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Hora da decretação da falência

02/10/2023 às 15:33
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A determinação exata da hora da falência é relevante para demarcar o momento em que o devedor perde a administração de seus bens e a massa falida assume a posse direta destes.

Os profissionais da área jurídica que estudaram e aplicaram o ab-rogado Decreto-Lei 7.661/45 perceberam alguns pequenos detalhes em relação à Lei 11.101/05, certamente. Aliás, o texto legal de 1945 ainda é utilizado em relação a alguns processos falimentares, por força da regra do art. 192 do atual regime.

No que se refere a sentença de abertura da falência, estabelece o art. 14, inc. II, do Dec.-Lei 7.661/45:

Art. 14. Praticadas as diligências ordenadas pela presente lei, o juiz, no prazo de vinte e quatro horas, proferirá a sentença, declarando ou não a falência.

Parágrafo único. A sentença que decretar a falência:

I - ...omissis...

II - indicará a hora da declaração da falência, entendendo-se, em caso de omissão, que se deu ao meio-dia

Consta do art. 99, da Lei 11.101/05:

A sentença que decretar a falência do devedor, dentre outras determinações:

I – conterá a síntese do pedido, a identificação do falido e os nomes dos que forem a esse tempo seus administradores;

II – fixará o termo legal da falência, sem poder retrotraí-lo por mais de 90 (noventa) dias contados do pedido de falência, do pedido de recuperação judicial ou do 1º (primeiro) protesto por falta de pagamento, excluindo-se, para esta finalidade, os protestos que tenham sido cancelados;

[...]

VI – proibirá a prática de qualquer ato de disposição ou oneração de bens do falido, submetendo-os preliminarmente à autorização judicial e do Comitê, se houver, ressalvados os bens cuja venda faça parte das atividades normais do devedor se autorizada a continuação provisória nos termos do inciso XI do caput deste artigo

Portanto,

  1. a sentença de abertura judicial da falência não mais precisa ser proferida no prazo de 24 (vinte e quatro) horas;

  2. suprimiu-se a determinação da hora em que proferida a sentença, exigência do art. 14, inc. II da lei anterior. A fixação do termo legal, que estava no inc. III agora se encontra no inc. II.

Ainda há mais detalhes a abordar.

Para fins de estudo de reflexão acadêmica, interessa aqui somente a questão da fixação da hora em que proferida a sentença. Examinando a hodierna doutrina, detectou-se que dois autores tratam da questão relevantíssima, quais sejam os juristas Manoel Justino Bezerra Filho e Ecio Perin Junior.

A fixação da exata hora em que o devedor é retirado do mercado, via sentença judicial [terceiro pressuposto do estado jurídico-falimentar, conforme Rubens Requião] é de extrema relevância.

Dizia o texto legal de 1945 que, na ausência, considerava-se aberta a falência ao meio dia. Ressalte-se que, via de regra, os magistrados faziam constar a hora exata em que assinavam a sentença.

Consta do art. 102 da lei de 2005: O falido fica inabilitado para exercer qualquer atividade empresarial a partir da decretação da falência e até a sentença que extingue suas obrigações, respeitado o disposto no § 1º do art. 181 desta Lei.

Estabelece o art. 103 do mesmo texto legal: Desde a decretação da falência ou do sequestro, o devedor perde o direito de administrar os seus bens ou deles dispor.

O art. 129 trata dos anos ineficazes, e em seu inc. VII está escrito: os registros de direitos reais e de transferência de propriedade entre vivos, por título oneroso ou gratuito, ou a averbação relativa a imóveis realizados após a decretação da falência, salvo se tiver havido prenotação anterior.

Leciona Ecio Perin Junior:

A LFRE suprimiu o inciso II do parágrafo único do art. 14 da LF, contudo, acreditamos que será ainda utilizado esse expediente, e a jurisprudência também aceitar esse procedimento, posto que a indicação da hora da prolação da sentença é importante na medida em que fixa o momento exato da constituição do estado de falência, uma vez que tal estado traz consequências ao falido, ao seu patrimônio, aos credores, aos créditos, às ações e aos contratos1

Por sua vez, Manoel Justino Bezerra Filho, escrevendo sobre o art. 14, entende que:

Tal disposição deveria ter sido mantida, exatamente para que se pudesse fixar se determinado ato, praticado no dia em que a falência foi decretada, teria sido praticado antes ou depois da sentença, para fins de aplicação do art. 103. Embora sem expressa previsão legal, é de muito boa cautela que o juiz faça constar o horário da quebra, horário a partir do qual os atos de administração praticados pelo devedor são nulos2

A não fixação da hora exata em que aberta a falência não é causa de nulidade, porquanto o requisito foi afastado. Mas, seria prudente a exata fixação da hora em que o devedor é retirado do mercado e perde o direito de administrar os bens e deles dispor. Ainda, consabido que a massa falida nasce justamente da sentença de falência, entende-se que a exata hora em que essa pessoa formal, despersonalizada, passa a ser considerada no mundo jurídico tem relevância.

A sentença faz com que haja o imediato desapossamento jurídico dos bens, cuja posse direta é transmitida à massa falida, restando o devedor falida como o direito de propriedade e a posse indireta3. Não se transfere, perante o registro imobiliário um imóvel da falida para a massa falida, por exemplo. Averba-se, isso sim, a sentença de falência.

Por outro lado, um dos efeitos imediatos da falência é a suspensão da personalidade jurídica do devedor, enquanto perdurar o regime falimentar.

Aliás, a falência não é causa de perda da personalidade jurídica e consequente dissolução da sociedade empresária, ao contrário inclusive do que consta do art. 1.044 do Código Civil4

Consta do art. 40 da lei de 1945:

Art. 40. Desde o momento da abertura da falência, ou da decretação do sequestro, o devedor perde o direito de administrar os seus bens e deles dispor.

§ 1º. Não pode o devedor, desde aquele momento, praticar qualquer ato que se refira direta ou indiretamente aos bens, interesses, direitos e obrigações compreendidos na falência sob pena de nulidade que o juiz pronunciará de ofício, independentemente de prova de prejuízo

O art. 103, parágrafo único da atual lei tem outra redação:

Parágrafo único. O falido poderá, contudo, fiscalizar a administração da falência, requerer as providências necessárias para a conservação de seus direitos ou dos bens arrecadados e intervir nos processos em que a massa falida seja parte ou interessada, requerendo o que for de direito e interpondo os recursos cabíveis

Sobre o tema, escrevi:

Por sua vez, a Lei 11.101/05 apenas e tão somente estabelece em seu art. 103 que, desde a decretação da falência ou do sequestro de bens, o devedor perde o direito de administrar os seus ativos ou deles dispor.

Pontes de Miranda, ao comentar o art. 40 do texto legal ab-rogado, apresenta a seguinte crítica:

Um dos exemplos de lamentável confusão entre incapacidade e ineficácia tem-se nos que escreveram sobre perda da administração e do poder de dispor por parte dos falidos. Na própria lei está escrito ‘nulidade’ onde se deverá ter dito ‘ineficácia’ (Decreto-Lei 7.661, art. 40, § 1º); porém uma das mais altas e prestantes funções dos juristas é a de definir o conteúdo dos termos empregados pele lei, para que flua, sem contradições, o sistema jurídico, que é sistema lógico [...] Primeiro, trata-se de ineficácia, e não de nulidade, tanto assim que, recobrando o poder de dispor o ex-falido ou adquirindo o direito de que dispôs, se dá a pós-eficacização, conforme os princípios. Segundo, a ação para se apreciar o ato de disposição pelo falido sem pode de dispor é ação declarativa negativa de eficácia, e não a constitutiva negativa

Assegura Angelo Maierini que

A sentença declarativa da falência priva da sua data e de direito o falido da administração dos seus bens e da faculdade de dispor em prejuízo da massa. Esta disposição é a consequência lógica das considerações antes expostas sobre a necessidade de garantir um igual tratamento a todos os credores, de evitar grandes despesas de procedimento e de impedir as diminuições fraudulentas do patrimônio do falido. Os atos efetuados deste último depois da sentença são nulos de pleno direito, enquanto dão prejuízo à massa.

[...]

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Fiz constar ainda:

O art. 99, inc. VI, estabelece que a sentença proibirá a prática de qualquer ato de disposição ou oneração de bens sujeitos à falência, submetendo-os preliminarmente à autorização judicial e ao comitê de credores, se houver, ressalvados os bens cuja venda faça parte das atividades normais do devedor, caso autorizada a continuação provisória nos termos do inc. XI do mesmo dispositivo (continuação essa que juridicamente não pode existir).

Percebe-se, claramente, que o texto do art. 103 da Lei 11.101/05 é mais restritivo em relação ao art. 40 da lei de 1945, na justa medida em que na disposição de 2005 não está expresso que o devedor ficará proibido de praticar atos relativos aos bens a serem incluídos (arrecadados) no acervo da massa falida. Outra falha da lei.

Aqui o entendimento é de que permanece hígida a questão, ou seja, praticados atos relativos a bens e interesses da massa falida após a assinatura da sentença que abre a falência e retira o devedor do mercado, tais atos não terão qualquer validade no mundo jurídico, ei-vados de nulidade que são.

A nulidade poderá ser pronunciada até mesmo de ofício pelo juiz, porque praticada ao arrepio do Código Civil e em afronta ao regime falimentar5

Os atos praticados pelos gestores empresariais no amanhecer do dia, quando em plena atividade empresarial e livre disposição sobre os ativos, poderão ser relevantes após a abertura judicial da falência.

Portanto, a fixação da hora em que a sentença de abertura da falência é assinada, muito embora não mais seja exigência legal, se traduz em aspecto importante a ser observado.

Para finalizar,

Inexiste qualquer pretensão de exaurimento do objeto. O caráter do escrito é deveras flexível e o objeto cognoscível poderá ser revisitado, levando-se em conta novas pesquisas acadêmicas. A provisoriedade do conhecimento científico (o objeto cognoscível é inesgotável) é a consequência lógica e inarredável , sendo que nada é definitivo em termos de investigação acadêmica. Apresenta-se o resultado da pesquisa, buscando contribuir, quanto possível, para o debate técnico a respeito do objeto abordado

[...]

Em nova pesquisa o tema poderá ser observado sob outro viés, alterando-se o entendimento. Não há (nem deve existir) posição definitiva a respeito do objeto. A reflexão é contínua e se vai adensando, porquanto permanente; prossegue a atividade cognoscitiva. Afinal, que ‘sais-je’? Como diz Michel de Montaigne. A pesquisa acadêmica é processo de aprendizagem, de aprimoramento, de novas descobertas, sempre chegando a uma conclusão provisória. Afinal, o objeto cognoscível determina o sujeito cognoscente. Ensina Goffredo da Silva Telles Júnior, que o ‘objeto é para o sujeito sempre diferente, segundo os aspectos com que se o examina, pois muda de aspecto conforme o ângulo em que é visto, conforme à distância que o separa do conhecedor.’ Apud DINIZ, Maria Helena. A ciência jurídica. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 147. Assevera o mesmo pensador que ‘o objeto captado conserva-se heterogêneo em reação ao sujeito, pois não é arrastado para dentro do sujeito conhecedor, mas é transcendente em relação a ele, porque existe em si, tendo suas próprias propriedades, que não são aumentadas, diminuídas ou mudadas pela atividade do sujeito que o quer conhecer; independe de ser ou não conhecido’., Op. cit., p. 1466


Notas

  1. Curso de direto falimentar e recuperação de empresas. 3ª edição. São Paulo: Editora Método, 2006, p. 145.

  2. Lei de recuperação de empresas e falências comentada: Lei 11.101/05: comentário artigo por artigo. 4ª edição. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2007, pp. 272-273.

  3. Um dos seus direitos é justamente fiscalizar a administração da falência e, por outro lado, pode requerer as medias visando a conservação dos ativos arrecadados, por força do art. 103, parágrafo único da lei de regência.

  4. CLARO, Carlos R. A propriedade e a administração dos bens na falência. In Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, n. 66, maio/2010 – ago/2010. Porto Alegre: AMP/RS, 1973, p. 126.

  5. Falência: ineficácia e revogação de ato no processo falimentar. 2ª edição. Curitiba: Juruá, 2020, pp. 161-162.

  6. CLARO, Carlos R. Apontamentos sobre o diagnóstico preliminar em recuperação judicial. Abordagem zetética. In - ABRÃO, Carlos H.; CANTO, Jorge L. L. do; LUCON, Paulo H. dos S. (coord.). Moderno direito concursal – Análise plural das Leis n. 11.101/05 e n. 14.112/20. São Paulo: Quartier Latin, 2021 pp. 49-50. Destaques no original.

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Sobre o autor
Carlos Roberto Claro

Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; Parecerista; Pesquisador; Autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CLARO, Carlos Roberto. Hora da decretação da falência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7397, 2 out. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/106503. Acesso em: 27 abr. 2024.

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