Funai ameaça segurança jurídica, imobiliária e ambiental

05/09/2023 às 09:51
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Em agosto/2020 no texto chamado “burocracias georreferenciadas”1, foi comunicada uma novidade do mês de abril daquele ano, a Instrução Normativa no. 09/2020 da Funai, que trouxe segurança jurídica para os processos que envolvem produtores rurais e comunidades indígenas em áreas com discussão de demarcações.

A Instrução Normativa da Funai no. 09/2020 de 16 de abril fez modificações no processo de certificação dos limites de imóveis, alterando a emissão de um documento chamado Declaração de Reconhecimento de Limites, que serve para fornecer aos proprietários ou possuidores imóveis privados a certificação de que os limites do seu imóvel respeitam os limites das terras indígenas homologadas.

O destaque na expressão homologadas foi proposital, pois existem também terras indígenas sob estudo (não concluídas) chamadas de “delimitadas”, ou seja, apenas a indicação do local de estudo pela Funai e as “declaradas” em portaria do atual Ministério dos Povos Indígenas, ou seja, validando a delimitação da Funai para prosseguir com o estudo da demarcação.

Os processos administrativos de demarcação de terras indígenas apenas se encerram após três principais atos administrativos, em respeito às premissas constitucionais da legalidade, devido processo legal, contraditório e ampla defesa, que são: 1) a assinatura de portaria declaratória pelo Ministério dos Povos Indígenas (não mais do Ministério da Justiça)2; 2) o decreto de homologação do presidente da República e; 3) a transferência do imóvel em matrícula, do antigo proprietário para o patrimônio da União, o que normalmente é feito pela Funai em posse dos documentos anteriores.

A homologação de terras indígenas ocorre quando o Presidente da República emite o decreto de homologação, como anunciado pelo atual Governo desde o mês de abril/2023, no sentido de que seriam demarcadas “todas as terras indígenas do país até o final do mandato, em 2026”.

Para que o processo de demarcação chegue até a presidência da república precisa passar por uma série de etapas, estudos e procedimentos3 determinados pelo Decreto Federal no. 1.775/1996, regulamentador do Estatuto do Índio (Lei Federal no. 6.001/1973), especificamente do artigo 17, inciso I que trata das terras tradicionalmente ocupadas, em que se discute o “marco temporal”4.

Estes processos duram anos, décadas e transitam por sucessivos governos. Enquanto isso, aqueles que são proprietários dos imóveis rurais sob estudo de demarcação necessitam cumprir a lei, realizando procedimentos como a certificação de georreferenciamento no INCRA e a inscrição do imóvel no Cadastro Ambiental Rural – CAR junto aos órgãos ambientais estaduais.

Além do mais, durante este tempo de tramitação, os proprietários, que devem manter o imóvel produtivo, cumprir obrigações ambientais e cadastrais, também exercem direitos de propriedade e posse, como por exemplo a compra e venda, desmembramento, sucessão familiar, arrendamento, parcerias rurais, usufruto, usucapião, enfim.

Em meio a este contexto, a Funai insere os polígonos das áreas “em estudo” (delimitadas, declaradas) nos sistemas dos referidos órgãos públicos (Incra, cartórios imobiliários, órgãos ambientais), praticando evidentes atos ilegais de afronta ao direito de propriedade e posse previstos pela Constituição Federal e demais legislações.

É gravíssima a conduta praticada pela Funai, impedindo o exercício de direitos inerentes à posse e propriedade, como o bloqueio de processos de certificação de georreferenciamento, impedimento de validação dos dados do Cadastro Ambiental Rural, impedimento de atos registrais imobiliários (compra e venda, desmembramentos, condomínios, multipropriedade), além da dificuldade de acesso às políticas públicas agrícolas como de crédito rural, garantias bancárias e outros abusos.

A “certificação” está relacionada à um dos cadastros obrigatórios de toda propriedade rural o CCIR – Certificado de Cadastro de Imóvel Rural, feito através do sistema SIGEF – Sistema de Gestão Fundiária, onde são apresentados os limites georreferenciados de cada imóvel rural por meio de técnico com emissão de anotação de responsabilidade técnica, uma ferramenta criada em 2013, utilizada pelo INCRA para certificar imóveis por obrigação legal.

O Decreto Federal no. 4.449/2002 afirma que a certificação do memorial descritivo pelo INCRA apenas certifica que a poligonal objeto do memorial descritivo não sobrepõe outras poligonais que a certificação do memorial descritivo “não implicará reconhecimento do domínio”, o que serve, por óbvio para regularização de divisas para ambos os envolvidos.

O SIGEF trouxe transparência com a integração de dados fundiários de outros órgãos, como a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e Cartórios de Registro de Imóveis, por outro lado, permitiu uma péssima gestão destas ferramentas por meio do abuso de poder de determinados gestores, resultando em insegurança jurídica e vulnerabilidade do planejamento territorial nacional.

Percebe-se que o problema está em permitir que informações sem validação oficial e sem cumprimento de etapas processuais legais de demarcação, impeçam a certificação de imóveis rurais, criando embaraços imobiliários, ambientais, bancários, fundiários e outras consequências, como ocorre também no Cadastro Ambiental Rural que já apontou sobreposições com terras indígenas geradas pelos dados inseridos pela Funai com relação às terras “identificadas” e “delimitadas”, sem homologação por decreto presidencial.

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A Instrução Normativa no. 09/2020, havia solucionado este impasse, considerando para fins de certificação de limites apenas as áreas homologadas por decreto presidencial, o que parece um tanto óbvio sob o ponto de vista jurídico, já que a existência de um processo demarcatório não pressupõe o seu êxito ou sucesso, que pode ser questionado por inúmeros fatores.

Eis que no dia 9 de agosto deste ano, a nova presidência da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, revogou aquela instrução normativa, promulgando outra5, a Instrução Normativa 30/2023.

São basicamente duas péssimas notícias sob o ponto de vista jurídico e de planejamento territorial, a primeira delas é a determinação constante no artigo 7º de que “não será emitida” a Declaração de Reconhecimento de Limites para imóveis incidentes terras indígenas de ocupação tradicional “delimitadas”, com Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação aprovado pela autoridade máxima da Funai e publicado no Diário Oficial da União; e terras indígenas de ocupação tradicional declaradas com Portaria Declaratória expedida pelo Ministro de Estado competente.

Neste sentido, já foi ponderado que, tecnicamente, só deveria ser considerada terra indígena, unidade de conservação ou alteração imobiliária com os devidos processos concluídos, em respeito à premissa constitucional do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa e da legalidade.

Gravíssima situação pelo fato de que terras “delimitadas” pela Funai ou terras “declaradas” em portaria declaratória pelo Ministério competente, são etapas provisórias do processo de demarcação.

A outra péssima notícia é a que consta no artigo 5º da IN Funai 30/2023, determinando que a “Declaração de Reconhecimento de Limites” não será fornecida a terceiros que não sejam detentores do imóvel ou seu representante legal.

Evidentemente esta situação representa um entrave para segurança jurídica em transações imobiliárias, impedindo que pretensos compradores ou até mesmo posseiros como arrendatários, parceiros, situações de usucapião, possam certificar-se da situação fundiária destes locais.

Portanto, fica claro que a FUNAI voltará a produzir documentos que restringem a posse e propriedade de imóveis ainda não homologados como terras indígenas, violando direitos dominiais.

Além do mais, voltam a ser obscuros e subjetivos os critérios para emissão da Declaração de Reconhecimento de Limites, pela falta de atendimento à legislação competente, prejudicando a certificação de inúmeros imóveis do país, pequenos, médios ou grandes, em razão das sobreposições topográficas.

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Se antes, não havia ofensa a direitos indígenas, visto que se tratava de processos em caráter “provisório” (terras delimitadas e declaradas, não homologadas), agora são escancaradas violações jurídicas em meio à esta grande quantidade de impedimento e bloqueios.

Sendo assim, a nova instrução normativa trouxe prejuízos ao planejamento territorial e violação de direitos de propriedade e posse, como também a possibilidade de responsabilidade civil-administrativa e penal6, bem como a possibilidade da prática de ato de improbidade administrativa7, dos agentes públicos envolvidos com a não emissão da declaração de limites, impedimento de certificação, impossibilidade de validação do CAR e bloqueios comerciais pela sobreposição.


1 Disponível em https://www.scotconsultoria.com.br/noticias/artigos/52980/burocracias-georreferenciadas.htm. Acesso em 31/08/2023.
2 Sobre o assunto https://www.conjur.com.br/2023-jan-27/puttini-mendes-qual-ministerio-decide-demarcacao; Acesso em 31/08/2023.
3 Sobre as etapas do processo de demarcação e os direitos dos envolvidos, vale conferir o artigo: 4">https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/analise-processual-transversal-da-demarcacao-de-terras-tradicionalmente-ocupadas-por-indigenas-e-sua-judicializacao/
4
 Sobre o assunto https://agribrasilis.com/2023/06/23/marco-temporal-terras-indigenas/. Acesso em 31/08/2023.
5 Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-funai-n-30-de-9-de-agosto-de-2023-502742547. Acesso em 31/08/2023.
6 Lei Federal nº 8.112/1990, artigos 124 e 125.
7 Lei Federal nº 8.429/1992, artigos 9º a 11.

Sobre o autor
Pedro Puttini Mendes

Advogado, Consultor Jurídico (OAB/MS 16.518, OAB/SC nº 57.644). Professor em Direito Agrário, Ambiental e Imobiliário. Sócio da P&M Advocacia Agrária, Ambiental e Imobiliária (OAB/MS nº 741). Comentarista de Direito Agrário para o Canal Rural. Colunista de direito aplicado ao agronegócio para a Scot Consultoria. Organizador e coautor de livros em direito agrário, ambiental e aplicado ao agronegócio. Membro fundador da União Brasileira da Advocacia Ambiental (UBAA), Membro Consultivo da Comissão de Direito Ambiental e da Comissão de Direito Agrário e do Agronegócio da OAB/SC. Foi Presidente da Comissão de Assuntos Agrários e Agronegócio da OAB/MS e membro da Comissão do Meio Ambiente da OAB/MS entre 2013/2015. Doutorando em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental pela Universidade do Estado de Santa Catarina, Mestre em Desenvolvimento Local (2019) e Graduado em Direito (2008) pela Universidade Católica Dom Bosco. Pós-graduação em Direito Civil e Processo Civil pela Anhanguera (2011). Cursos de Extensão em Direito Agrário, Licenciamento Ambiental e Gestão Rural. PRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA: "Pantanal Sul-Mato-Grossense, legislação e desenvolvimento local" (Editora Dialética, 2021), "Agronegócio: direito e a interdisciplinaridade do setor" (Editora Thoth, 2019, 2ª ed / Editora Contemplar, 2018 1ª ed) e "O direito agrário nos 30 anos da Constituição de 1988" (Editora Thoth, 2018). Livros em coautoria: "Direito Ambiental e os 30 anos da Constituição de 1988" (editora Thoth, 2018); "Direito Aplicado ao Agronegócio: uma abordagem multidisciplinar" (Editora Thoth, 2018); "Constituição Estadual de Mato Grosso do Sul - explicada e comentada" (Editora do Senado, 2017).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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