O Treinamento de Algoritmos e os Direitos Autorais

29/08/2023 às 22:06
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O Treinamento de Algoritmos, e os Direitos Autorais

A participação dos algoritmos em nossas rotinas, nas inúmeras camadas de programação e da sua relação com nossas escolhas, certamente deve ter um capítulo extenso nos diversos cursos de Direito, afinal tente imaginar a importância dele na análise de candidatos e seus históricos na procura de emprego, exato, são os algoritmos que estão dizendo quem deve ser chamado para entrevista. Pense no uso dos algoritmos para o cálculo do seu seguro de vida, ou do seguro do seu carro, que utilizam as estatísticas do número de sinistros do seu bairro, da sua idade e do seu estado civil.

Os algoritmos dentro da economia da atenção/desatenção, servem para que as empresas sejam mais assertivas na busca dos seus resultados, logo o processo de treinamento, e os seus fatores envolvidos na complexa atividade de obtenção de dados para treinar algoritmos, no chamado aprendizado de máquina.

No primeiro momento, de forma muito silenciosa, sem chamar a atenção da mídia, e antes de aparecerem os especialistas de tudo nas redes sociais, bem antes de aparecer o Dall·E, o primeiro algoritmo de imagem generativa (surgiu em janeiro de 2021), as empresas dedicadas ao seu desenvolvimento faziam, absolutamente tudo que que queriam sem o mínimo regramento.

Protegidos pelo princípio legal de que o web scraping é legal, ou seja, que qualquer pessoa pode entrar em páginas acessíveis ao público e copiar todo o seu conteúdo, eles fizeram enormes coleções de imagens e textos rotulados que consideravam razoavelmente corretos e, assim, alimentaram as bases de dados de que precisavam para treinar seus produtos. Isso mesmo o reconhecimento de imagem precisou de um banco de imagem, sem é claro pagar qualquer direito sobre essas imagens.

A jurisprudência, ainda não havia se consolidado, e logo os robôs de captura saiam buscando toda e qualquer imagem para registro e aprendizado. O fato é que de uma forma quase que consensual o web scraping foi sendo considerado uma ferramenta e não um crime, ainda que seu uso muitas das vezes beira o despropósito.

Logo, empresas como a OpenAI e outras entraram em bancos de dados, como a Getty Images, e conseguiram milhões de imagens marcadas. Todos eles tinham uma marca d'água que dizia "Getty Images" que só poderia ser removida se você pagasse pelo uso da foto, mas não importava: a imagem era suficientemente visível, e seus rótulos permitiam que o algoritmo a interpretasse, na lógica do seu aprendizado.

Como destaca Enrique Dans, em recente artigo, “O assunto começou a chamar a atenção quando usuários do Dall E e outros algoritmos, como o Stable Diffusion ou o Midjourney, começaram a fazer travessuras pedindo imagens "no estilo de". A coisa parecia mágica: se o seu prompt pedia o estilo de um determinado autor, o algoritmo ia para as imagens que tinha desse autor, e o resultado era em muitos casos tão bom, que parecia realmente feito pelo artista.” Além disso, alguns algoritmos, em muitos casos, chegavam ao absurdo de reproduzir as marcas d’água da Getty Images,: o algoritmo havia sido treinado com tantas imagens que o carregavam, que interpretou essa marca d'água como um elemento que deveria aparecer em suas criações, uma verdadeira aberração. A coisa se agravou com os textos: os algoritmos mais modernos, como o Claude, ingerindo livros inteiros em segundos, o que permite que eles passem imediatamente a escrever como o autor do mesmo faria, o que amplia a discussão sobre os direitos autorais de uma inteligência que desenvolve “texto e estilo próprios” copiando o autor no seu original? Isso é claro sem nenhuma compensação financeira.

Tente imaginar essa inteligência escrevendo cartas de amor para namorada, com a “inteligência e o talento “emprestado” de um Carlos Drumond de Andrade?

No primeiro momento a doutrina entende que somente as criações humanas são passíveis de serem protegidas por direitos autorais e acumular os direitos correspondentes. Podemos lembrar o famoso caso da selfie do macaco, em que o juiz decidiu que não havia lugar para proteção de direitos autorais, já que o autor da foto era o próprio macaco, parecia deixar as coisas claras, e era suscetível de ser estendido a algoritmos: um algoritmo não é humano e, portanto, suas criações devem ser isentas de direitos autorais. Ou seja, algoritmos desenvolvidos com imagens, artes e textos de outro são criadores de algo original? Isso pode ser protegido? A obra e o algoritmo?

Certamente interpretar o algoritmo como o criador de uma imagem é muito discutível, porque também poderíamos interpretar que é a ferramenta que um autor usa para obtê-la.

Quando se manuseia o algoritmo, ou ao escrever um prompt adequado e gerenciar todas as interpretações que o algoritmo faz dele não é uma tarefa simples. Visto desta forma, da mesma forma que não se pode interpretar que o autor deste artigo é o computador em que o escreve, também não se pode interpretar que o autor de um desenho criado por um algoritmo é o algoritmo, mas a pessoa que o estava manuseando.

A questão é complexa, mas está longe de ser uma mera curiosidade jurídica: está na base do que podemos ou não fazer com os algoritmos e, sobretudo, da indústria que se gera à sua volta.

Essa provocação decorre de algo cada vez mais comum em que artigos de inúmeras publicações, antes ilustradas por artistas estão utilizando de acordo com o tema, novas ilustrações geradas por algoritmos como o DALL E, ou Midjourney entre outros, uma tendência no mínimo curiosa.

Obter uma ilustração de um desses algoritmos é tão simples quanto escrever uma frase: na que acompanha este artigo, basta “um robô pintando um quadro de um pôr do sol”, que se você quiser pode acompanhar com atributos ou detalhes adicionais, e automaticamente, o algoritmo gera quatro propostas para escolher e permite que você baixe e use o que você escolher. Que mundo é esse?

Logo vamos pensar, quem seria o dono da imagem criada? Você? Os criadores do software? Porém considerando que essa ferramenta é alimentada por um enorme banco de dados de ilustrações em que busca “entender” o que você está pedindo, a cadeia geradora se torna mais complexa. Por outro lado, se o algoritmo é abastecido com imagens previamente criadas por ilustradores humanos, esse processo é sustentável ao longo do tempo? Será que poderemos chamar isso de revolução criativa onde qualquer um pode criar? Isso é criação?

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Como lembra o professor Martin Pino, em seu livro “O Fim dos Empregos Pela Inteligência Artificial e a Robótica”:“a promessa de um crescimento exponencial gera a possibilidade de criarmos imagens digitais e realidade virtual que tornarão a experiência on line tão real quanto a vida, ou talvez melhor ainda. Na verdade, os próximos momentos de nossa evolução tecnológica prometem transformar diversos conceitos populares de ficção científica em fatos: carros sem motorista, movimentos robóticos controlados pelo pensamento, inteligência artificial (IA) e sistemas completamente integrados de realidade aumentada que oferecem a possibilidade de sobreposição visual de informação digital em nosso ambiente físico. Tais desenvolvimentos vão incorporar e aprimorar o mundo natural das pessoas. As tecnologias da informação e comunicação continuarão a transformar as instituições por dentro e por fora. Cada vez mais se alcançarão pessoas cada vez mais distantes e até diferentes grupos linguísticos, compartilhando ideias, fazendo negócios e construindo relacionamentos. A cada dia, a maioria das pessoas vai viver e trabalhar em dois mundos ao mesmo tempo e ser regida por eles.”

E logo somos levados ao enfrentamento de novos paradigmas, afinal, humanos e máquinas juntos através da IA criando arte, pode isso ser chamado de arte?

Aparentemente as primeiras experimentações de arte com IA ocorreram com o software do Google DeepDream, em 2015, mas os resultados foram obras estética e conceitualmente limitadas não atraindo a atenção da crítica nem do público. O leilão da Chistie’s estimulou novas experimentações, inseridas num movimento artístico batizado pelo Obvious de “GAN-ism”, e muita polêmica. Vários artistas, utilizadores da inteligência artificial, contestam a originalidade não apenas dessa obra, mas de todo o trabalho do Obvious, referindo-se ao coletivo mais como profissionais de marketing do que propriamente artistas.

Quem disse que a arte e robótica não têm nada em comum? Logo, robôs podem ser artistas? De quem seriam os direitos autorais de uma obra que ao estudar Picasso consegue reproduzir os traços do gênio em uma nova criação?

A inspiração seria cópia?

Aparentemente a inteligência artificial é, ao mesmo tempo, ferramenta e por certo, concorrência para os profissionais de áreas criativas. Se não bastasse, a transformação digital fornece temas para a arte crítica, com avatares e todo tipo de novos desenhos gráficos, que são a cada dia mais produzidos por programas.

Sabemos que o Direito do Autor compreende prerrogativas morais e patrimoniais, aquelas referentes ao vínculo pessoal e perene que une o criador à sua obra e estas referentes aos efeitos econômicos da obra e o seu aproveitamento mediante a participação do autor em todos os processos e resultados. A Lei nº 9.610/98, tem como finalidade proteger as obras literárias, artísticas e científicas, impedindo desta forma, que terceiros se utilizem indevidamente das obras protegidas. Assim sendo, um software que cria um padrão artístico estaria dentro dessa definição?

Nos socorremos da WIPO, que define direito de autor como sendo “a proteção da criação da mente humana”. Assim, é importante salientar que o direito autoral protege as obras e logo, elas precisam de meio físico, o que poderia ser uma tela e ou no caso um programa de computador com seu código registrado?

O direito entende que todos aqueles que tiverem o seu nome agregado a uma obra serão legalmente considerados co-autores, logo, um algoritmo construído pelo coletivo estaria assim enquadrado?

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Sobre o autor
Charles M. Machado

Charles M. Machado é advogado formado pela UFSC, Universidade Federal de Santa Catarina, consultor jurídico no Brasil e no Exterior, nas áreas de Direito Tributário e Mercado de Capitais. Foi professor nos Cursos de Pós Graduação e Extensão no IBET, nas disciplinas de Tributação Internacional e Imposto de Renda. Pós Graduado em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Salamanca na Espanha. Membro da Academia Brasileira de Direito Tributário e Membro da Associação Paulista de Estudos Tributários, onde também é palestrante. Autor de Diversas Obras de Direito.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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