Consabido que a Lei 12.015, de 07 de agosto de 2009, provocou enormes alterações no Título IV da Parte Especial (Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual) do Código Penal Brasileiro. Antes de sua entrada em vigor, o ato sexual com pessoa vulnerável poderia configurar, a depender do caso, os crimes de estupro (CP, art. 213) ou atentado violento ao pudor (CP, art. 214), hipóteses nas quais se dispensava violência física ou moral.
A razão da dispensa residia na previsão legal insculpida no art. 224 da Lei Repressiva, segundo a qual a violência era presumida (havendo controvérsia se se tratava de presunção relativa ou absoluta1) se a vítima “a) não é maior de catorze anos; b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia essa circunstância; c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência”.
A lei sobredita, dentre outras alterações, revogou expressamente o dispositivo retro e previu a conduta no novel art. 217-A do código, caracterizando-se situação de continuidade típico-normativa2. Com a mudança, restou superada a antiga presunção de violência (antes utilizada para conferir tipicidade de estupro e atentado violento ao pudor, quando obtida relação sexual com pessoa vulnerável), adotando-se em seu lugar o conceito de vulnerabilidade.
Vulnerabilidade diz respeito à condição de se estar privado da capacidade de resistência, sujeito à lesão ou despido de proteção, no dizer de Nucci3. No caso em análise, a vulnerabilidade se manifesta na incapacidade (presumida) para compreender e anuir ao ato sexual. Em termos singelos, a lei substituiu a antiga presunção de violência (por parte do autor do delito) pela atual presunção de incapacidade para consentir (por parte da vítima).
1. Vulnerabilidade absoluta ou relativa?
Tendo a lei preterido a presunção de violência em favor do conceito de vulnerabilidade, é preciso decidir se essa vulnerabilidade seria absoluta (sem admissão de prova em contrário) ou relativa (admitindo-se prova em contrário). A implicação da decisão é crucial, uma vez que em se tratando de presunção relativa, viável seria o debate em torno da capacidade de consentimento da vítima menor de catorze anos, a ser analisada no caso concreto. É dizer, não tendo ocorrido violência ou grave ameaça e havendo prova da plena capacidade para compreender e consentir com o ato sexual, a exemplo de adolescente menor de catorze anos com experiência sexual anterior, o fato seria atípico ou comportaria desclassificação, a depender da hipótese dos autos.
De outra sorte, entendendo-se pela presunção absoluta de incapacidade do menor de catorze anos para anuir com entendimento suficiente ao ato sexual, a solução seria sempre e inexoravelmente a subsunção da conduta ao tipo penal do art. 217-A do CP.
Essa posição pode, contudo, revelar-se desproporcional em uma multiplicidade de casos que chegam ao Poder Judiciário. Quando namoros e relacionamentos em geral envolvendo menores de catorze anos acontecem com a aquiescência dos genitores e responsáveis, os casos não são noticiados e entram para as cifras ocultas da sobredita criminalidade. Quando, porém, os pais não concordam, noticiam às instâncias de persecução penal como forma de vingança, gerando inquéritos e denúncias por estupro de vulnerável.
2. Estupro de vulnerável “bilateral” e a “exceção de Romeu e Julieta”.
A doutrina passou a antever situações nas quais a ausência de proporcionalidade decorrente da vulnerabilidade absoluta seria patente. Nesse contexto se discutem o “estupro bilateral” e a “exceção de Romeu e Julieta”.
O estupro bilateral é o modo como a doutrina denomina o sexo consentido entre dois menores de catorze anos. O ato infracional análogo ao crime de estupro de vulnerável seria “bilateral” por envolver dois menores de catorze anos que ao mesmo tempo seriam autores e vítimas. Praticamente não há controvérsias significativas sobre o exemplo narrado. Tratar-se-ia de fato atípico.
A “exceção de Romeu e Julieta”, por sua vez, é uma tese doutrinária de interesse da defesa segundo a qual não haveria crime se o sexo consensual fosse praticado entre uma pessoa menor de catorze anos e outra cuja idade não fosse superior à da vítima por mais de cinco anos. Como exemplo, pensemos em uma garota com 13 anos e 10 meses que fez sexo consensual com seu namorado, com idade de 18 anos e 1 mês. Pergunta-se se seria proporcional e socialmente aceitável que o rapaz fosse condenado como estuprador a penas variáveis de 8 a 15 anos de reclusão.
3. A Súmula 593 e a Lei 13.718/2018.
O Superior Tribunal de Justiça não acatou a “exceção de Romeu e Julieta”, tampouco a noção de vulnerabilidade relativa. Para que não houvesse mais questionamentos sobre o tema, editou inclusive o enunciado sumular 593, in verbis:
Súmula 593-STJ: O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente. (grifos nossos)
Não só. O STJ exarou compreensão também no sentido de que “a experiência sexual anterior e eventual homossexualidade do ofendido, assim como não desnaturam o crime sexual praticado contra menor de 14 anos, não servem também para justificar a diminuição da pena-base, a título de comportamento da vítima” (STJ. 6ª. Turma. Resp 897.734/PR, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 3/2/2015).
Posteriormente, o Congresso Nacional incorporou ao Código Penal esse entendimento, por meio da Lei 13.718/2018, acrescentando o parágrafo 5º ao art. 217-A, com o seguinte teor:
§ 5º As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime. (grifos nossos)
A intenção do Legislador Ordinário foi certamente encerrar o debate, estabelecendo de vez a vulnerabilidade absoluta para efeito da imputação do estupro de vulnerável com base exclusiva na idade da vítima. Nesse sentido, Nucci leciona:
A inclusão do § 5.º ao art. 217-A possui o nítido objetivo de tornar claro o caminho escolhido pelo Parlamento, buscando colocar um fim à divergência doutrinária e jurisprudencial, no tocante à vulnerabilidade da pessoa menor de 14 anos. Elege-se a vulnerabilidade absoluta, ao deixar nítido que é punível a conjunção carnal ou ato libidinoso com menor de 14 anos independentemente de seu consentimento ou do fato de ela já ter tido relações sexuais anteriormente ao crime. (grifos do autor).4
O debate, entretanto, está mais aceso do que nunca, conforme passaremos a demonstrar.
4. A “superação” da Súmula 593 na casuística do STJ.
Foi, entretanto, o próprio STJ que, para dizer o mínimo, mitigou a Súmula 593, a sinalizar que o debate sobre a presunção de vulnerabilidade da vítima menor de catorze anos de estupro de vulnerável (se absoluta ou relativa) não está encerrado. Para exemplificar o que se afirma, analisaremos de plano o AgRg no REsp nº 2019664/CE (2022/0251419-5), de 13 de dezembro de 2022, de relatoria do Min. Reynaldo Soares da Fonseca.
Em que pese o respeitável acórdão ter consignado “que não se está a infirmar a orientação firmada pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial n. 1.480.881/PI”, o julgado pontuou a necessidade de “distinguishing”, considerando as particularidades do caso concreto, a impedir a simples subsunção da conduta à norma: “trata-se de dois jovens que estavam namorando e que dessa relação sobreveio uma filha que, destaca-se, vem tendo a devida assistência do pai”.
Considerou que a observância exclusiva do critério etário da vítima viola a responsabilidade subjetiva, consagrada no direito penal pátrio. Concluiu que a conduta é formalmente típica, mas “não constitui infração penal, haja vista a ausência de relevância social e de efetiva vulneração ao bem jurídico tutelado”.
Entendeu que a condenação do agravado (a pena era de 10 anos e 10 meses) violava a dignidade da pessoa humana e exigia a aplicação da teoria da derrotabilidade do enunciado normativo, que nada mais que a “possibilidade de se afastar a aplicação de uma norma, de forma excepcional e pontual, em hipóteses de relevância do caso concreto”.
Na hipótese versada no acórdão, verificou-se que a aplicação da norma não resistia à ponderação por nenhum dos subprincípios da proporcionalidade, sendo sua incidência inadequada e desnecessária, além de injusta.
De resto, acentuou que a manutenção da pena do agravado conduziria à revitimização da vítima e maior causação de danos e traumas a esta e à filha do casal do “que se imagina que elas teriam em razão da conduta imputada ao impugnante”, vulnerando material e emocionalmente a entidade familiar e violando a proteção da criança e do adolescente, constitucionalmente garantida (CF, art. 227).
A conclusão foi, portanto, que no “jogo de pesos e contrapesos jurídicos não há, neste caso, outra medida a ser tomada: a opção absolutória na perspectiva da atipicidade material”.
Em síntese, o relator considerou que “a tese firmada no Recurso Especial n. 1.480.881/PI não se aplica à hipótese dos presentes autos, haja vista as particularidades trazidas, em especial a constituição de núcleo familiar, que retiram a tipicidade material da conduta”.
O Superior Tribunal de Justiça, todavia, fez novo “distinguishing” em relação aos acórdãos proferidos na esteira do anteriormente citado (a exemplo do REsp 1.977.165/MS), desta vez em favor da Súmula 593. A particularidade do caso dos autos foi destacada: “A genitora da menor sustenta que, a despeito de sua recusa quanto à proposta de namoro, o acusado continuou a frequentar a casa da família, dormindo lá várias vezes, utilizando o subterfúgio de proteger a família, após a mãe da menor ter sofrido um acidente vascular cerebral”.
A Min. Relatora Laurita Vaz (Inf. 787) ressaltou a irrelevância do consentimento da família e de eventual formação de união estável entre autor e vítima. Mas fez constar que o elemento distintivo em relação ao REsp 1.977.165/MS foi a não formação de prole, concluindo pela validade plena da Súmula 593.
Conclusão
O debate sobre a presunção de vulnerabilidade da vítima de estupro de vulnerável menor de catorze anos permanece candente, a despeito da Lei 13.718/2018. A própria Corte Cidadã, na melhor das hipóteses, mitigou a aplicação da Súmula 593, e o fez a propósito de haver aplicado o instituto do distinguishing.
Pelo distinguishing, exclui-se a aplicação do precedente judicial, embora permaneça incólume, por existirem determinadas cirscunstâncias fáticas ou jurídicas no caso concreto que o diferenciam das situações previstas abstratamente naquele. Isso quer significar que o instituto em comento exige, para que o precedente não seja aplicado, que o processo em análise traga matéria jurídica não examinada quando da sua formação.
Com a máxima vênia, não foi o que ocorreu nos casos examinados pela Corte Cidadã. Não houve matéria nova, não prevista na formação da Súmula 593. Em todos os casos, uma menor de catorze anos manteve relacionamento sexual com pessoa maior, a exigir, para a higidez da súmula, a sua aplicação inexorável, sendo irrelevantes as circunstâncias fáticas dos casos concretos, incapazes de infirmar o precedente.
As próprias razões de decidir conflitam com a suposta distinção: derrotabilidade da norma, responsabilidade objetiva decorrente do uso exclusivo do critério etário, atipicidade material do fato, ponderação de princípios, etc.
Essa constatação faz-nos parecer sofrível a aplicação da técnica do distinguishing pela Corte. Ocorreu, pois, um enviesamento do instituto “para se obter algo que somente pelo overruling pode ser obtido”, no dizer de Daniel Assumpção, que também ensinou o que segue:
Conforme lembra a melhor doutrina, nos países da common law não é incomum, ainda que continue a ser reprovável, juízes que não querem aplicar os precedentes por considerá-los injustos ou equivocados, simplesmente se valerem de uma discutível distinção para se afastar da eficácia vinculante dos precedentes.5
Por outro lado, como a Corte evitou a todo custo afirmar a superação da Súmula 593, consentimos que tem havido uma “distinção inconsistente” (inconsistent distinction)6. É dizer, o Superior Tribunal de Justiça já está duvidando da adequação do enunciado sumular, embora não se sinta seguro para superá-lo, razão pela qual tem deixado de aplicá-lo pontualmente, em diversos casos concretos.
O entendimento do STJ era pela presunção absoluta de violência nos casos de estupro/atentado violento ao pudor contra menor de catorze anos (STJ, 3ª. Seção. EREsp 1152864/SC, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 26/02/2014).︎
A continuidade típico-normativa ou normativo-típica ocorre quando, apesar de uma norma penal incriminadora ser revogada, a mesma conduta passa a ser tipificada em outro tipo penal. É o caso do estupro de vulnerável. A Lei 12.015/09 não operou abilitio criminis da conduta antes caracterizada como estupro ou atentado violento ao pudor contra menor de catorze anos. Apenas deixou de puni-la com as cominações dos artigos 213 e 214, cumulados com o artigo 224, e passou a tipificá-la no artigo 217-A.︎
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 12ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 878︎
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NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 19ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. p. 1400︎
Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo: NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil – Volume Único. 14ª. Ed. São Paulo: Ed. Juspodivm, 2022. p. 1432︎
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil... p. 1433︎