O tema dos direitos fundamentais da pessoa humana insere-se entre aqueles que representam uma conquista notável da Humanidade, afirmando-se após um processo gradativo de transformações que resultaram de uma luta árdua e incessante, ao longo dos séculos, contra o arbítrio e a tirania dos regimes autoritários. No início, tomando a forma de reação e revolta contra os reis absolutistas, gerando a reivindicação e consequente afirmação dos direitos civis, da igualdade, da liberdade e da democracia, ganha vulto com as Revoluções Americana e Francesa, no século XVIII e com as Declarações de Direitos daquelas decorrentes.
Talvez o antecedente mais remoto do que viria a ser o que hoje se conhece por “direitos humanos” tenha sido a assinatura da Magna Carta de 1215 pelo Rei João da Inglaterra, também chamado de “João sem Terra”, pois esse monarca perdera suas terras ancestrais para o Rei Filipe II de França. Além de estabelecer a limitação do poder do rei, a Magna Carta trazia diversas disposições, destacando-se dentre elas as seguintes: 1) nenhum homem livre poderia ser preso sem julgamento (mais tarde, esse princípio seria aperfeiçoado pela Constituição Americana, com a instituição do “devido processo legal”); 2) o princípio da presunção de inocência; 3) a instituição do habeas corpus.
As duas grandes conflagrações mundiais lançaram o mundo numa caudal de violência contra a vida e a integridade física de populações inteiras, especialmente quando da eclosão da Segunda Guerra Mundial com o aparecimento do Nazismo, do Fascismo e do Socialismo, este regime já em vigor na então União Soviética desde a Revolução Russa de 1917. Com o término da Segunda Guerra Mundial e com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), a questão dos direitos humanos passa a ser objeto de especial consideração por parte dessa entidade internacional, chegando-se à aprovação, em 1948, da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembleia Geral das Nações Unidas.
Nessa linha de proteção e defesa dos direitos humanos fundamentais, há que se louvar a profusão de tratados internacionais sobre a matéria, especialmente aqueles que instituíram as Cortes Regionais de Direitos Humanos, que são tribunais internacionais que atuam em suas respectivas regiões e que têm como função primordial processar e julgar os casos de violação, por parte do Estado e de seus órgãos, dos direitos fundamentais da pessoa humana.
Talvez essa pequena introdução sirva para que possamos refletir sobre se os órgãos que constituem os Poderes da República do Brasil têm dado a devida atenção à defesa e à proteção dos direitos humanos do povo brasileiro.
Essa discussão passa a ter procedência a propósito do episódio de 8 de janeiro de 2023, quando ocorreu a invasão dos Palácios do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal e que, inevitavelmente, considerando a gravidade de que se revestiu tal evento, deve ser analisado sob dois ângulos distintos:
O primeiro deles corresponde a uma constatação simples e objetiva, a de que consistiu numa ação levada a efeito por alguns vândalos e arruaceiros que atentou contra o patrimônio público e que, em razão desse fato, deve ser punida com o rigor da lei.
Sob outro ângulo, no entanto, e ainda hoje suscitando uma controvérsia absolutamente injustificada, tendo em vista a realidade dos fatos, centenas de pessoas, indistintamente, foram presas sem que ocorresse a devida individualização de suas condutas por meio da instauração de um processo judicial, regido pela lei e que lhes assegurasse o direito à ampla defesa.
A questão que avulta ao se considerar o episódio de 8 de janeiro é o fato incontestável de que a prisão de um número considerável de pessoas, nas condições antes mencionadas, configurou flagrante afronta aos direitos fundamentais da pessoa humana e aqui, a propósito, cabe uma vez mais a referência à importância dos tribunais internacionais de direitos humanos.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) é um tribunal internacional instituído por um tratado internacional, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 (Pacto de San José da Costa Rica), ratificado pelos Estados americanos, dentre eles o Brasil, de sorte que as sentenças promanadas daquele tribunal são definitivas e inapeláveis, desde que os respectivos Estados-partes declarem que reconhecem como obrigatória de pleno direito a competência da Corte Interamericana (o nosso país o fez em 10 de dezembro de 1998) e que tenham sido interpostos e esgotados os recursos previstos na jurisdição interna desses Estados, conforme dispõem os artigos 61.2, 62.1 e 62.3 do Pacto de San José da Costa Rica. Note-se, a propósito, que o Pacto de San José da Costa Rica estabelece, no artigo 46, 2, “a, “b” e “c”, três exceções à regra do esgotamento prévio dos recursos da jurisdição interna dos Estados, quais sejam: a) não existir, na legislação interna do Estado, o devido processo legal para a proteção do direito que se alegue violado; b) não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna ou houver sido ele impedido de esgotá-los; c) houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos.
Portanto, resta claro e induvidoso que a decisão proferida por Ministro do Supremo Tribunal Federal que determinou a prisão, indistintamente, de centenas de cidadãos brasileiros por ocasião dos eventos de 8 de janeiro ajusta-se perfeitamente ao estabelecido no artigo 46, 2, do Pacto de San José da Costa Rica, antes referido, pois não houve sequer a instauração de processo judicial regular, previsto no ordenamento jurídico brasileiro por meio do qual se assegurasse aos possíveis indiciados a mais ampla defesa, tampouco se permitiu àqueles que foram prejudicados em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna do Estado.
É de se ter presente que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 (Pacto de San José da Costa Rica) é um tratado internacional e se esse tratado cria a Corte Interamericana de Direitos Humanos, parece inquestionável que o Estado brasileiro, no momento em que ratifica esse documento internacional e promove sua incorporação ao seu ordenamento jurídico, passa a vincular-se juridicamente às normas desse tratado, assumindo direitos e obrigações perante seus pares na esfera internacional.
Quando se trata de considerar a obrigatoriedade das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos no ordenamento jurídico brasileiro, é preciso levar em conta que os atos dos Poderes da República do Brasil são manifestações da soberania do Estado brasileiro como um todo, daí porque é perfeitamente possível que haja um ato de violação dos direitos humanos proveniente também do Poder Judiciário, seja quando este não dá cumprimento a uma sentença internacional que condenou o país, seja quando o mesmo Poder, por meio de decisão judicial, passa a afrontar diretamente aqueles direitos, ensejando, pois, a responsabilidade internacional do Estado por descumprimento de obrigação internacional.
Retornando ao episódio de 8 de janeiro, é imperioso que os verdadeiros culpados pelos distúrbios sejam exemplarmente julgados e punidos, mas, de outra parte, é de causar estarrecimento e indignação, porque repugna ao sentimento médio de humanidade, assistir-se a um espetáculo degradante em que centenas de homens e mulheres, muitos deles vivendo em condições subumanas, ainda hoje padeçam nos presídios de Brasília, em virtude de uma decisão arbitrária e ilegal.
Assim, diante da impassibilidade por parte das autoridades públicas, de setores da imprensa, da Ordem dos Advogados do Brasil e de entidades nacionais e internacionais de direitos humanos, outra alternativa não se impõe senão a de se recorrer à Corte Interamericana de Direitos Humanos para que esta profira sentença de observância obrigatória pelo Estado brasileiro, visando à proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana.