de uma atuação judicial possuem soluções completamente diferentes quando o devedor é hipossuficiente, haja vista que enquanto os honorários periciais são plenamente exigíveis do Estado (ainda que limitados aos valores existentes em tabelas judiciais), os honorários advocatícios não o são, havendo apenas uma expectativa (remotíssima) de recebimento da contraprestação alimentar do serviço realizado.

Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo:

Para agravar, as multas processuais, verbas de natureza sancionatória e punitiva (que não se prestam à manutenção e sustento de ninguém, nem mesmo do Estado), gozam de tratamento ainda mais favorecido, porquanto podem ser cobradas da parte devedora, ainda que hipossuficiente.

E como se essa situação, por si só, não bastasse para demonstrar a contradição e ofensa à razoabilidade e proporcionalidade das soluções diferentes adotadas, convém destacar que, caso o necessitado econômico venha a ser vencedor na demanda, a parte contrária deverá ser condenada normalmente ao pagamento das despesas processuais e honorários advocatícios, seguindo à risca a regra dos artigos 82, § 2º e 85 do CPC/2015.

Isto é, quando o vencedor é hipossuficiente, aquele que o patrocina, em regra a Defensoria Pública e, excepcionalmente, o advogado privado, poderão cobrar do vencido, normalmente, as verbas de sucumbência20. Em outros termos, o risco sucumbencial só existe para um dos lados da relação jurídica o que, de forma alguma, se caracteriza como isonomia.

Ademais, em regra, a parte que litiga com outra economicamente hipossuficiente por vezes sequer tem noção de que aquela pedirá e receberá o beneplácito da gratuidade de justiça, e, independentemente da complexidade da demanda ou do tempo de sua duração, seu causídico saberá que, em regra, não receberá honorários advocatícios sucumbenciais e que o risco do litígio será exclusivamente do seu cliente, situação diversa daquela atinente ao Defensor Público ou ao advogado pro bono que, voluntariamente, aceitam defender o hipossuficiente em Juízo, mas que não abrem mão dos honorários sucumbenciais, na forma da lei, caso sejam vencedores.

Por fim, quanto ao ponto, convém destacar que o Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do RE 184841, em 1995, em caso no âmbito penal, aplicou o artigo 12 da Lei n° 1.060/50 ao fundamento de que “a solução é similar à do problema análogo da pena de multa que se aplica, independente da situação econômica do réu, mas, não satisfeita, só se converte em detenção se o condenado é solvente”21, isto é, embora a ementa do julgado tenha destacado que o referido artigo não seria incompatível com a Constituição Federal, não houve aprofundamento da questão, sobretudo por ter se dado antes da conclusão e da evolução sobre o entendimento atinente à natureza dos honorários advocatícios sucumbenciais.

Do valor social do trabalho. Da impossibilidade de imposição de trabalho gratuito a particular, salvo no âmbito do direito penal e como pena restritiva de direitos, respeitado o devido processo legal.

Dispõe a Constituição Federal que a República Federativa do Brasil tem como um de seus fundamentos o valor social do trabalho (Art. 1º, IV), e, o artigo 170, ao estabelecer a opção do constituinte pela economia de mercado, expressamente destacou que a ordem econômica deve valorizar o “trabalho humano” com o fim de “assegurar a todos existência digna” de tal sorte que se pode afirmar que a dignidade da pessoa humana é também o fundamento e o fim da ordem econômica na Constituição.

Isto é, o constituinte prestigiou uma economia de mercado, de cunho capitalista, priorizando o labor humano como valor constitucional supremo em relação aos demais valores integrantes da economia de mercado22.

Em outros termos, e que sequer necessitam maior aprofundamento, tem-se que a economia brasileira se vincula ao capitalismo, no qual, por essência, o valor do trabalho e da mão de obra precisa receber a contraprestação devida, sendo um direito humano a proibição da imposição de trabalho gratuito ou perpétuo23.

Referida regra, contudo, é mitigada no âmbito penal, na esfera específica de uma pena restritiva de direitos, conforme dispõe o artigo 46 do Código Penal com base no Artigo 5º, XLVI, da Constituição Federal que dispõe que “a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: (...) d) prestação social alternativa”.

Confira-se a disposição do Código Penal que regulamenta a referida alínea “d” do Artigo 5º, XLVI, da Constituição Federal:

Art. 46. A prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas é aplicável às condenações superiores a seis meses de privação da liberdade.

..........................................................................................................................§ 1o A prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas consiste na atribuição de tarefas gratuitas ao condenado”.

Convém recordar que as penas substitutivas à prisão, na modalidade de prestação de serviços à comunidade, foram criadas pelo Código Penal soviético de 1926 (art. 20, d e 30), isto é, após a Revolução Russa de 1917 e, portanto, de profundo substrato ontológico socialista.

Não obstante, referida criação restou reproduzida nos ordenamentos penais do leste europeu – Código Penal búlgaro (art. 24), Código Penal polonês (art. 33) –, sendo, posteriormente, universalizadas ao mundo capitalista– v.g. Bélgica (1963), França (1970), Alemanha (1975), Itália (1975), Portugal (1977) e Espanha (1980).

Ademais, as Regras Mínimas para o Tratamento dos Presos, documento oficial da ONU aprovado no XII Congresso Penitenciário Internacional realizado em Genebra, de 22 de agosto a 3 de setembro de 1955, ressalvam a possibilidade do trabalho exercido às entidades e órgãos públicos, que poderão não retribuir financeiramente24.

Nesse cenário, a prestação de serviços à comunidade constitui sanção jurídica revestida de caráter penal. Trata-se de medida alternativa ou substitutiva da pena privativa de liberdade. Submete-se, em consequência, ao regime jurídico-constitucional das penas e sofre todas as limitações impostas pelos princípios tutelares da liberdade individual25.

Assim, o Supremo Tribunal Federal tem reconhecido, por exemplo, que a determinação de imputação diversa e fora do âmbito penal não possui guarida Constitucional. Confira-se:

A exigência judicial de doação de sangue não se ajusta aos parâmetros conceituais, fixados pelo ordenamento positivo, pertinentes à própria inteligência da expressão legal 'prestação de serviços à comunidade', cujo sentido, claro e inequívoco, veicula a ideia de realização, pelo próprio condenado, de encargos de caráter exclusivamente laboral. Tratando-se de exigência conflitante com o modelo jurídico-legal peculiar ao sistema de penas alternativas ou substitutivas, não há como prestigiá-la e nem mantê-la26.

Ademais, mesmo ao preso, que não recebeu uma pena substitutiva à prisão, é assegurado que seu labor será remunerado “mediante prévia tabela, não podendo ser inferior a 3/4 (três quartos) do salário mínimo” conforme o artigo 29 da Lei de Execuções Penais.

Nesse cenário, salvo no âmbito penal, e na estrita situação da pena de prestação de serviços à comunidade, o Estado não pode impor um trabalho gratuito aos particulares, mormente em razão do direito humano, positivado no artigo 170 da Constituição Federal, de valorização do trabalho humano.

No caso, como exposto no tópico anterior, tem-se que os honorários sucumbenciais representam verba alimentar, autônoma, que visa alicerçar a manutenção e o sustento do advogado. Contudo, este não sabe, em regra, se e quando a parte adversa será hipossuficiente, sendo surpreendido no mais das vezes com a informação de que seu trabalho, caso exitoso, não será remunerado – o que, de plano, já o diferencia do advogado pro bono, porquanto este, como visto, receberá normalmente as verbas sucumbenciais, caso vencedor – tendo o Estado, por norma infraconstitucional, CPC, aplicado uma imunidade heterônoma às suas verbas, fazendo, “bonito com chapéu alheio”, como no ditado popular.

Nesse viés, o próprio precedente do Supremo Tribunal Federal que analisou superficialmente a questão (RE 184841) faz analogia à multa penal, contudo, convém destacar que mesmo em relação a essa, a hipossuficiência não elide o pagamento, o que faz a Lei de Execução Penal quanto ao tema é prever que o condenado poderá requerer o seu parcelamento em prestações mensais, iguais e sucessivas, cuja quantidade será fixada pelo Juiz, desde que as circunstâncias justifiquem (art. 169, § 1º da LEP).

Ademais, o Supremo Tribunal Federal, inclusive, destacou que “a gratuidade de justiça visa facilitar o amplo acesso ao Poder Judiciário, e não pode o devedor de alimentos se eximir de seu dever de prestá-los por ter sido beneficiado por esse direito27 justamente em razão da característica de sustento que a verba alimentícia goza.

Conclusão

Conforme exposto a natureza jurídica dos honorários advocatícios sucumbenciais sofreu enorme evolução no ordenamento pátrio, passando de uma sanção por lide temerária (CPC 39) para um direito autônomo e alimentar dos causídicos.

Nesse cenário, a manutenção da interpretação infraconstitucional de que a gratuidade de Justiça seria uma condição impeditiva ao recebimento dos honorários advocatícios sucumbenciais representa ofensa ao artigo 170 da Constituição Federal que determina a valorização do trabalho humano como princípio basilar da Ordem Econômica, razão pela qual a Carta de Outubro só legitima a imposição de trabalho gratuito na hipótese penal, pena social alternativa, atinente à prestação de serviços à comunidade.

Lato senso e mutatis mutandis, o trabalho não remunerado do advogado vencedor da causa por força de norma infraconstitucional se afiguraria, também, uma prestação de serviço à comunidade, contudo sem a voluntariedade que ocorre com os Defensores Públicos e advogados pro bono e sem prévia antevisão da situação uma vez que a hipossuficiência da parte contrária não é antecipável em regra, transformando-o em um advogado pro bono sem o bono.

Assim, entende-se como inconstitucional que o Estado, por meio de norma infraconstitucional, estabeleça um trabalho gratuito, diante da impossibilidade de imposição de trabalho gratuito, da necessidade de valorização do trabalho humano, do valor social do trabalho e da violação à isonomia (uma vez que o advogado do hipossuficiente vencedor receberá normalmente suas verbas sucumbenciais), da razoabilidade (haja vista que os honorários periciais são remunerados pelo Estado) e da proporcionalidade (porquanto as verbas sancionatórias – multas – que não visam resguardar o sustento direto de ninguém são plenamente exigíveis dos vencidos hipossuficientes), interpretação que coloca a necessidade de punição acima da dignidade humana e do sustento alimentar do advogado vencedor.

Diante de todo o exposto, verifica-se que a questão é polêmica e encontra algumas lacunas sendo necessário o aprofundamento acadêmico para o encontro de fórmulas e alternativas aptas a solucionar a questão. Assim, apresentam-se algumas soluções para reflexão, sem qualquer pretensão de esgotar o tema:

1) a atribuição de que o Estado remunere o advogado vencedor, semelhantemente ao que ocorre com os honorários periciais, ainda que limitados à tabela judicial do CNJ ou da Ordem dos Advogados do Brasil;

2) a estipulação de que em demanda na qual uma das partes seja hipossuficiente nenhuma delas receberá honorários sucumbenciais, o que privilegia a isonomia e a paridade de armas, além da previsibilidade e segurança jurídica; ou

3) a interpretação conforme à Constituição do Código de Processo Civil para que, à semelhança da multa penal, o Juiz possa deferir que o hipossuficiente parcele em várias prestações a verba honorária sucumbencial devida, sendo essa plenamente exigível;

Com essas soluções para reflexão e o debate posto, espera-se o avanço no debate da questão no sentido de que seja construída uma solução para a situação, equilibrando-se a garantia da Justiça gratuita com o direito à remuneração pelo trabalho, sobretudo quando a verba possui natureza alimentar como no caso dos honorários sucumbenciais.

Referências

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BRASIL. STF. Pleno – RE nº 249.003 ED/RS – Relator Min. Edson Fachin, decisão: 09-12-2015 / STF – Pleno – RE nº 249.277 ED/RS – Relator Min. Edson Fachin, decisão: 09-12-2015 / STF – Pleno – RE nº 284.729 AgR/ MG – Relator Min. Edson Fachin, decisão: 09-12-2015. RE 184841, Relator(a): Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, julgado em 21/03/1995, STF. HC 68.309, Rei. Min. Celso de Mel lo, DJ de 8-3-1991. STF. HC 100.104, rel. min. Ellen Gracie, j. 18-8-2009, 2ª T, DJE de 11-9-2009.

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NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

Sobre o autor
Vinicius de Moura Xavier

Ex-Oficial de Gabinete da 2ª Vara Cível de Brasília-DF do TJDFT, Ex-Procurador da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária – Infraero, Ex-Analista Judiciário do Conselho Nacional de Justiça. Advogado da Agência de Desenvolvimento do Distrito Federal – TERRACAP na área de litígios estratégicos. Sócio da Vinicius Xavier Advocacia e Consultoria. Mestre em Direito pelo Centro Universitário de Brasília e Pós-graduado em Direito Civil e Processo Civil pelo Instituto dos Magistrados do Distrito Federal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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