Miguel Reale, com o brilhantismo que lhe era inerente, ensinava que o Direito deve estável sem ser estático, e dinâmico sem ser frenético. A máxima, bem vistas as coisas, carrega em seu bojo uma ideia significativamente cara a esta Ciência, qual seja, a da segurança jurídica.
Sem qualquer pretensão de esgotamento do assunto, visto que já largamente tratado pela doutrina1, afigura-se curial, para fins de desenvolvimento do presente texto, adotar uma definição do que seja segurança jurídica, ou pelo menos entender quais os seus vetores. Ricardo Alexandre da Silva (2019, p. 52), com inegável poder de síntese, esclarece: “A segurança jurídica, essencial para a liberdade e a igualdade dos cidadãos, assenta-se na cognoscibilidade, confiabilidade e previsibilidade do Direito”.
Com efeito, a segurança jurídica não abrange apenas a consolidação de fatos pretéritos, sendo imprescindível que goze de um mínimo grau de previsibilidade quanto a um futuro próximo (ALEXANDRE, 2021, p. 160).
Resvalando por esta senda, ao se falar em segurança jurídica, é inevitável rememorarmos a coisa julgada. Tamanha é a sua importância que alguns acadêmicos chegam a afirmar que “se a coisa julgada não existisse em um ordenamento jurídico, haveria que inventá-la, porque é perfeitamente imaginável a insegurança jurídica que se derivaria da sua inexistência” (NIEVA-FENOLL, 2016, p 89).
No Brasil, o instituto usa as vestes de direito fundamental, porque previsto no artigo 5° da Constituição Federal. Uma definição foi dada pelo §3° do artigo 6° da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: “A decisão judicial de que já não caiba recurso”. Mais acurado é o conceito fornecido pelo artigo 502 do Código de Processo Civil: “A autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso”.
Pedimos licença, aqui, para abrir parênteses. A redação do Código de Processo Civil foi elogiada por respeitável parcela doutrinária. O diploma normativo processual anterior, em seu artigo 467, assim se manifestava: “Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”. Salta aos olhos, de logo, que apenas eram acobertadas pelo manto da coisa julgada as sentenças. Com a nova intelecção, estendeu-se o manto às decisões interlocutórias2. Demais disso,
o art. 502 completa sua definição se referindo à coisa julgada como a autoridade que imutabiliza a decisão de mérito. Evitou-se corretamente o emprego do termo eficácia, presente no art. 467 do CPC/1973. Como já visto, a res judicata não pode ser definida como eficácia da sentença, compreendida como conteúdo do ato jurisdicional (SILVA, 2019, p. 65, grifos no original).
Tecidas essas considerações, não se mostra descabido colacionar as palavras de Adolf Schönke (1950, p. 270, trad. nossa), para quem “a coisa julgada material é um precioso meio de evitar resoluções contraditórias, e com ele velar pela segurança jurídica; mas é só um dos meios de que se vale o ordenamento jurídico para conseguir seus fins, não sendo um fim em si próprio”. É de clareza meridiana, portanto, que a res judicata, a despeito de ser importante à segurança jurídica, com esta não se confunde.
Pois bem. Partindo desta premissa, o que se evidencia é que acaloradas discussões já foram realizadas em sede doutrinária acerca da coisa julgada, dificilmente se chegando a um consenso. “Discussões intermináveis sugerem que se trata de uma questão mal colocada ou de um pseudo-problema” (CABRAL, 2021, p. 175).
Com efeito, a primeira crítica que deve ser urdida diz respeito à distinção feita entre as funções positiva e negativa da coisa julgada. Em apertado resumo, “o efeito negativo da coisa julgada [é] o impedimento de novo julgamento de mérito, independentemente do seu teor”, ao passo que a “a função positiva [...] apenas o vincula [o juiz] ao que já foi decidido em demanda anterior com decisão protegida pela coisa julgada material” (NEVES, 2020, p. 867). Cabral (2020, p. 181) adverte:
Observe-se bem: a obrigação de consistência, decorrente do efeito positivo da coisa julgada, levaria a um dever de incorporação do que foi decidido à segunda sentença, o que seria, ao mesmo tempo, proibido pelo efeito negativo. Por outro lado, a vedação de rediscussão, decorrente do efeito negativo, pode causar uma contradição entre julgados, justamente o que se pretende evitar pelo efeito positivo. Note-se que a doutrina afirma constantemente que a vedação de rediscussão decorrente do efeito negativo impediria o juiz no segundo processo de proferir qualquer decisão.
Lado outro, também merece ser feita alguma ponderação no que diz com os limites objetivos da res judicata, que guarda estreita relação com o objeto do processo, limitando-se, consoante doutrina majoritária, ao dispositivo da decisão, ressalvados autorizativos legais (SIQUEIRA, 2020, p. 500 et seq). A razão de se seguir o modelo em comento, diz-se, é o respeito ao princípio da demanda. Entrementes, “o sistema de atualidades, assim delineado, não consegue adquirir o dinamismo exigido pelas interações do processo contemporâneo” (CABRAL, 2021, p. 188). Destarte, por que não desacoplar a coisa julgada do objeto do processo, especificamente do pedido? Afinal, “esta abordagem revela-se mais consentânea com as tendências atuais na jurisprudência comparada, e afinada com algumas formulações teóricas em torno de uma diversa compreensão do objeto do processo com foco nos escopos dos litigantes” (CABRAL, 2021, p. 189).
Por derradeiro, os limites temporais da coisa julgada não estão imunes a críticas. Nieva-Fenoll (2016, p. 271) introduz a reflexão:
É perfeitamente suscitável a questão a respeito de se os juízos duram para sempre. Vale dizer, se seria possível fazer-se valer hoje em dia a força de coisa julgada de uma decisão judicial proferida no século XII, ou em 1957. Quase todo mundo responderia, sem duvidar, que uma decisão do ano 1157 carece de vigência. E, sem embargo, muitos afirmariam que a sentença de 1957 poderia ser vigente nos dias de hoje. A única diferença entre ambas as decisões são oito séculos de diferença; no mais, uma é tão jurisdicional como a outra.
Ora, o fato é que as decisões pressupõem estabilidade, não se tornando vinculativas desde sempre, e tampouco sendo geradas para a eternidade. Por óbvio, o que se impõe é a construção de uma barreira “a impedir que outros elementos possam ser a elas incorporados ou deles subtraídos, e a estabilidade do conteúdo dos atos processuais depende do bloqueio a estas alterações” (CABRAL, 2020, p. 195). E continua o professor da UERJ (2020, p. 196): “o dinamismo do processo exige o rompimento com o formato linear de superposição da dimensão das estabilidades com a dimensão temporal”.
Enfim, o só fato de a coisa julgada estar consagrada há numerosos séculos não quer significar a sua imutabilidade. O Direito, como alhures mencionado, é dinâmico (em harmonia com o dinamismo inerente à sociedade), e repensar o sistema de estabilidade é medida salutar e necessária. Não se pode fechar os olhos a mudanças, mormente quando positivas. Afinal, como diria a artista, o novo sempre vem...
Neste sentido, cf., com proveito, ÁVILLA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 6 ed. Salvador: Juspodivm, 2021.︎
“A mudança do CPC/15 é extremamente profunda. Alteram-se [...] a visão da sentença (rompe-se com o dogma da unicidade da sentença” (GIORGI JÚNIOR, 2017, p. 239). Não apenas as sentenças trazem decisões meritórias. É perfeitamente possível, contemporaneamente, que decisões interlocutórias também o façam. A título exemplificativo, mencione-se os julgamentos antecipados parciais de mérito.︎