Resumo: Estuda-se a prova produzida em processos envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher, especialmente os tópicos e problemas relacionados à palavra da vítima e suas considerações como prova. O silêncio da vítima e a possibilidade ou impossibilidade de sua condução coercitiva são discutidos, além de temas correlatos, como o tratamento do agressor, dentro do sistema anger management ou manuseio da raiva, além da melhoria das provas em espécie.
Palavras-chave: violência, Lei Maria da Penha, mulher, vítima, palavra, provas, raiva, manuseio, silêncio e condução coercitiva.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por finalidade discutir o papel da vítima na produção de prova decorrente de violência contra a mulher em situação doméstica e familiar. O sistema protetivo tem como base o próprio artigo 5º da Constituição Federal, que preconiza a igualdade entre homens e mulheres e a vedação de tratamento desigual com base em questão de gênero. Entretanto, na prática, há grande distorção entre oportunidades e tratamento, decorrendo diversas formas de violência contra a mulher enquanto gênero. Violência física, patrimonial, sexual, psicológica, dentre outras, descritas no artigo 7º da Lei Maria da Penha.
A Lei Maria da Penha, Lei 11.340/06, institui diversas formas de combate à violência de natureza de gênero. A vítima é a mulher enquanto mulher, buscando a proteção em seu ambiente doméstico e familiar. Nem sempre é tão simples se produzir prova da violência praticada, pois, na maioria das vezes, a agressão não é física, mas psicológica, social e psicológica. Por isso a palavra da vítima, enquanto prova, é tão importante. Muitas vezes acaba sendo a única prova apta à comprovação do crime.
Como prova, a palavra da vítima (o seu termo) deve ser submetida à ampla defesa e ao contraditório. Essa submissão, apesar de ser determinada constitucionalmente, acaba gerando problemas práticos, como alguns que citaremos no corpo do artigo.
A linha do artigo traz considerações sobre o espírito da Lei Maria da Penha, focando na natureza protetiva e não se tutela legal, nos problemas decorrentes da participação da vítima na produção da prova em sede judicial (não comparecimento e condução coercitiva, direito ao silêncio e falso testemunho), além de indicar algumas diretrizes da produção da prova objeto do artigo (palavra da vítima) e outras provas corroborativas (que comprovam a palavra da vítima).
2. LEI MARIA DA PENHA: ESPÍRITO DO SISTEMA DE proteção.
O Brasil é um dos países onde há mais mortes de mulheres por seus companheiros no mundo1. Além dos crimes relacionados ao Feminicídio (Homicídio qualificado pela morte da mulher, pela sua condição de gênero), há uma gama de crimes de menor gravidade praticados no dia a dia, com uma evidente cifra negra, já que apenas uma pequena fração desses crimes chega ao Poder Judiciário.
Visando dar efetividade à proteção que a mulher necessita, foi criada a Lei Maria da Penha, sancionada em 7 de agosto de 2006, como Lei n.º 11.340. A lei ganhou este nome devido à luta da farmacêutica Maria da Penha para ver seu agressor condenado. A lei se aplica quando há situação de vulnerabilidade em relação ao agressor. Este não precisa ser necessariamente o marido ou companheiro: pode ser um parente ou uma pessoa do seu convívio. A Lei trouxe algumas características básicas, como: a) possibilidade de prisão do agressor, especialmente em caso de descumprimento de Medidas Protetivas de Urgência (artigo 24-A, da Lei Maria da Penha); b) a violência doméstica passar a ser um agravante para aumentar a pena; c) não é possível mais substituir a pena por doação de cesta básica ou multas; d) ordem de afastamento do agressor à vítima e seus parentes; e) assistência econômica no caso da vítima ser dependente do agressor; f) dentre outras.
O espírito da Lei é o de proteção. Reconhece expressamente que há uma distorção entre a igualdade formal preconizada entre homens e mulheres e a igualdade material, além de reconhecer que há casos, infelizmente vultosos, em que a mulher é vítima de violência física e psicológica decorrente de suas relações domésticas, familiares e afetivas. A Lei sofreu e sofre críticas de diversos grupos reacionários, alegando que, ao criar a diferenciação em Lei, acaba criando conflitos indevidos entre homens e mulheres. Da mesma forma os citados grupos alegam que os homens também podem ser vítimas de violência por parte da mulher e deveriam ser protegidos por alguma forma legal (citam, ironicamente, a necessidade de criar a Lei Chico da Penha).
O ordenamento legal busca a reparação de conflitos, devendo trazer elementos para a pacificação social. O espírito da Lei Maria da Penha não é agravar conflitos, mas resolvê-los ou atenuá-los. A Lei não visa colocar a mulher contra o homem. Pelo contrário. A Lei pode ser resumida em suas finalidades básicas, ou seja, quanto ao seu espírito normativo. São eles: a) reconhecer que a mulher, em situação de vulnerabilidade social, psicológica e econômica, pode ser vítima de agressão a seus direitos à integridade física, psicológica, patrimonial e cultural; b) o sistema legal e jurídico deve proteger a mulher da forma mais eficaz possível, incluindo a coordenação com serviços sociais; c) enfrenta-se a agressão através da prevenção, com Medidas Protetivas de Urgência, repressão, com a punição do agressor, e reparação, com o acompanhamento da vítima e do agressor; d) a Lei não criou crimes específicos, salvo exceções (como o crime de Descumprimento de Medidas Protetivas de Urgência), mas trouxe reformas pontuais em outros diplomas normativos, como agravantes a crimes já existentes, por isso, substancialmente, a Lei Maria da Penha é uma Lei de espírito protetivo e não repressivo.
Complementa-se com um ponto essencial para entender a questão da produção de provas: o sistema é de proteção e não de tutela. Tutela pode ser definida como a “proteção exercida em relação a alguém ou a algo mais frágil”. Tutela, conceitualmente, contém a proteção. No entanto é indevido afirmar que a mulher é tutelada pelo sistema normativo. A mulher é plenamente capaz de se proteger sozinha e não pode ser considerada mais frágil do que o homem, salvo quando se esteja falando de confrontação física. O sistema é de proteção, acionável excepcionalmente. Isso quer dizer que não se pode presumir a incapacidade da mulher em se defender e defender seus direitos, passando-se a tratá-la como incapaz.
As considerações são importantes para compreender que a mulher deve ser protegida, mas não tutelada, e que, quando essa se coloca em uma posição de risco ou de violência (perdoando o agressor, aceitando atos de machismo do companheiro, dispensando medidas protetivas de urgência, por exemplo), não cabe ao Estado intervir, salvo quando houver indícios concretos de violência (sexual, patrimonial, psicológica e física).
A aplicação prática desse espírito normativo pode ser compreendida com a seguinte afirmação: não cabe ao Estado dizer como a mulher deve viver e obrigá-la a agir contra a sua própria vontade. Em suma, o espírito da Lei é proteger a mulher em situação concreta de vulnerabilidade, não se podendo falar em tutela legal, aplicável a incapazes (por presunção legal, como menores de idade).
O STJ, no REsp 1.775.3412 basicamente segue a linha acima. Decidiu que, "antes do encerramento da cautelar protetiva, a defesa deve ser ouvida, notadamente para que a situação fática seja devidamente apresentada ao juízo competente, que, diante da relevância da palavra da vítima, verifique a necessidade de prorrogação/concessão das medidas, independentemente da extinção de punibilidade do autor". Em decisão unânime, acompanhando o voto do relator, a Terceira Seção do STJ deu provimento ao recurso da vítima para assegurar que ela seja ouvida sobre o fim das medidas protetivas, as quais poderão ser mantidas caso se constate a permanência da situação de perigo. Ou seja, escuta-se a vítima e se mantem a proteção em caso dessa requerer ou se for indicado a sua necessidade em havendo situação de perigo (concretamente se falando e não por mera presunção legal, frise-se).
3. O SISTEMA CRIMINAL: A PALAVRA DA VÍTIMA
Há duas circunstâncias básicas acerca da violência doméstica e familiar contra a mulher. A primeira, diz respeito ao envolvimento de paixão como motivador. Paixão pode ser definida como a emoção violenta. É uma face de duas moedas. Move amores e ódios. Move declarações de amor eterno e romances de novela e move feminicídios e destruição das vidas humanas envolvidas. A segunda circunstância decorre da primeira: o ato de agressão, salvo exceções, é praticado sem testemunhas, dentro do abrigo familiar e, assim, raramente deixa testemunhas.
Exatamente por ser praticado em atos de explosão e no ambiente familiar, em regra, é que a prova primordial para comprovação do crime é a palavra da vítima. A regra vigente no direito criminal brasileiro é a de que as provas não são tarifadas, ou seja, não tem peso maior ou menor que as demais, devendo ser devidamente fundamentadas pelo Juiz de Direito ao condenar ou absolver o réu. No entanto, por reconhecimento jurisprudencial3, a palavra da vítima acaba tendo um peso probatório maior como prova (standard probatório).
No entanto a palavra da vítima deve ser corroborada por outras provas, diretas ou indiretas, sob pena de se tornar abusiva. A palavra da vítima, do ponto de vista da acusação, poderá: a) estar embasada em outras provas, mesmo que indiretas, e servir para a condenação; b) estar isolada, sem embasamento em outras provas, mas, pelas circunstâncias pessoais da vítima e do agressor, ser valorada pelo Juiz de Direito como aptas à condenação; e c) estar dissociada de outras provas, além de, pelas circunstâncias pessoais, haver indicativo de abuso na palavra da vítima, que poderá estar movida por outros sentimentos que não a pura e simples busca por justiça4 (vingança, stalking, interesse patrimonial etc.). A palavra da vítima, como prova, não é uma prova da acusação, evidentemente. Toda prova produzida judicialmente pertence ao processo e não às partes. Ou seja, tecnicamente não se pode afirmar que a palavra da vítima ou o depoimento de determinadas testemunhas são provas da acusação ou da defesa, já que pertencem ao processo e devem ser produzidas e repetidas em busca da verdade real.
Assim, em complemento ao afirmado acima, a palavra da vítima tanto pode servir como prova para a condenação quanto para a absolvição. E, na praxe jurídica, verifica-se que o último caso não é uma exceção. É bastante comum acontecer de a vítima mudar de opinião entre a apresentação da representação criminal (registro de Boletim de Ocorrência ou outra forma) e a audiência preliminar prevista no artigo 16 da Lei Maria da Penha (audiência de confirmação da retratação da representação) ou até à audiência de instrução e julgamento. Essa mudança de opinião poderá levar ao arquivamento do processo por ausência de condição de procedibilidade para o oferecimento da denúncia (caso de crimes com ação condicionada à representação da vítima, como é o caso do crime de AMEAÇA, previsto no artigo 147 do Código Penal) ou à absolvição por ausência de provas, mormente se a palavra da vítima for a única prova apresentada pelo Ministério Público quando do oferecimento da denúncia.
Abaixo seguem problemas concretos relacionados com a prova indicada e suas implicações.
4. PROBLEMAS CONCRETOS RELACIONADOS À PALAVRA DA VÍTIMA a COMO PROVA
4.1. A PALAVRA DA VÍTIMA COMO PROVA ISOLADA
O primeiro problema apontado é a inexistência de provas confirmatórias do depoimento da vítima. Tais provas poderiam ser comprobatórias da materialidade do crime (exame de corpo de delito, por exemplo) ou da autoria e tipicidade (depoimento de testemunhas, imagens de câmeras de segurança, prints ou áudios de conversas por aplicativos etc.). Ou seja, as provas confirmatórias do depoimento da vítima são materiais, diretas ou indiretas. No caso de provas indiretas, cita-se o depoimento de testemunhas e informantes que possam atestar o comportamento agressivo do réu, a situação de violência psicológica e patrimonial sofrida pela vítima, dentre outras.
A praxe jurídica indica que o problema gerado pela ausência de provas confirmatórias do depoimento da vítima passa mais pela omissão da autoridade policial e do Ministério Público do que da inexistência de provas, já que a violência familiar e doméstica contra a mulher deixa rastros inequívocos, mesmo que de forma psicológica.
Conforme citado em tópico anterior, quanto à palavra da vítima pode: a) estar corroborada por outras provas e servir à condenação (ou à absolvição, obviamente); b) estar sem amparo em provas diretas ou indiretas, mas, pela circunstância pessoal da vítima e do réu (confronto entre a versão de ambos) servir para a condenação; e c) estar sem amparo em outras provas e, pela forma como foi coletada, especialmente quando for desconexa (incluindo possível denunciação caluniosa praticada pela vítima), não ter a aptidão para trazer um mínimo de certeza para a condenação do réu.
A autoridade policial não pode fundamentar o seu indiciamento e o Ministério Público não pode denunciar com base apenas no relato da vítima, devendo atuar na produção de outras provas, diretas ou indiretas. A mera desculpa de que o crime foi praticado sem testemunhas não desobriga à produção de outras provas, como oitiva de parentes próximos (filhos, inclusive) como informantes, vizinhos, prestadores de serviços, dentre outras, como a busca pela motivação das agressões (violência patrimonial, inclusive) e pesquisa mais acurada sobre a violência psicológica sofrida pela vítima (que pode fundamentar a denúncia pela prática do crime de dano emocional contra a mulher5).
Os órgãos de persecução devem compreender que as agressões praticadas precisam estar comprovadas por um amplo acervo probatório, que tanto sirvam para atestar a validade do depoimento da vítima, quanto sirvam mesmo para a condenação caso a vítima distorça o depoimento prestado anteriormente na fase preliminar de investigação. Ou seja, os órgãos de persecução devem se antecipar à hipótese de a vítima mudar o depoimento, trazendo provas aptas à condenação.
4.2. A VÍTIMA SE RECUSA A COMPARECER À AUDIÊNCIA
É possível que a vítima não queira comparecer à audiência designada.
Apenas para delimitar melhor o tema, esclareça-se que há diferentes soluções jurídicas para cada tipo de audiência. É comum haver a designação de audiência confirmatória da representação criminal ou da retratação da representação, em casos de crimes de ação penal condicionada à representação, como é o caso do crime de ameaça, um dos mais comuns envolvendo violência doméstica e familiar. Acaso o Juiz de Direito designe tal audiência, prevista no artigo 16 da Lei Maria da Penha6, e notifique a vítima e, essa não comparecendo, presume-se que manteve a representação apresentada anteriormente ao registrar o Boletim de Ocorrência ou requerer medidas protetivas de urgência. É a interpretação lógica do artigo 16 da Lei Maria da Penha, já que a retratação deve ser expressa, conforme decidiu o STF na ADI 72677. Assim, caso não compareça ao ato, o processo seguirá, com recebimento da denúncia (acaso já oferecida) e citação do réu para apresentar resposta à acusação e atos seguintes.
Outra situação é a notificação da vítima para comparecer à audiência de instrução e julgamento, quando será inquirida sobre os fatos que levaram ao oferecimento da denúncia criminal. Após o recebimento da denúncia, citação, resposta à acusação e confirmação do recebimento da denúncia, o Juiz de Direito designa audiência para produção de provas, notificando-se vítima, informantes, testemunhas (arroladas pela acusação e pela defesa) e réu para comparecerem ao ato. A vítima é ouvida em primeiro lugar, descrevendo os detalhes da agressão (onde, quando, como, por que, quem, consequências etc.). A questão levantada é: o que fazer se a vítima se recusar a comparecer ao ato? Ou seja, acaso notificada formalmente por Oficial de Justiça, recuse-se a participar da instrução.
Levantamos as seguintes hipóteses: a) não comparecendo à audiência de forma injustificada, o Juiz poderá redesignar a audiência para data mais próxima possível, determinando-se nova notificação da vítima para comparecer ao ato, com ou sem a advertência de condução coercitiva8; e b) a audiência seguirá sem a vítima, com a produção das demais provas, seja em caso de não redesignação da audiência ou redesignada sem a ordem de condução coercitiva e se reiterando o não comparecimento.
Nossa posição é que, em caso de não comparecimento imotivado, seja redesignada a audiência, com nova notificação da vítima para comparecer ao ato, e, acaso não compareça novamente, que a instrução siga sem a sua oitiva. Isso quer dizer que somos contra a condução coercitiva da vítima em crimes de violência doméstica e familiar9. Conduzir coercitivamente é, substancialmente, determinar que o Oficial de Justiça, acompanhado de força policial, compareça à residência da pessoa a ser ouvida e a leve à força para a sala de audiências. É, sem sombra de dúvidas, um ato de força e, no caso da vítima, um ato abusivo.
A condução coercitiva da vítima de crimes contra a mulher é a reprodução de várias violências anteriores e omissão do Estado e da sociedade com aquela. O Estado permitiu a violência contra a mulher ao estar fundamentado em bases patriarcais, não conseguiu reprimir a ação criminosos e não conseguiu evitar que a mulher fosse vítima de crimes dentro de seu ambiente doméstico e familiar, e não conseguiu atrair a confiança da vítima nos ditames da justiça estabelecida. Ao obrigar a mulher a comparecer à audiência contra a sua vontade, inclusive com uso de força policial, estará mais uma vez violentando os seus direitos, transformando a mulher em criminosa de forma simbólica.
Os órgãos de investigação e persecução, respectivamente a polícia judiciária e Ministério Público, devem se antever à essa situação, trazendo um arcabouço probatório mínimo, sem embasar-se apenas no depoimento da vítima como prova. Frise-se que o depoimento da vítima em sede policial poderá ser valorado pelo Juiz de Direito, especialmente quando for comprovado por provas produzidas sob o crivo do contraditório e da ampla defesa. As provas produzidas em sede de Inquérito Policial não podem ser usadas de forma exclusivas para a condenação, mas podem ser utilizadas acaso estejam amparadas pelas demais provas10. Tomemos uma situação: MARIA, vítima, descreve em detalhes a agressão (crime) sofrida à autoridade policial. Ao ser notificada para a audiência de instrução, por ter se reconciliado com o agressor (réu), recusa-se a comparecer à audiência. LUZIA e PEDRO, testemunhas ouvidas em sede de instrução criminal, confirmam o depoimento prestado por MARIA na fase preliminar. Essa confirmação, além de outras provas de natureza documental, embasa a versão da vítima (mesmo sem o contraditório judicial), podendo, tranquilamente, ser utilizada na sentença condenatória.
Portanto, ao juntar provas confirmatórias do depoimento da vítima, os órgãos de persecução anteverão a possível recusa da agredida a comparecer ao ato (ou comparecer e mudar o depoimento) sem a necessidade de utilizar o abuso institucional que é a condução coercitiva.
Apenas por amor à dialética, frisamos que a matéria é polêmica e não pacificada nos tribunais. Tanto ocorre discussão acerca da possibilidade de condução coercitiva da vítima, alegando que essa não pode deixar de comparecer ao ato judicial, pois o interesse deixa de ser dela e passa a ser do Estado-Juiz; quanto ocorre discussão acerca da (im)possibilidade do uso de provas repetíveis (como é o caso de depoimentos de vítimas, testemunhas e informantes) produzidas apenas durante o Inquérito Policial para a condenação do réu. De todo modo reiteramos nossa posição, reafirmando que o Estado, em nome de tecnicismos, não pode permitir a revitimização ou vitimização secundária, que é uma série de atos e questionamentos que geram constrangimentos nas mulheres que foram vítimas de violências de gênero11.
4.3. O DIREITO AO SILÊNCIO POR PARTE DA VÍTIMA.
Esse tópico é um complemento do tópico anterior, aplicando-lhe substancialmente as mesmas palavras. Aqui a vítima comparece ao ato judicial para ser ouvida pela autoridade. Ocorre que prefere não falar nada. Silencia sobre os fatos.
As questões postas são: a vítima tem direito a ficar em silêncio, negando-se a responder às perguntas que lhe forem feitas? Acaso fique em silêncio, a vítima poderá responder por algum crime?
Antes de se chegar a tanto, temos que compreender, sempre de acordo com o caso concreto, os motivos que levam a vítima a não querer falar. Pode ter ocorrido a reconciliação com o agressor e essa entenda que suas palavras podem ser prejudiciais ao réu, ou seja, ela perdoou a agressão e intenta conseguir a absolvição do agressor, por isso o silêncio. Pode ser que a vítima esteja sendo vítima de alguma espécie de chantagem, manipulação mental (gaslighting12), ameaças de morte etc. É comum até mesmo que tenha sido orientada juridicamente a ficar em silêncio pelo advogado do réu, apesar da duvidosa questão ética envolvida e até mesmo de possível crime (partícipe no crime de falso testemunho, previsto no artigo 342, do CP).
ANA LUIZ MORATO13 tratou dessa questão, afirmando que, geralmente, o requerimento do direito ao silêncio vem acompanhado pela argumentação da aplicação direta do artigo 13 da Lei Maria da Penha, que prevê a possibilidade de aplicação subsidiária e complementar de outras legislações específicas, bem como do inciso IV do artigo 5º da Lei 13.431/2017, que trata do direito da criança e do adolescente de permanecer em silêncio, quando vítimas ou testemunhas de violência. Também cita o Enunciado 50 do FONAVIDi, in verbis: “Deve ser respeitada a vontade da vítima de não se expressar durante seu depoimento em juízo, após devidamente informada dos seus direitos.”
O direito ao silêncio da vítima não tem previsão legal de forma expressa, salvo se fazendo a interpretação sistemática citada acima. A previsão dessa garantia em nosso ordenamento jurídico é taxativa em benefício do acusado, regra consentânea, aliás, com o sistema acusatório, pelo qual, ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo (art. 186. do CPP). Por isso a autora citada afirma que o magistrado deverá observar possíveis armadilhas jurídicas, que, em nome da não revitimização acabe por favorecer o agressor.
Entendemos que a vítima precisa ser protegida, mas não indevidamente tutelada, conforme já exposto anteriormente. Em suma: a mulher, vítima de violência doméstica, deve ter todo o apoio do Estado em busca de sua proteção integral, física e psicológica. Mas essa proteção não tira a sua capacidade de se autodefender e de fazer escolhas, mesmo que se colocando em risco. Ou seja, a vítima tem plena liberdade de perdoar o agressor e voltar a conviver com esse. É livre para tanto.
Assim, caso a vítima queira usar o silêncio, entendemos que ela não pode ser constrangida a falar contra a sua vontade, mesmo que isso prejudique a formação da prova. Deverá, naturalmente, ser devidamente esclarecida da situação, do risco da reiteração das agressões, dentre outras. Mas não obrigada a falar, principalmente com ameaças de prisão e de responder a processo por crimes de denunciação caluniosa ou falso testemunho.
Apliquemos o afirmado anteriormente quanto à condução coercitiva. Cabe aos órgãos de persecução trazerem arcabouço probatório suficiente para a condenação do réu, mesmo que a vítima fique em silêncio ou, o que é mais comum, que mude o depoimento prestado em sede policial. Naturalmente, em havendo indícios de que a vítima se moveu por motivação diversa do que a busca por proteção e justiça, ou seja, que mentiu ao registrar o Boletim de Ocorrência buscando perseguir ou se vingar do réu, é possível que seja investigada pela prática do crime de denunciação caluniosa. Mas o mero silêncio não tem o condão de atrair a imputação objetiva de tal tipo penal.