5. DA NECESSIDADE DE MELHORIA NA COLETA DE PROVAS: ANÁLISE DE ALGUMAS PROVAS PRODUZIDAS E SUA UTILIDADE NO PROCESSO
5.1. NATUREZA DA PROVA: CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Substancialmente, defendemos que a prova em qualquer tipo de crime deve ser ampla. Não se pode oferecer denúncia criminal com base em apenas uma prova, seja qual for a sua natureza. A presunção de inocência e os demais direitos constitucionais exigem que alguém que seja processado, saiba pelo que está sendo processado e lhe sejam apresentadas as provas produzidas pelo Estado-persecutor contra si. As provas são diretas e indiretas, materiais ou testemunhais, dentre outras classificações. De todo modo, mesmo que haja uma única prova direta, como o depoimento da vítima, outras provas deverão ser produzidas, sejam materiais (perícias e exames de corpo de delito etc.) ou testemunhais.
Acerca da prova criminal, devemos ter em conta o que dispõe o artigo 155 do Código de Processo Penal, que baliza a sua produção. Vide: Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.
A prova é a soma dos motivos geradores da certeza, atingindo seus aspectos objetivos, subjetivos e conceitos. Desse modo, a prova é constituída por todos os fatos e acontecimentos, coisas, pessoas e circunstâncias úteis para formar a convicção do julgador acerca do acontecido.
O meio de prova é o instrumento que tem como objetivo levar ao processo um elemento ou informação, que o julgador irá usar para formação de sua convicção. Por ser de grande relevância, o Código de Processo Penal, aplicável em processos envolvendo a violência doméstica e familiar contra a mulher, traz em seu texto os meios de provas, são estes: Prova pericial, Exame de corpo de delito, Documental, Testemunhal e Prova emprestada.
Os meios de produção de provas previstos em lei, encontram-se nos artigos de 158 a 250, do CPP. Acerca dessas provas, faremos abaixo as considerações com os complementos necessários quando se trata de violência doméstica e familiar, além de complementar com outros dispositivos legais, especialmente as normativas de provas previstas na própria Lei Maria da Penha.
5.2. OITIVA DA VÍTIMA E SUAS CIRCUNSTÂNCIAS (DIRETRIZES E PROCEDIMENTO)
O Código de Processo Penal lista algumas provas, mas tal rol é exemplificativo, pois todos os elementos que possam ser documentados nos autos e que sirvam para fundamentar a decisão judicial, condenatória ou absolutória, tecnicamente são provas, havendo apenas algumas regras básicas de sua produção, como, por exemplo, serem lícitas.
Dentre as provas produzidas em sede de crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher, podemos citar algumas, descritas abaixo.
Salvo em caso de crimes em que a vítima tenha vindo a óbito, como é o caso do feminicídio e lesão corporal seguida de morte, o depoimento da vítima acaba sendo a primeira prova produzida. O Inquérito Policial normalmente é instaurado a partir de um Auto de Prisão em Flagrante, gerado por uma denúncia de conflagração doméstica, na qual a Polícia Militar, atendendo ao caso, prende o agressor e conduz esse e a vítima até a delegacia de polícia para as providências legais. A praxe indica que essa é a maior entrada de casos envolvendo violência doméstica no Poder Judiciário. Mas também é possível que a vítima tenha comparecido à Delegacia de Polícia, registrado um Boletim de Ocorrência e, com base nesse, a autoridade policial instaure a investigação. Em menor nível de ocorrência, é possível que a investigação surja de outras formas de entrada, como Boletins de Ocorrência registrados por terceiros envolvidos (parentes da vítima), representações apócrifas (com denunciantes conhecidos pela polícia, mas com nomes preservados) e anônimas, após o levantamento de informações preliminares, notificação de hospitais (onde a vítima deu entrada após ser agredida) dentre outras.
De todo modo, seja qual for a origem da ocorrência, um dos primeiros atos da autoridade policial é ouvir a vítima.
A Lei Maria da Penha foi atualizada através da Lei Lei nº 13.505, de 2017 acerca das diretrizes dessa oitiva. Primeiro, segundo o artigo 10-A, da LMDP, é direito da mulher em situação de violência doméstica e familiar o atendimento policial e pericial especializado, ininterrupto e prestado por servidores - preferencialmente do sexo feminino - previamente capacitados. Essa regra busca humanizar a oitiva, evitando que o ambiente masculino e, muitas vezes tóxico, constranja a vítima, afastando-a do sistema protetivo.
As diretrizes da oitiva estão previstas no parágrafo primeiro do artigo 10-A, da Lei, sendo as principais: I - salvaguarda da integridade física, psíquica e emocional da depoente, considerada a sua condição peculiar de pessoa em situação de violência doméstica e familiar; II - garantia de que, em nenhuma hipótese, a mulher em situação de violência doméstica e familiar, familiares e testemunhas terão contato direto com investigados ou suspeitos e pessoas a eles relacionadas; e III - não revitimização da depoente, evitando sucessivas inquirições sobre o mesmo fato nos âmbitos criminal, cível e administrativo, bem como questionamentos sobre a vida privada.
O procedimento de escuta é previsto no parágrafo segundo do citado artigo, sendo esse: I - a inquirição será feita em recinto especialmente projetado para esse fim, o qual conterá os equipamentos próprios e adequados à idade da mulher em situação de violência doméstica e familiar ou testemunha e ao tipo e à gravidade da violência sofrida; II - quando for o caso, a inquirição será intermediada por profissional especializado em violência doméstica e familiar designado pela autoridade judiciária ou policial; III - o depoimento será registrado em meio eletrônico ou magnético, devendo a degravação e a mídia integrar o inquérito.
Aqui já apontamos um procedimento que tem o condão de diminuir os problemas indicados na introdução do artigo, relacionado à não oitiva em sede judicial da vítima. Ao tomar o depoimento da vítima de forma eletrônica (vídeos), a autoridade coletará informações que tendem a se perder com o tempo e com a mudança de estado anímico da vítima (mudança de opinião) e com a perda natural da memória. Indicamos como informações: i) o estado mental da vítima, principalmente o estado de ânimo relacionado ao medo, raiva, angústia, dentre outros, que é facilmente perceptível ao se reproduzir o vídeo em sede judicial, e que tem o condão de comprovar, por exemplo, que as ameaças (147, do CP) proferidas pelo réu foram viáveis e suficientes para causar medo na vítima; ii) coleta imagens de ferimentos e lesões, mesmo que leves, provocadas na vítima, indicando se são lesões de ataque ou de defesa (tentando reconstruir com imagens a sequência das agressões); iii) consequências dos atos de agressão (impacto nos filhos, patrimônio da vítima, estabilidade emocional etc.; iv) todos os atos complementares, que entenda serem viáveis para a instrução.
Sem querer esgotar o tema, reiteramos que, ao proceder à forma correta de oitiva da vítima, com as cautelas legais, a autoridade policial evitará os problemas citados alhures. Reiteramos a aplicação do artigo 155, do CPP, no qual é possível o uso de provas produzidas em sede policial para condenar o agressor, desde que comprovadas por outros elementos de prova, naturalmente. É possível, inclusive, fazer o contraponto entre o depoimento prestado pela vítima em sede policial (logo após o fato, ainda tomada pelo impacto do crime, com o ânimos respectivo) e o prestado em sede judicial, devendo o juiz dar o valor da prova que lhe é cabível. Por exemplo, imaginando-se a situação bastante comum em que a vítima muda de opinião entre o primeiro depoimento (policial) e o segundo (judicial). No primeiro depoimento, gravado em mídia digital, descreve em detalhes todas as circunstâncias, inclusive a sequência de lesões (lesões de ataque e lesões de defesa). No segundo, após algum fato posterior (reconciliação, chantagem familiar ou patrimonial, ameaças por parte do réu etc.) nega que tenha sido agredida, alega que as lesões foram provocadas por fato estranho ao processo (queda, por exemplo) ou que ela foi quem deu início ao conflito físico e que o réu apenas se defendeu. Nesse caso, ambos os depoimentos da vítima deverão ser analisados pelo Juiz de Direito, dando o devido valor. No caso, havendo elementos indicativos de que a vítima está sofrendo algum tipo de chantagem ou violência, nova investigação deverá ser determinada para apurar o crime previsto no artigo 147-B, do CP (violência psicológica).
5.3. PROVAS confirmatórias DA palavra da vítima
Por fim, indicamos na questão da produção das provas confirmatórias da palavra da vítima, alguns cuidados básicos a serem tomados pela autoridade policial (Delegado de Polícia) e Promotor de Justiça ainda na fase preliminar.
5.3.1. PRODUÇÃO E ANÁLISE DO FORMULÁRIO NACIONAL DE AVALIAÇÃO DE RISCO VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER.
O relatório citado é fornecido pelo CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA14 e indica a avaliação de riscos, devendo ser preenchido pela vítima, com ou sem auxílio de servidor público (equipe de apoio ou agente de polícia). Mas não basta preencher o formulário e proceder à sua juntada meramente burocrática aos autos do Inquérito Policial. Com base em tal relatório é viável a tomada de outras providências complementares, como a instauração de investigação acerca de outros crimes (violência psicológica, estupro marital etc.). O Promotor de Justiça, ao oferecer a denúncia, deve analisar e fazer um resumo fático dos dados constantes do relatório, especialmente se tais informações forem juridicamente relevantes (dados sobre o fato, sobre o agressor, sobre a vítima e terceiros envolvidos, como filhos e eventual impacto do crime em questões patrimoniais e sociais etc.).
5.3.2. APLICAÇÃO DO SISTEMA anger management (manuseio da raiva).
O descontrole da raiva e das emoções mais fortes (paixão) leva à violência. Tal fator é mais grave em países de tradição patriarcal e com machismo institucionalizado. BRENA O’DWYER15, citando JIMENO16, afirma que os crimes passionais são cometidos principalmente por homens, e isso demonstrado que existem hierarquias de gênero presentes nessa ação. Culpar a paixão pelo ato violento é um processo de ocultamento dos sentimentos e pensamentos socialmente apreendidos que levam à violência. Ainda segundo a autora, existe uma tradição cultural ocidental que associa o uso da violência com a explosão emocional. Essa tradição descansa na concepção das emoções como instintivas, incontroláveis, animalescas, concepção essa que está em consonância com a concepção de sujeito moderna como cindido entre razão e emoção. Se a emoção é irracional, a força que leva o indivíduo a usar a violência nos crimes de ódio, nos casos apresentados por Jimeno ira e ciúme diminuem a culpabilidade.
Pelos motivos acima é que se torna necessário compreender que o manuseio da raiva, com o seu controle e reavaliação de origem, é tão necessário para a redução da violência de gênero. Segundo o psiquiatra suíço CARL GUSTAV JUNG17 a neurose é a expressão de um processo perturbado de uma totalização do ser humano e faz parte do seu processo de Individuação. A neurose é um pacto provisório, uma espécie de solução passageira que antecede uma tentativa propícia de solução.
Trazendo a lição do mestre para o nosso problema de manuseio da raiva (anger management) podemos afirmar o seguinte: a) todos nós somos movidos por instintos primitivos, voltados ao sexo e à violência; b) socialmente, somos obrigados a reprimir tais instintos, pois, do contrário, seríamos predadores sexuais e assassinos em série, gerando caos e desordem, ou seja, somos obrigados a reprimir nossos instintos mais primários; c) ao reprimir tais instintos criamos as neuroses, que podem ser representadas como um balão em nossa mente, onde são colocadas todas as nossas vontades primitivas e socialmente reprimidas; d) tal balão, com as nossas neurores (desejos e vontades reprimidas, mesmo que inconscientemente), pode estourar, acaso não seja esvaziado vez ou outra; e) o processo de anger management parte da ideia de que a raiva e a violência (consequências do estouro do balão) precisam ser moduladas, direcionadas, reduzidas e não necessariamente reprimidas.
Ao ouvir a vítima, informantes, condutores (policiais que efetuaram a prisão do agressor), a autoridade policial passará à oitiva (interrogatório) do autuado/investigado. Nesse momento, com base nas provas anteriores, já terá um quadro psicológico mínimo do agressor, verificando se esse possui algum tipo de descontrole de sua raiva e paixões, ou até mesmo, se é incapaz de entender o fato ilícito praticado.
A Lei Maria da Penha prevê, no artigo 22, VI e VII, a aplicação de medidas protetivas contra o autor da violência, sendo essas o comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação; e o acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio.
Ou seja, mesmo que indiretamente, a nossa legislação adotou o sistema de anger management18, ou manuseio da raiva, em tradução livre. O sistema é adotado nos EUA, com relativo sucesso. Vide a definição do programa:
Anger management is a psycho-therapeutic program for anger prevention and control. It has been described as deploying anger successfully. Anger is frequently a result of frustration, or of feeling blocked or thwarted from something the subject feels is important. Anger can also be a defensive response to underlying fear or feelings of vulnerability or powerlessness. Anger management programs consider anger to be a motivation caused by an identifiable reason which can be logically analyzed and addressed 19.
Talvez aqui resida a maior causa do fracasso do sistema protetivo decorrente da Lei Maria da Penha. Não adianta apenas prender o agressor, aplicar medidas protetivas (que raramente são cumpridas), encaminhar a vítima a acompanhamento social ou psicológico, dentre outras, se o grande problema, que é a origem da agressão, não é atacado. Por isso cabe ao Delegado de Polícia, na fase preliminar, ao Promotor de Justiça e ao Juiz de Direito, na audiência de custódia ou audiência de instrução, quando estiverem ouvindo o investigado/réu inquri-lo acerca da sua intenção em se submeter ao sistema anger management. Em sendo positivo, deverá ser encaminhado a tratamento contra os efeitos do álcool (AA), drogas ilícitas, acompanhamento psicossocial, submissão a grupos de apoio (inclusive encontros de casais, seja em grupos laicos ou religiosos), dentre outros. Pela praxe, podemos afirmar que dificilmente o agressor recusará o tratamento, pois a opção que lhe é oferecida não é melhor (podendo ser até mesmo o cárcere).
Atacando-se o problema da origem da agressão e do descontrole da raiva e das paixões, tem-se a esperança de salvar vidas e evitar um quase certo feminicídio futuro.
5.3.3. PROVAS PERICIAIS E DOCUMENTAIS
Segundo Nucci20, denomina-se materialidade a prova da existência do crime. Para haver condenação, é imprescindível a prova da materialidade e da autoria. Algumas infrações penais deixam vestígios reais, ou seja, rastros que podem ser visualizados (ex.: o cadáver, no crime de homicídio, hematomas na vítima do crime de lesão corporal). Por isso, quando o delito deixar esse tipo de vestígio material é indispensável o exame de corpo de delito (art. 158, CPP). Ainda segundo o mestre citado, corpo de delito é a materialidade do crime. Exame de corpo de delito é a perícia que se faz para apontar a referida materialidade. Logo, não são sinônimos. Surge, então, o corpo de delito direto e o indireto. De forma direta, realiza-se por perícia, a forma científica mais próxima de se atestar a existência ou inexistência de algo (ex.: drogas). De forma indireta, o corpo de delito advém da prova testemunhal (art. 167, CPP). Não é a forma correta e ideal, mas um escape para evitar a impunidade de certos delitos (ex.: testemunhas veem o agente desferir vários tiros na vítima, jogando-a, depois, de um penhasco nas águas do mar, onde desaparece). A possibilidade de atestar a morte de alguém por testemunhas é capaz de gerar erro, mas, conforme o exemplo dado, o percentual é muito baixo. Diante disso, aceita-se o corpo de delito indireto para a condenação.
A autoridade policial, de forma primária, e o Promotor de Justiça, de forma secundária (antes do oferecimento da denúncia) deverão conferir se a perícia e a juntada de provas documentais preenchem os requisitos legais, especialmente se houve alguma espécie de contraprova. Explicamos: o investigado alega que apenas segurou a vítima para não ser agredido. A contraprova seria a produção do tipo de lesão praticada na vítima, indicando se são lesões de defesa (marcas nos braços da vítima podem indicar que essa foi imobilizada pelo investigado/réu) ou de ataques (lesões praticadas no rosto da vítima, decorrentes de socos ou chutes, afastam, a priori, a alegação do investigado/réu).
O mesmo se aplica a toda forma de juntada de documentação ou perícia, em crimes contra a honra (normalmente praticados em aplicativos de mensagens), crime de dano qualificado (indicando que houve violência secundária contra a coisa e primária contra a vítima, como a destruição de porta da casa para agredir a vítima, por exemplo), dentre outros. A casuística é bastante extensiva e foge da intenção do artigo.
A questão primoridial que levantamos é que a violência doméstica e familiar contra a mulher é um processo do qual o ato de agressão em si (ameaça, lesão corporal, feminicídio, estupro marital, dentre outros) é apenas o estopim de um conflito anterior. Assim, por ser um processo, a violência invariavelmente deixa vestígios que podem ser documentados ou produzidos através de depoimentos de testemunhas ou informantes. Por isso a cautela e observações acerca da juntada de documentação complementar e perícias, que comprovem a violência.