INTRODUÇÃO
O presente artigo, por meio de pesquisa documental, análise legislativa e revisão de artigos acadêmicos, aborda um tópico complexo do Direito Previdenciário Brasileiro: a Aposentadoria Especial e as mudanças introduzidas pela Reforma da Previdência de 2019 (Emenda Constitucional nº 103/19). Trata-se de um estudo exploratório com foco na análise comparativa das regras de transição antes e após a referida emenda, avaliando possíveis impactos sobre os direitos dos segurados do Regime Geral de Previdência Social (RGPS).
Com o intuito de desenvolver uma análise crítica, este trabalho apresenta, inicialmente, conceitos e princípios da seguridade social e da previdência social no Brasil, com foco nos benefícios. Em seguida, são apresentadas e analisadas as regras de transição para as aposentadorias do RGPS, abarcando as regras aplicáveis após a EC 103/2019 para a aposentadoria por idade urbana e a aposentadoria por tempo de contribuição.
Espera-se que, ao final deste estudo, o leitor compreenda os principais pontos da análise proposta, ciente de que a temática, dada sua construção histórica e multidisciplinar no cenário brasileiro, não se esgota aqui.
1. SOBRE A PREVIDÊNCIA SOCIAL E APOSENTADORIAS: REFLEXÕES E INFERÊNCIAS HISTÓRICAS
Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, instaurou-se no país um sistema de seguridade social, entendido como um conjunto integrado de ações dos Poderes Públicos e da sociedade, destinado a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social (Art. 194, CF/88). A previdência social, como parte desse sistema, visa garantir direitos aos trabalhadores urbanos e rurais, como o direito à aposentadoria (Art. 7º, XXIV, CF/88), proporcionando meios indispensáveis de manutenção em situações como idade avançada ou longo tempo de serviço (MARTINS, 2013).
O artigo 194 da Constituição define a Seguridade Social como um sistema abrangente, cuja organização e gestão são descentralizadas, contando com a participação de trabalhadores, empregadores, aposentados e governo (gestão quadripartite). É dever do Estado garantir, nos termos da lei, a efetivação e a organização da seguridade com base nos seguintes princípios constitucionais (Art. 194, parágrafo único, I a VII, CF/88):
I - universalidade da cobertura e do atendimento;
II - uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais;
III - seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços;
IV - irredutibilidade do valor dos benefícios;
V - equidade na forma de participação no custeio;
VI - diversidade da base de financiamento, identificando-se, em rubricas contábeis específicas para cada área, as receitas e as despesas vinculadas a ações de saúde, previdência e assistência social, preservado o caráter contributivo da previdência social;
VII - caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.
A Previdência Social, especificamente, rege-se por princípios e objetivos detalhados na Lei nº 8.213/91 (Lei de Benefícios da Previdência Social), em seu artigo 2º. Seu financiamento, como parte da Seguridade Social, provém de diversas fontes, incluindo contribuições sociais e recursos orçamentários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, conforme disciplina o artigo 195 da Constituição Federal.
Analisando brevemente os princípios da Seguridade Social:
A universalidade busca abranger todos os residentes no Brasil (cobertura) e atender a todas as contingências sociais previstas (atendimento). Na Previdência Social (de caráter contributivo), a universalidade se manifesta na inclusão progressiva dos trabalhadores e seus dependentes.
A uniformidade e equivalência visam tratar de forma isonômica as populações urbanas e rurais quanto aos benefícios e serviços, embora as prestações não sejam necessariamente idênticas em valor ou forma (equivalência). O segurado especial rural, por exemplo, possui regras de contribuição diferenciadas (via Funrural/produção), resultando, via de regra, em benefício no valor de um salário mínimo. Para prestações equivalentes às urbanas, o ruralista deve contribuir individualmente.
A seletividade e distributividade orientam a escolha das contingências a serem cobertas (seletividade) e a distribuição de renda, priorizando os mais necessitados (distributividade), conforme as possibilidades financeiras do sistema.
A irredutibilidade do valor dos benefícios visa garantir a manutenção do poder aquisitivo, impedindo a redução nominal do valor, salvo exceções legais (como erro de cálculo inicial).
A equidade na forma de participação no custeio busca distribuir o ônus do financiamento de forma justa, considerando a capacidade contributiva de cada um.
A diversidade da base de financiamento assegura a sustentabilidade do sistema por meio de múltiplas fontes de receita.
O caráter democrático e descentralizado da administração (gestão quadripartite) promove a participação da sociedade na gestão do sistema.
A organização da Seguridade Social, incluindo seu Plano de Custeio (Lei nº 8.212/91) e Plano de Benefícios (Lei nº 8.213/91 - LOPS), visa assegurar os direitos relativos à saúde, previdência e assistência social.
Historicamente, antes da Lei nº 8.213/91, a antiga Lei Orgânica da Previdência Social (Lei nº 3.807/1960) exigia um mínimo de 60 contribuições mensais para a concessão de aposentadorias. A lei de 1991 representou um impacto significativo ao aumentar o período de carência para 180 contribuições mensais (Art. 25, II, Lei 8.213/91) para a maioria das aposentadorias (idade, tempo de serviço/contribuição). Essa nova exigência aplicou-se aos novos filiados após 24/07/1991. Para os segurados já filiados antes dessa data, criou-se uma regra de transição para a carência, estabelecida no artigo 142 da Lei nº 8.213/91, com uma tabela progressiva de meses de contribuição exigidos conforme o ano de implementação das condições para o benefício, culminando em 180 meses em 2011:
Ano de implementação das condições |
Meses de contribuição exigidos |
1991 |
60 meses |
1992 |
60 meses |
1993 |
66 meses |
1994 |
72 meses |
1995 |
78 meses |
1996 |
90 meses |
1997 |
96 meses |
1998 |
102 meses |
1999 |
108 meses |
2000 |
114 meses |
2001 |
120 meses |
2002 |
126 meses |
2003 |
132 meses |
2004 |
138 meses |
2005 |
144 meses |
2006 |
150 meses |
2007 |
156 meses |
2008 |
162 meses |
2009 |
168 meses |
2010 |
174 meses |
2011 |
180 meses |
Fonte: Adaptado de BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991.
Importante notar que, para a aposentadoria por idade urbana, a jurisprudência e a própria administração previdenciária entendem que a tabela progressiva de carência do artigo 142 deve ser aplicada em função do ano em que o segurado completa a idade mínima exigida, mesmo que a carência só seja cumprida posteriormente.
A seguir, abordam-se as regras específicas da aposentadoria por idade urbana e por tempo de contribuição antes da EC 103/19.
1.1. Aposentadoria por Idade Urbana (Antes da EC 103/19)
A aposentadoria por idade urbana visava garantir a manutenção do segurado (e de sua família) que, em idade avançada, não conseguia mais trabalhar. Conforme o artigo 48 da Lei nº 8.213/91 (na redação anterior à EC 103/19), era concedida aos 65 anos de idade para homens e 60 anos para mulheres. A carência exigida era de 180 contribuições mensais (aplicando-se a regra de transição do Art. 142 para os filiados até 24/07/1991).
Havia debate doutrinário sobre a necessidade de preenchimento simultâneo dos requisitos (idade, carência e qualidade de segurado). Ibrahim (2019), por exemplo, defendia a simultaneidade. Contudo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmou entendimento (inclusive sumulado, Súmula 44) de que a perda da qualidade de segurado não impedia a concessão do benefício, desde que os requisitos de idade e carência estivessem cumpridos.
1.2. Aposentadoria por Tempo de Contribuição (Antes da EC 103/19)
Dez anos após a Constituição de 1988, a Emenda Constitucional nº 20/1998 promoveu a primeira grande reforma previdenciária, alterando significativamente esta modalidade de aposentadoria. A EC 20/98 manteve o tempo mínimo de contribuição (35 anos para homens e 30 anos para mulheres, conforme Art. 201, § 7º, I, CF/88 na redação da época), mas extinguiu a contagem de tempo fictício e instituiu regras de transição com pedágio e idade mínima para a aposentadoria proporcional. A nomenclatura também foi alterada de "aposentadoria por tempo de serviço" para "aposentadoria por tempo de contribuição", reforçando o caráter contributivo.
2. REGRAS DE TRANSIÇÃO PARA AS APOSENTADORIAS DO REGIME GERAL DA PREVIDÊNCIA (PÓS EC 103/2019)
A Emenda Constitucional nº 103/2019 extinguiu a aposentadoria por tempo de contribuição como regra permanente para novos filiados, mas estabeleceu diversas regras de transição para quem já estava no sistema. Analisaremos as principais:
2.1. Regra de Transição por Pontos (Art. 15, EC 103/19)
Permite a aposentadoria quando o segurado atinge um tempo mínimo de contribuição (30 anos mulher, 35 anos homem) e a soma da idade com o tempo de contribuição alcança uma pontuação mínima. Essa pontuação iniciou em 86 pontos (mulher) e 96 pontos (homem) em 2019 e aumenta 1 ponto a cada ano (a partir de 1º de janeiro de 2020), até atingir o limite de 100 pontos (mulher, em 2033) e 105 pontos (homem, em 2028).
Art. 15. Ao segurado filiado ao Regime Geral de Previdência Social até a data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional, fica assegurado o direito à aposentadoria quando forem preenchidos, cumulativamente, os seguintes requisitos:
I - 30 (trinta) anos de contribuição, se mulher, e 35 (trinta e cinco) anos de contribuição, se homem; e
II - somatório da idade e do tempo de contribuição, incluídas as frações, equivalente a 86 (oitenta e seis) pontos, se mulher, e 96 (noventa e seis) pontos, se homem, observado o disposto nos §§ 1º e 2º.
§ 1º A partir de 1º de janeiro de 2020, a pontuação a que se refere o inciso II do caput será acrescida a cada ano de 1 (um) ponto, até atingir o limite de 100 (cem) pontos, se mulher, e de 105 (cento e cinco) pontos, se homem.
§ 2º A idade e o tempo de contribuição serão apurados em dias para o cálculo do somatório de pontos a que se referem o inciso II do caput e o § 1º.
2.2. Regra de Transição por Idade Mínima Progressiva (Art. 16, EC 103/19)
Exige o tempo mínimo de contribuição (30 anos mulher, 35 anos homem) e uma idade mínima que aumenta progressivamente 6 meses por ano, a partir de 2019 (iniciando em 56 anos para mulher e 61 anos para homem), até atingir 62 anos (mulher, em 2031) e 65 anos (homem, em 2027).
2.3. Regra de Transição com Pedágio de 50% (Art. 17, EC 103/19)
Destinada a quem estava próximo de se aposentar por tempo de contribuição na data da emenda (faltando até 2 anos). Exige o tempo mínimo (30/35 anos) e o cumprimento de um pedágio de 50% sobre o tempo que faltava para atingir esse mínimo em 13/11/2019. Não há requisito de idade mínima.
Art. 17. Ao segurado filiado ao Regime Geral de Previdência Social até a data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional e que na referida data contar com mais de 28 (vinte e oito) anos de contribuição, se mulher, e 33 (trinta e três) anos de contribuição, se homem, fica assegurado o direito à aposentadoria quando preencher, cumulativamente, os seguintes requisitos:
I - 30 (trinta) anos de contribuição, se mulher, e 35 (trinta e cinco) anos de contribuição, se homem; e
II - cumprimento de período adicional correspondente a 50% (cinquenta por cento) do tempo que, na data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional, faltaria para atingir 30 (trinta) anos de contribuição, se mulher, e 35 (trinta e cinco) anos de contribuição, se homem.
Esta é considerada a regra mais benéfica para os segurados que estavam muito próximos da aposentadoria por tempo de contribuição.
2.4. Regra de Transição para Aposentadoria por Idade (Art. 18, EC 103/19)
Aplica-se à aposentadoria por idade para quem já estava filiado. Mantém a idade mínima de 65 anos para homens e 15 anos de contribuição. Para mulheres, a idade mínima iniciou em 60 anos em 2019 e aumenta 6 meses por ano (a partir de 1º de janeiro de 2020), até atingir 62 anos em 2023, mantendo-se a exigência de 15 anos de contribuição.
Art. 18. O segurado de que trata o inciso I do § 7º do art. 201 da Constituição Federal filiado ao Regime Geral de Previdência Social até a data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional poderá aposentar-se quando preencher, cumulativamente, os seguintes requisitos:
I - 60 (sessenta) anos de idade, se mulher, e 65 (sessenta e cinco) anos de idade, se homem; e
II - 15 (quinze) anos de contribuição, para ambos os sexos.
§ 1º A partir de 1º de janeiro de 2020, a idade de 60 (sessenta) anos da mulher, prevista no inciso I do caput, será acrescida em 6 (seis) meses a cada ano, até atingir 62 (sessenta e dois) anos de idade.
2.5. Regra Permanente para Novos Filiados (Art. 19, EC 103/19)
Para quem se filiou ao RGPS após 13/11/2019, a aposentadoria (agora chamada apenas de aposentadoria programada) exige: 62 anos de idade e 15 anos de contribuição (mulher); 65 anos de idade e 20 anos de contribuição (homem).
Art. 19. [...] o segurado filiado ao Regime Geral de Previdência Social após a data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional será aposentado aos 62 (sessenta e dois) anos de idade, se mulher, 65 (sessenta e cinco) anos de idade, se homem, com 15 (quinze) anos de tempo de contribuição, se mulher, e 20 (vinte) anos de tempo de contribuição, se homem.
2.6. Regra de Transição com Pedágio de 100% (Art. 20, EC 103/19)
Exige idade mínima (57 anos mulher, 60 anos homem), tempo mínimo de contribuição (30/35 anos) e o cumprimento de um pedágio de 100% sobre o tempo que faltava para atingir o mínimo de contribuição (30/35 anos) na data da emenda.
Art. 20. O segurado ou o servidor público federal que se tenha filiado ao Regime Geral de Previdência Social ou ingressado no serviço público em cargo efetivo até a data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional poderá aposentar-se voluntariamente quando preencher, cumulativamente, os seguintes requisitos:
I - 57 (cinquenta e sete) anos de idade, se mulher, e 60 (sessenta) anos de idade, se homem;
II - 30 (trinta) anos de contribuição, se mulher, e 35 (trinta e cinco) anos de contribuição, se homem;
[...]
IV - período adicional de contribuição correspondente ao tempo que, na data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional, faltaria para atingir o tempo mínimo de contribuição referido no inciso II.
Esta regra pode ser mais prejudicial, pois exige o cumprimento integral do tempo faltante como pedágio, além da idade mínima.
2.7. Aposentadoria da Pessoa com Deficiência (Art. 22, EC 103/19)
A EC 103/19 determinou que, até a edição de nova lei, a aposentadoria da pessoa com deficiência no RGPS continua regida pela Lei Complementar nº 142/2013. Esta lei prevê requisitos diferenciados de tempo de contribuição (conforme o grau de deficiência: grave, moderada ou leve) ou de idade (60 homem, 55 mulher, com 15 anos de contribuição e deficiência comprovada por igual período).
Art. 22. Até que lei discipline o § 4º-A do art. 40 e o inciso I do § 1º do art. 201 da Constituição Federal, a aposentadoria da pessoa com deficiência segurada do Regime Geral de Previdência Social [...] será concedida na forma da Lei Complementar nº 142, de 8 de maio de 2013, inclusive quanto aos critérios de cálculo dos benefícios.
LC 142/2013, Art. 3º:
I - aos 25 (vinte e cinco) anos de tempo de contribuição, se homem, e 20 (vinte) anos, se mulher, no caso de segurado com deficiência grave;
II - aos 29 (vinte e nove) anos de tempo de contribuição, se homem, e 24 (vinte e quatro) anos, se mulher, no caso de segurado com deficiência moderada;
III - aos 33 (trinta e três) anos de tempo de contribuição, se homem, e 28 (vinte e oito) anos, se mulher, no caso de segurado com deficiência leve; ou
IV - aos 60 (sessenta) anos de idade, se homem, e 55 (cinquenta e cinco) anos de idade, se mulher, independentemente do grau de deficiência, desde que cumprido tempo mínimo de contribuição de 15 (quinze) anos e comprovada a existência de deficiência durante igual período.
Importante ressaltar que, para o segurado especial (rural) com deficiência, aplica-se a idade da aposentadoria por idade rural (60 homem, 55 mulher), não sendo possível cumular a redução etária da LC 142 com a já existente para o trabalhador rural (Art. 70-C, § 2º, Decreto 3.048/99, com redação dada pelo Decreto 10.410/20).
2.8. Mudança no Cálculo da Renda Mensal Inicial (RMI)
A EC 103/2019 alterou significativamente o cálculo do Salário de Benefício (SB), base para a RMI. Antes da reforma, a média era calculada sobre os 80% maiores salários de contribuição desde julho de 1994, descartando-se os 20% menores (Art. 29, Lei 8.213/91, redação anterior). Após a EC 103/19 (Art. 26), a média passou a considerar 100% de todos os salários de contribuição desde julho de 1994 (ou do início das contribuições, se posterior), incluindo os salários mais baixos no cálculo. Essa mudança, em geral, resulta em um valor de benefício menor.
A reforma constitucional estabeleceu, portanto, mudanças profundas, especialmente na aposentadoria por idade urbana (alterando a idade da mulher) e extinguindo a aposentadoria por tempo de contribuição como regra geral, além de fixar novos requisitos mínimos para os novos segurados. A justificativa apresentada para o endurecimento das regras foi a necessidade de sustentabilidade do sistema frente ao envelhecimento populacional, focando primordialmente no aspecto econômico-fiscal, mas levantando questionamentos sobre o impacto social.