6. CONCLUSÃO
O artigo proposto é meramente introdutório da questão relacionada à prova produzida em sede de violência doméstica e familiar contra a mulher. O operador do direito deve ter em conta que o sistema é de proteção, mas não de tutela, com as suas considerações práticas, dentre as quais, a forma de se analisar o papel da vítima quando essa alegue o direito ao silêncio ou se recuse a produzir a prova ou até mesmo preste falso depoimento em sede de instrução (para favorecer o réu).
Defendemos que, a priori, o Juiz de Direito não deve determinar a condução coercitiva da vítima, acaso essa, notificada, recuse-se a comparecer à audiência de instrução, bem como deverá evitar coagir a vítima a falar contra a sua vontade, evitando-se também, salvo indicativos da existência de dolo específico, a determinação da instauração de Inquérito Policial para apurar os crimes de desobediência, falso testemunho ou denunciação caluniosa, em tese praticadas pela vítima. E o nosso argumento é simples: o nosso sistema patriarcal, que inclui o Poder Judiciário, oprime a mulher, dificultando o livre gozo de todos os seus direitos, incluindo a proteção à integridade física e psicológica. Ao procurar o Estado-Juiz, não pode, sob pena de revitimização, ser tratada como se criminosa o fosse.
Por fim, defendemos que os problemas citados passam mais pela necessidade de busca pela proteção integral da vítima, através de toda a rede (polícia, serviço social, Ministério Público e Poder Judiciário) e pela melhoria da prova produzida do que pela colocação do ônus da condenação sobre os ombros da vítima.
Além do mais, trouxemos a questão do anger management, ou, em tradução livre, o manuseio da raiva, como ponto a ser discutido e devidamente considerado pelos operadores do direito, já que o sistema capitaneado pela Lei Maria da Penha tem como finalidade secundária a recuperação do agressor e a repactuação social, como necessidade para efetivação da garantia integral dos direitos à mulher em sua condição de gênero.
BIBLIOGRAFIA
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Notas
1 O Brasil ocupa a 5º posição no ranking global, com 48 vezes mais mortes de mulheres nessa situação do que a Inglaterra, por exemplo. Vide:
2 https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/04052023-Mulher-em-situacao-de-violencia-deve-ser-ouvida-sobre-o-fim-de-medidas-protetivas.aspx Acesso em 19 de setembro de 2023.
3 Vide: “1. Tratando-se de delito cometido em ambiente doméstico e familiar, é sabido que a palavra da vítima é de extrema relevância para o esclarecimento dos fatos, quando em consonância com outros elementos de convicção acostados aos autos, como no presente caso. 2. Na espécie, a versão da vítima somada aos demais elementos de prova coligidos aos autos, todos produzidos na fase processual com observância do contraditório e da ampla defesa, possuem o condão de estabelecer a autoria e a materialidade dos delitos e embasar um decreto condenatório, não havendo que se falar em insuficiência de provas.” Acórdão 1606715, 07123728620198070006, Relator: J.J. COSTA CARVALHO, Primeira Turma Criminal, data de julgamento: 25/8/2022, publicado no PJe: 4/9/2022. https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-em-temas/jurisprudencia-em-perguntas/direito-penal-e-processual-penal/valoracao-da-prova/a-palavra-da-vitima-nos-crimes-praticados-em-situacao-de-violencia-domestica-contra-a-mulher-e-considerada-de-fundamental-importancia Acesso em 19 de setembro de 2023.
4 A falsa acusação de violência doméstica, no contexto da Lei Maria da Penha, pode ser considerada um crime, de acordo com a legislação brasileira. A prática de fazer uma acusação falsa com o intuito de prejudicar o acusado pode configurar o crime de denunciação caluniosa. A denunciação caluniosa está prevista no Código Penal brasileiro, no artigo 339, e consiste em imputar falsamente a alguém a prática de um crime. Quando uma pessoa faz uma falsa acusação de violência doméstica contra outra, ela está imputando um crime que não ocorreu, o que pode configurar o delito de denunciação caluniosa.
5 Art. 147-B. Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação: Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave.
6 Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.
7 O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o juiz não pode, sem pedido da vítima, marcar audiência para que ela desista de processar o agressor nos crimes de violência contra mulher em que a ação penal seja condicionada à sua manifestação. A decisão unânime foi tomada na sessão virtual finalizada em 21/8,no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7267. Para o relator da ação, ministro Edson Fachin, a obrigatoriedade da audiência, sem manifestação nesse sentido, viola o direito à igualdade, porque discrimina injustamente a vítima. Ele explicou que a função da audiência perante o juiz não é apenas avaliar um requisito procedimental, mas permitir que a mulher possa livremente expressar sua vontade. Segundo Fachin, a garantia da liberdade só é assegurada se a audiência for solicitada pela própria mulher, e obrigá-la a comparecer viola a intenção da vítima. Assim, o eventual não comparecimento não pode ser entendido como retratação ou renúncia tácita ao direito de representação.
8 O instituto da CONDUÇÃO COERCITIVA decorre do artigo 218 do Código de Processo Penal, com a seguinte redação: Art. 218. – Se, regularmente intimada, a testemunha deixar de comparecer sem motivo justificado, o juiz poderá requisitar à autoridade policial a sua apresentação ou determinar seja conduzida por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública.
9 O Superior Tribunal de Justiça tem precente contrário à nossa posição, ou seja, pela POSSIBILIDADE DE CONDUÇÃO COERCITIVA DA VÍTIMA. Vide: AGRAVO REGIMENTAL. HABEAS CORPUS. LESÃO CORPORAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. CONDUÇÃO COERCITIVA DA VÍTIMA. FASE JUDICIAL. PREVISÃO LEGAL. NULIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. 1. É cabível a condução coercitiva da vítima para depor em juízo, ainda que esta alegue não ter mais interesse em processar seu companheiro na esfera criminal, pois além de a ação penal ser pública incondicionada, no caso de lesão corporal por violência doméstica e familiar, o próprio Código de Processo Penal prevê a possibilidade de condução coercitiva da ofendida para depor. 2. Não ocorre nulidade no depoimento, em juízo, de vítima conduzida coercitivamente para prestar declarações, sobre lesão corporal sofrida nos âmbitos doméstico e familiar, quando há informações nos autos de que foram respeitadas todas as formalidades legais, no momento da realização de tal ato processual. 3. Agravo regimental não provido. (AgRg no HC n. 506.814/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 6/8/2019, DJe de 12/8/2019.). Os Tribunais tem se dividido sobre a aplicação do instituto, não estando pacificada tal matéria.
10 Essa é a regra que prevalece, inclusive após a redação trazida ao artigo 155 do Código de Processo Penal pela Lei nº 11.690/08, que dispõe que “o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”. O dispositivo sacramentou a possibilidade de utilização, para convencimento do magistrado, daquelas provas colhidas durante a fase investigativa, neste caso, independentemente de contraditório uma vez que, pela letra da própria lei, referido instituto pertence à fase judicial. Ademais, a própria redação da lei deixa claro que, isoladamente, elementos informativos não são idôneos para fundamentar uma condenação, podendo, por outro lado, se somar à prova produzida em juízo, servindo, portanto, como mais um elemento na formação da convicção do órgão julgador.
11 Vide:
12 Gaslighting, ou manipulação psicológica, é um tipo de violência psicológica e emocional que costumeiramente ocorre nos relacionamentos afetivos, mas pode acontecer em outras relações – familiar, profissional e de amizade. Vide: https://www.psicologosberrini.com.br/blog/gaslighting-12-sinais-de-alerta-ficar-atento/ Acesso em 21 de setembro de 2023.
13 https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/artigos-discursos-e-entrevistas/artigos/2022/silencio-da-vitima-direito-ou-armadilha Acesso em 21 de setembro de 2023.
14 https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2019/07/ab16d15c52f36a7942da171e930432bd.pdf Acesso em 17 de setembro de 2023.
15 BRENA O’DWYER. Emoção”, “técnica”, raiva e amor na aplicação da Lei do Feminicídio em um júri público no Rio de Janeiro. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. https://www.revistas.usp.br › article › download
16 JIMENO, Myriam. Crimen passional – contribución a una antropologia de las emociones. Cap. 2. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 2004.
17 JUNG, C. G. Collected Works of C. G. Jung, Volume 10: Civilization in Transition (The Collected Works of C. G. Jung Book 61) (English Edition) 2nd Edição, eBook Kindle.
18 KASSINOVE, H. & TAFRATE, R.C. (2002). Anger management: The complete treatment guidebook for practitioners. Impact Publishers, Atascadero, CA.
19 Tradução livre: “O controle da raiva é um programa psicoterapêutico para prevenção e controle da raiva. Foi descrito como o uso bem-sucedido da raiva. A raiva é frequentemente resultado de frustração ou de sentimento de bloqueio ou frustração por algo que o sujeito considera importante. A raiva também pode ser uma resposta defensiva ao medo subjacente ou a sentimentos de vulnerabilidade ou impotência. Os programas de gestão da raiva consideram a raiva como uma motivação causada por uma razão identificável que pode ser analisada e abordada logicamente”. Vide mais sobre o tema em: SCHWARTS, Gil. July 2006. Anger management, July 2006 The Office Politic. Men's Health magazine. Emmaus, PA: Rodale, Inc.
20 NUCCI, Guilherme. Corpo de Delito e Exame de Delito. Disponível em: